Nunca fiz parte de quantos pensam que "no meu tempo é que era bom". Desde logo porque o conceito de "meu tempo" é um pouco bizarro. Cada tempo tem o seu tempo, nós fomos diferentes em cada um desses períodos, o que nos ficou dessas experiências passadas representou apenas uma escolha, embora não necessariamente deliberada: às vezes, as coisas não foram tão boas como a nossa memória as reteve, outras vezes foi o nosso mal-estar conjuntural que ajudou a fixar uma imagem menos agradável do que até foi simpático. Aprendi, com os anos, a relativizar tudo, o que, por vezes, me leva a um desapego pelas coisas que pode parecer chocante. Já concluí que essa é a minha linha de defesa. E vivo lindamente assim.
Aqui em Vila Real, olhei aquela casa, agora feita ruina. E lembrei-me de mim, criança, a brincar lá dentro, junto de familiares, há muitos anos. Tive saudades? Nenhumas. Foi outro tempo. E continuei a passear pelas ruas da cidade. Estava frio, um sol magnífico, cruzei-me com alguns amigos, comi um covilhete, bebi um fino. Este é o "meu tempo".
11 comentários:
lembrei-me de mim, criança, a brincar lá dentro, junto de familiares, há muitos anos
Há poucos anos vi um primo meu, adulto já bem entradote, desatar a chorar perante a ruína da casa que foi dos meus avós, na qual ele habitou em criança, demolida que foi pela Câmara de Matosinhos, agora proprietária daquele terreno.
Ao menos o Sr. Embaixador tem oportunidade de olhar "aquela casa, agora feita ruína". Existem, no entanto, neste país muitas pessoas que ficaram privadas da possibilidade de olhar para as casas em que brincaram junto de familiares. E que talvez gostassem de o ter feito.
Completamente de acordo.
Não conhecia o "Covilhete" O pastel de massa folhada reforça ainda a identidade local por o recheio conter carne maronesa e a sua confeção estar associada a um tipo de olaria (louça negra)que se produz próximo de Vila Real e com técnicas ancestrais.Nunca comi :(
Partilho bastante e até muito desta sua visão da vida e das coisas.
E quando alguém me fala dos “bons velhos tempos” respondo sempre que “os bons velhos tempos, na altura, não eram assim tão bons, tu é que eras mais novo”.
A nossa mente tem essa capacidade “que nos salva”, como diz/canta Jean Gabin na canção “Maintenant je sais” (1974):
“On oublie tant de soirs de tristesse
Mais jamais un matin de tendresse!”
O desapego pelas coisas não é necessariamente uma linha de defesa, por vezes as preocupações com os nossos, principalmente quando começam muito cedo na vida deles (e portanto na nossa) também levam a criar linhas de defesa bem sólidas pois tudo o resto, em especial os “bens materiais” (de que casas e objectos são um bom exemplo) passa a ser razoavelmente secundário.
Também comecei a relativizar tudo muito cedo na vida e os últimos anos só trouxeram boas razões para confirmar que essa foi a melhor escolha.
É que este também é “o meu tempo”, filhos entradotes e empreendedores e netos todos eles adultos a estudarem e a trabalharem em “part-time” (opção deles, a tal “cultura” familiar) pedem opiniões que depois umas vezes seguem outras vezes não, é o mundo em que eles vivem e irão continuar a viver que tenho que conhecer e acompanhar a toda a hora, para os ajudar quando a qualquer momento me “consultam”, é esse o meu mundo hoje.
Eu vivi ao longo da vida em 8 casas, fiquei assim um pouco atrás das 13 casas de que Leonor Xavier nos falou no seu livro “Casas contadas”.
Não me dizem nada as casas, dizem-me as pessoas com quem lá vivi e já não estão cá fisicamente, de quem todos os dias me lembro, muitas vezes e todos os dias me vêm à memória nas situações mais ou menos banais do dia-a-dia.
Passo todas as semanas a pé pela casa onde vivi até aos 24 anos (agora é um escritório), passei a caminho do trabalho durante 10 anos à porta da casa onde vivi até aos 12 anos (já era nessa altura um jardim infantil).
E nunca voltei a entrar por minha iniciativa numa empresa onde tenha trabalhado, tipo aquelas “visitas” de que vivem e sobrevivem muitos conhecidos meus com pouca ocupação, só lá ia para reuniões de trabalho.
PS- Filhos entradotes são filhos que nos dizem o que um deles me disse anteontem, a saber “Já há muito que deixei de ligar ao Natal, talvez quando um ano destes fôr avô…”.
Flor
Isso não se faz.
Como fui fazer uns bons quilómetros com o desgraçado do carrito que pouco anda, aproveitando o facto de hoje a cidade ter menos transito que a um domingo e a A1 estar vazia até Alverca (e no regresso), acabei por almoçar mais tarde.
E chego aqui e já estou com fome outra vez com a sua descrição do pastel.
É que depois associo ideias e o barro negro leva-me inevitavelmente à chanfana e a chanfana leva-me não menos inevitavelmente a salivar, um dramalhão como vê.
Conclusão: nunca mais é hora de jantar, vou ter que lanchar.
Manuel Campos
Imagine eu quando fui "chez Google" procurar o que era Covilhete e deparo-me com uma bela travessa cheia de covilhetes todas a rirem para mim ?!?! Que dor :) :)
Off-topic
Acabo de ler aí online que ainda não se sabe se a criança que faleceu foi devido a "uma intoxicação por uma bateria".
Uma "bateria" (sic).
Flor
Pois já percebi que ainda ficou muito pior do que eu fiquei.
Tem toda a minha solidariedade, ainda que de pouco adiante é o que há...
Apercebi-me agora, ao ler o seu texto, que é também isso que eu penso. Numa nota à parte, acho curioso que depois de tantos anos em Lisboa ainda diga "fino" e não imperial. Já agora, também prefere Superbock a Sagres?
Essa baboseira do "meu tempo" arrepelha-me os pêlos todos, especialmente quando ouço à malta da minha idade.
Adoro recordar, agora a ideia do "ai quem me dera ter outra vez 20 anos (ou outra idade qualquer)", nem me passa pela cabeça.
Eu receio que as pessoas de mais idade referirem que no tempo delas há 50 anos é que era bom devem ter tido ao longo dos anos uma vida bem triste.
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