A meio da conversa telefónica, percebi que ia desiludir a pessoa que, do outro lado, me fazia o pedido.
Uma antiga colega de liceu, que eu já não via há muito, abordara uma pessoa da minha família, em Vila Real, pedindo a minha intervenção para facilitar a entrada da sua filha para um lugar técnico no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Havia um concurso para sete lugares, com 10 candidatos. Entendia-se que uma "palavra" minha, então ocupando um cargo de secretário de Estado, seria decisiva para a seleção da rapariga.
Recusei. Por regra, não aceito cunhas e, por maioria de razão neste caso, havendo um concurso, estar a beneficiar deliberadamente um candidato significaria estar a introduzir um fator de injusta desigualização entre os concorrentes.
A pessoa através da qual o pedido era feito conhecia muito bem esta minha posição de princípio, mas havia tentado "deitar o barro à parede". A conversa acabou, como não podia deixar de ser, com a resignação desapontada da pessoa minha interlocutora. Assunto encerrado.
Passaram umas semanas. Nova chamada telefónica. O assunto era o mesmo. A minha primeira reação foi de moderada irritação, por estar a voltar a uma questão que eu considerava fechada.
Erro meu. A pessoa não vinha reeditar a cunha. Pretendia apenas, sabendo-se que a decisão do juri já tinha sido tomada, mas ainda não tinha sido divulgada, inquirir se a candidata tinha ou não sido admitida, para, em caso negativo, poder aceitar um outro emprego, que entretanto lhe aparecera. Só isso.
Pareceu-me razoável tentar obter, por antecipação, essa informação. A minha diligência em nada influiria na decisão já tomada pelo juri, fosse ela qual fosse. Telefonei assim ao presidente do juri, pessoa que conhecia, e perguntei-lhe se me podia dizer se "fulana" tinha ou não sido admitida naquele concurso.
Estranhei que a resposta se iniciasse com uma pergunta: "Mas você estava interessado na admissão dessa candidata?". Respondi que essa não era a questão, que apenas queria saber se ela fora admitida ou não, nada mais. O que veio a seguir, da parte do meu interlocutor, deixou-me marcado para a vida: "Não, não entrou. Mas posso dizer-lhe que esteve quase a ser admitida. Só que, curiosamente, de todos os concorrentes, ela era a única que não tinha nenhuma cunha"...
Empenho a minha palavra em como esta história, com mais de 25 anos, é verdadeira.
Neste tempo em que por aí se fala tanto de cunhas, apeteceu-me contá-la.
19 comentários:
Acredito plenamente no que conta. Comigo passou-se algo idêntico. Abriu concurso para admissão de funcionários para as tesourarias da Fazenda Pública (TFP). Só podia concorrer quem estivesse ligado à Função Pública, o que limitou imenso o número de candidatos. Por mero acaso, eu não fiz parte do júri desse concurso. Mas passado uns dias, uma pessoa minha conhecida pediu-me para tentar saber se a irmã tinha sido seleccionada. A lista dos seleccionados ainda não tinha sido publicada no Diário da República. Telefonei ao presidente do júri a perguntar se a tal candidata tinha sido escolhida. E o presidente do júri, um colega meu, foi ver e disse-me que não. A tal candidata não tinha sido seleccionada. E então foi a vez desse meu colega dizer - ó pá, da próxima vez tens que avisar, pois todos os candidatos seleccionados tinham alguém a pedir por eles. Isto passou-se em finais dos anos 80. E hoje as TFP desapareceram do mapa, absorvidas pelos serviços de Finanças, e com as partes interessantes das funções das TFP entregues de mão beijada aos CTT, que era então uma empresa pública que dava lucro. E foi assim que os CTT ficaram com o controle dos milhares de milhões do dinheiro que é pago através de vales do Correio. Até aí, o controle desses milhares de milhões pertencia à Direcção-Geral do Tesouro. E pormenor interessante, os CTT foram mais tarde concessionados a uma empresa privada, mas nem assim perdeu o controle desses milhares de milhões. E quem souber quanto rende o saldo médio de uma conta de milhares de milhões, já fará uma pequena ideia do negócio que esteve por detrás da extinção das TFP. E nem ficámos muito admirados quando, passado uns tempos, soubemos que a mulher do senhor que tinha coordenado a extinção das TFP, tinha sido nomeada directora nos CTT. Eu, aproveitei por pedir a aposentação do meu lugar de tesoureiro da Fazenda Pública. Nunca aceitaria ficar debaixo das ordens de um chefe do serviço de Finanças. Salvo se eu lhe reconhecesse superioridade intelectual à minha, o que ao longo de 30 e tal anos nunca aconteceu.
Eu conheci um professor catedrático que aceitava sempre cunhas, para não ser indelicado, e na sua pauta privativa escrevia, a lápis, à frente do nome do aluno o nome de quem metia a cunha. Eram mais os que tinham uma cunha do que os que não tinham. Apareciam como cunhadores tanto nomes de altas individualidades como gente modesta como um contínuo da Faculdade ou a empregada doméstica. Ele dizia que escrevia aquilo mas que depois, ao fazer o exame, não ligava nenhuma. Isto passou-se há muitos anos.
Zeca
Ontem (dia 8) li um artigo de António Capinha no Diário de Notícias que descreve uma história, mostrando que um certo casal de australianos nem sequer na imaginação tinha o conceito de cunha. E tenho ouvido e lido com frequência que nos países "avançados" não existe a cunha. Pois eu tenho razões para duvidar. Pode não ser exactamente como em Portugal, pode não ter tanta extensão, mas cunha no sentido de influências de quem tem bons contactos existe em todo o lado. Para favorecimento pessoal, dos familiares ou dos amigos. Existe em todos os países desde a Alemanha, à França, aos Estados Unidos. Tenho elementos suficientes para ter esta opinião.
Aliás acho um bocado cansativa a afirmação de que somos o país das cunhas e que somos um país pequeno e pobre.
Zeca
Meu caro Francisco,
Eu tive um chefe que dizia aceitar que lhe metessem cunhas desde que fossem boas. Foi o meu pior chefe.
Um abraço.
JPGarcia
Uma grande história que resume perfeitamente aquilo por que quase todos passámos na vida, acrescentaria que mesmo todos aqueles que passaram por lugares onde tinham que admitir pessoas, fosse qual fosse o nível hierárquico de quem admitia e de quem era suposto ser admitido.
Este é e sempre foi um problema transversal a toda uma maneira de estar no mundo, a toda uma cultura muito característica e que, não sendo um exclusivo nosso, é por cá visto com uma naturalidade que virá do inevitável “és parvo em não meteres a cunha, toda a gente vai meter”, como se depreende mais uma vez.
Estamos cercados de cunhas por todos os lados e todos nós achamos que a nossa se justifica plenamente, até porque é só uma “coisita de nada”, como se um ladrão deixasse de ser um ladrão por roubar só mil e não um milhão.
Devo dizer que, a certa altura e quase no princípio da minha vida profissional, tive que admitir quase 400 pessoas para uma unidade fabril nova e promissora, que eu ía dirigir (e para isso não tinha tido cunha, muito pelo contrário, tinha sido apanhado nas contracurvas de vários desentendimentos e a escolha seguinte e inevitável era eu).
As cunhas ferviam, ainda hoje me lembro de algumas situações em que fiquei bem “entalado” entre o que devia ou não devia fazer, ilusões e ingenuidades de quem tinha ainda muito pouco calo emocional (por assim dizer) para lidar com estas situações, é algo que só se aprende com as pancadas da vida, não há manual de instruções possível.
Acabei por me arrepender de não ter em alguns casos aceitado as cunhas, essa é que é essa, paguei a conta, mas totobola à 2ª feira é fácil.
Num dos casos vi-me aflito para substituir uma pessoa que era um excelente profissional mas um execrável cidadão, nas entrevistas acontece muitas (demasiadas) vezes sermos enganados pelo CV e os sorrisos para o futuro chefe, não podemos adivinhar que vão ser uns tiranetes com os seus colaboradores, criar um ambiente terrível que leva até a demissões de gente boa, os pequenos poderes são tramados.
São textos destes, que felizmente abundam neste blogue, que nos trazem histórias bem interessantes da parte de quem comenta, como foi hoje mais uma vez o caso com Rui Esteves e Zeca.
É que com estas histórias aprende-se, não são meras opiniões, são vidas vividas.
PS- Agora por ter escrito “profissional” ali acima, lembrei-me que ontem procurava por aí determinada informação e, num documento não oficial mas de uma entidade respeitável, leio “proficional”.
Estamos feitos.
A propósito não exactamente de cunhas, há uma história muitíssimo antiga do árbitro de determinado jogo ter recebido um cheque de 1000 contos do clube A e um cheque de 800 contos do clube B, os clubes que ía arbitrar.
Assim escreveu ao clube A dizendo que, tendo recebido 800 contos do clube B, lhes enviava um cheque de 200 contos de devolução e iria arbitrar o jogo de forma imparcial.
É caricatura mas é capaz de ser ideia que passa pela cabeça de muita gente.
E não só pela cabeça.
PS- Também li a história dos médicos australianos.
E também estou de acordo com tudo o que Zeca escreveu às 13.02.
Esta auto-flagelação constante de nos acharmos os piores, conjugada com a saloiice constante de acharmos os outros os melhores não ajuda nada ("saloiice" tem mesmo dois "i" e não é letra dobrada).
Há cunhas no mundo inteiro. Os modelos é que são mais sofisticados nos países protestantes. E não é só cá que se diz isto só em Portugal, em todo o lado se diz o mesmo do respectivo país. As nacionalidades são diferentes, a natureza humana só uma.
Fernando Neves
É uma vergonha.
E agora descobrimos que o nosso Presidente mete sistematicamente cunhas. Toda a gente que lhe escreve, leva uma cunha. Ele deve entender que é como um santo da Igreja Católica, cuja função é meter cunhas junto de Deus para que este faça milagres.
Caro Manuel Campos:
A propósito do dito "somos um país pequeno e pobre" observo o seguinte. Há, para só falar da Europa, inúmeros países menores que Portugal em área. Exemplo: Dinamarca, Holanda, Bélgica etc. Outros com aproximadamente a mesma área: Hungria, Grécia, Bulgária, etc. Outros com mais área mas menor população: Finlândia, Noruega, Suécia, etc. Deixo muitos de fora por preguiça de examinar todos.
Quanto ao somos pobres, irrita-me de grande. Parece que parte do princípio de que os habitantes dos países muito mais pobres que Portugal nem sequer têm o estatuto de gente. Exemplo: Angola, Moçambique, Guiné, Etiópia, Somália, Vietnam, etc. etc. etc. são tantos (nem sequer falo da América Latina). Nem falo da Gaza.
Que pensará um etíope que por vezes tem de andar quilómetros com um balde às costas para conseguir água potável quando ouve um português dizer que somos uns pobrezinhos.
E corrupção? Somos um país de corruptos? Que fizeram na Alemanha na Volkswagen para fingir que os carros não poluíam? Queremos comparar isso com a corrupção de dar uma gorjeta para que um requerimento ande mais depressa?
E mais não digo para não ser cansativo.
Zeca
Se o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa, nunca na vida meteu uma “cunha”, tenho muitas dúvidas!
Mas já quanto ao PR-Marcelo, afirmando convictamente que nunca o fez, as minhas dúvidas são ainda maiores, porque depois de repudiar o pai (Baltasar), o filho (Dr. Nuno) e o Espírito Santo (Ricardo Salgado), renunciando assim à Santíssima Trindade e tendo sido expulso do Paraíso, carrega a cruz do seu descrédito, tenho por ateísmo, como único objectivo da sua existência, o “narcisismo” da fruição de Belém.
Como Pacheco Pereira afirma no PUBLICO de hoje (9/12/2023) “o Presidente enredou-se e enreda-se todos os dias em todos os tipos de mentiras do catálogo que os antigos fizeram ainda em latim: mentira, omissão da verdade, sugestão de falsidade”.
A conversa do dia parece ser "foi uma cunha. Há tantas...". Pois há, e também há uma coisa chamada Código Penal.
Tenho pena que o PR se tenha deixado envolver nisto. Mostra que não tem a mesma agilidade mental de outros tempos. Era mais do que previsível que isto seria descoberto: há demasiados intervenientes no processo. A médica pediatra soube proteger-se (e muito bem) recusando prescrever o medicamento. O resto da cadeia está toda contaminada: director de serviço, director clínico, administração hospitalar, secretário de estado e ministra.
É uma vergonha. Mas parece-me que é também uma oportunidade para se discutir o estabelecimento de regras mais claras e rigorosas para a prescrição de medicamentos milionários. Acho que deveria ser uma agência (não sei qual) a decidir. O tipo de ponderação custo-benefício que a prescrição destes medicamentos envolve deveria estar na mão de uma entidade nacional única. De outro modo, o que nos resta é a discricionariedade e a cunha.
Caro Zeca
Pois mais uma vez totalmente de acordo com as suas observações, como imagina.
A conversa do “pequeno e pobre” tem um lado “Calimero” irritante e totalmente inútil, sempre a vitimizarem-se e a sentirem-se infelizes e injustiçados.
Todos metemos umas cunhas e aceitámos umas cunhas durante a vida, armarmo-nos em gente ofendida no pudor é hipocrisia e da grossa.
E uma gorjeta para fazer andar “alguma coisa” mais depressa toda a gente o terá feito as vezes que foram precisas mesmo sabendo que “alguma coisa” de outra pessoa terá ficado a andar mais devagar.
No entanto gostaria de acrescentar que não foi só a Volkswagen, tenho também um carro alemão com meia dúzia de anos de uma marca bem conhecida que levou uma "actualização de software" gratuita em devido tempo.
Aliàs a Volkswagen só se tramou porque foi "apanhada" nos EUA em plena "guerra" entre os mercados europeu e americano, pagou por todos, os outros ainda foram a tempo de emendar a mão.
Quanto à "alegada" cunha do PR já aqui escrevi que se deixou enredar de forma ingénua e inconsciente nas suas próprias contradições, acho que sem qualquer necessidade.
Aqui há uns anos o escritório de um conhecido advogado muito meu amigo andava a tratar do divórcio de um dos meus filhos (*) e recebeu um mail dele a dizer que não concordava não sei com o quê e não pagava aquela parte do trabalho dos advogados (ele é um bocado impetuoso).
Perguntava-me então esse meu amigo o que fazer dado que era um filho meu.
E eu perguntei-lhe o que faziam com quem não lhes pagava, responde-me ele que lhe punham uma acção.
"Pois é isso que tem que fazer com o meu filho" e ele pôs a acção, nem sequer falei com o meu filho para tentar ultrapassar a situação a bem, ele também não tinha falado comigo antes de se deixar levar pelos seus ímpetos.
(*) - Óptimo divórcio dado que tinha sido péssimo casamento.
Mas não vale a pena explicar isso aos apaixonados, ficamos mal vistos até lhes passar a paixão.
Odeio aliàs ouvir "Tinhas razão", quando ouço isso já sei que a “caca” está instalada.
O Marcelo deu um grande tropeção. Nunca devia ter admitido que o filho lhe enviasse um email para depois o encaminhar para o governo. Mesmo que a sua intervenção se tenha limitado a isso será sempre uma cunha: implícita mas ainda assim uma forte cunha.
Finalmente no Público de 7/12, às 20:59, vinha a informação que há muito aguardava, quantos pedidos foram feitos para a utilização deste medicamento e o tempo médio de aprovação. Quanto aos pedidos, entre Julho de 2019 e Julho de 2021, foram aprovados 17 e o tempo médio de aprovação não foi superior a 1 dia. Acho que esta informação é da maior relevância, pelo menos a máxima populista "há para os outros, mas para os nossos não" fica sem sentido. Quanto ao resto desta história, ficamos a aguardar como acaba, mas, como dizia um dos muitos articulistas, se tivesse tido origem num qualquer ministro ou secretário de estado, a esta hora já estava a ser exigida a respectiva demissão.
Um artigo interessante do New York Times de 24 de Janeiro passado.
Mete o medicamento que sabemos e o que se passa desde há um ano no Brasil.
Googlar: “A Dilemma for Governments: How to Pay for Million-Dollar Therapies”
Sobre o que acima se disse sobre o catedrático que escrevia o nome da cunha a seguir ao do aluno, contava-se em Coimbra que (talvez esse) ao pedir ao bedel para fazer entrar o próximo examinando lhe disse:
- Fulano, faça entrar o Sr. ... Bispo-Conde! Título que era usado pelo Bispo de Coimbra.
Do desvalor - talvez raro - das cunhas
Já em pleno regime constitucional encontrei o pai de um colega de escola com quem ainda náo tinha contatado depois so meu regresso da guerra colonial e perguntei-lhe pelo Zé Tó. Resposta: nem sabes a euforia em que ele anda; depois de perder na candidatura a um lugar de direcção na [multinacional holandesa conhecidíssima] voltou na semana passada a ser chamado pelo administrador holandês que lhe perguntou se ainda estava interessado no lugar, pois que, tendo acabado de receber uma cunha da primeira-dama para a senhora que tinha sido seleccionada, tomou o recurso à cunha como sinal de falta de auto-confiança e 'demitiu-a' antes de assumir funções.
Se tivesse sido hoje, talvez eu dissesse: O que uma primeira-dama faz falta ao PR-Marcelo!
De cada vez que se aceita uma cunha, alguém fica prejudicado. Dessa vez foi uma pessoa que teria se presume que teria alguma qualidade, pois ‘esteve quase a ser admitida’, mas, enfim, era a única sem cunha …
Péssimo sistema.
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