Telefonema de uma amiga: "Então e o Arnaldinho?" Por um segundo, não percebi: "Já dei a volta ao teu livro e não encontrei lá a história do Arnaldinho! Por que é que a não incluíste". Essa minha amiga é leitora deste blogue e, por mais de uma vez, tinha-me falado de como tinha gostado da história do Arnaldinho que contei por aqui há muitos anos. Nem eu sei a razão por que não a incluí no livro. Mas vou repeti-la.
Tínhamos convidado aquele jovem casal brasileiro para jantar, em nossa casa, em Oslo, nesse início dos anos 80.
Ele era um diplomata que, numa situação transitória, viera fazer uma "encarregatura de negócios" - isto é, substituir o embaixador do Brasil - à Noruega, por alguns meses. A mulher e filho haviam-se-lhe juntado, por algumas semanas. Perguntaram se podiam trazer a criança, porque não tinham com quem a deixar. Dissémos que sim, naturalmente.
Eram pessoas muito simpáticas mas, desde o primeiro segundo, percebeu-se que a criança, o Arnaldinho, aí com uns três anos, era uma figura incontrolada na família. Logo após a chegada, desapareceu sozinho pela casa, sob o olhar benevolente dos pais, entrando e saindo, numa infernal correria, de todas as dependências.
Na sala, preocupado com os efeitos dessa peregrinação turbulenta por um apartamento não preparado para agitação infantil, ousei perguntar se não seria melhor mantermos o Arnaldinho por ali. Temi - e, mais tarde vim a verificar, com razão - por um puzzle de milhares de peças com que entretinha parte das longas noites nórdicas, no meu escritório. A custo, percebendo a minha preocupação, o pai lá se decidiu a ir procurar o Arnaldinho. Que chegou, puxado pelo braço, para se sentar junto de nós.
Alguns bibelots que estavam sobre a mesa da sala concitaram, segundos depois, a atenção do Arnaldinho, que se pôs a brincar com umas delicadas peças de cristal. Os pais, esses, sorridentes, mantinham uma serenidade total. A certa altura, não me contive:
- Arnaldinho, não mexa nessas peças, por favor.
A mãe do Arnaldinho lançou-me um olhar onde se lia alguma leve reprovação pelo meu comentário repressivo, aparentemente por estar a limitar a liberdade da criança, que, por acaso, nada tinha partido. Ainda. O pai foi um pouco mais sensível e repercutiu, docemente, o meu alerta:
- Você não toca nessas coisas, querido.
Encolhido num canto do sofá, os olhos do Arnaldinho estudavam opções ofensivas. E logo brilharam ao ver uma taça com cerca de uma dúzia de ovos pintados à mão, uma compra feita, meses antes, em Praga. Eu, nervoso e distraído da conversa, seguia o Arnaldinho pelo canto do olho. Vi-o descer lentamente do sofá e acercar-se a mesa. A sua mão sapuda avançou então, rápida, para um desses ovos, agarrou-o, olhou-o por um instante e esmagou-o sobre o tampo da mesa, espalhando a casca pintada.
Fiquei furibundo por dentro. Não eram peças muito valiosas, mas eram objetos de artesanato que, meses antes, havíamos trazido bem acondicionados, de carro, durante milhares de quilómetros. Vê-las desaparecer por uma destruição gratuita excedia a minha paciência. Mas contive-me, na esperança de uma atitude por parte dos progenitores do pequeno vândalo.
O pai do Arnaldinho teve então a reação máxima que, aparentemente, o estatuto da sua autoridade sobre a criança permitia:
- Arnaldinho, não faz isso! Então partiu o ovo!? Não vai partir outro, não?
O Arnaldinho tomou o remoque como um incentivo e a pergunta como um desafio. E, claro, avançou para outro ovo, que logo teve idêntico destino.
A mãe, "cool", sorriu. O pai "reagiu":
- Arnaldinho! Arnaldinho! Não parte mais nenhum ovo, está bem? Senão papai zanga-se!
“Papai” não ia ter ocasião de zangar-se. Porque, se ia partir, não partiu. Voei para o Arnaldinho, icei-o pelos braços e arquivei-o no canto oposto do sofá. Surpreendido pelo gesto, não tugiu nem mugiu. No silêncio pesado que, por segundos, se fez na sala, coloquei a taça de ovos e, um a um, todos os bibelots que pressenti pudessem ser alvo da sua ação destruidora na prateleira mais alta de um móvel que estava em frente. As mesas ficaram tristemente desertas de decoração.
O Arnaldinho ficou especado, sem "targets". E os nossos convidados, surpreendidos pelo meu afirmativo "preemptive strike", ficaram, em absoluto, sem graça.
- Então?! E o que bebem?, perguntei, aliviado, mas já com pena dos copos.
E, já nem sei como, lá se passou mais um jantar... diplomático. Por onde andará o Arnaldinho, nos seus quarenta e muitos anos de hoje?
13 comentários:
O Arnaldinho deve estar a acautelar peças de estimação de sua casa, nas prateleiras bem altas do móvel, não vá aparecer outro Arnaldinho e lhes dê o mesmo trato.
Adoro estas histórias, Muito sucesso para o livro Sr.Embaixador
Maria Isabel
Sem regras nem limites, receio que o Arnaldinho deve andar a fazer disparates bem graves ...
Bom Dezembro .
Outra história bem saborosa, com a ajuda dos seus amigos e conhecidos lá irá juntando uns apêndices às 700 páginas do livro, os quais poderão enriquecer as edições seguintes (*).
Aproveito a ocasião para uma constatação.
Não vou falar de “arnaldinhos”, todos passámos por isso, mais os que têm mais filhos e portanto mais festas de anos, nos tempos em que essas festas eram feitas em casa, vá lá que as destruições proporcionadas pelos “arnaldinhos” desta vida levaram a que quando chegou a altura dos netos já era habitual um espaço público qualquer, umas sandes e umas coca-colas.
Quero no entanto sublinhar que quase todos os “arnaldinhos” que conheci (e foram mais dos que gostaria de ter conhecido) se tornaram bastante ajuizados com a idade (alguns demais) e, em compensação, muitos dos que “não faziam mal a uma mosca”, por sonsice ou timidez, mudaram muito (alguns também demais).
Agora volto à constatação acima prometida.
Este blogue está muito bem provido de instrumentos de pesquisa, que funcionam bastante bem, recorro com frequência a eles e desta vez lá voltei.
Verifiquei assim quando é que a história do Arnaldinho apareceu por cá e fui dar uma volta pelos (muitos) comentários que lá estão, valeu bem a pena.
Esse ainda era um tempo em que as pessoas comentavam o dia-a-dia, contavam as suas historietas de vida, tinham prazer em partilhar experiências úteis ou apenas curiosas, escreviam com cuidado, faziam de certo modo parte de uma tertúlia.
Tudo isso entretanto entrou em desuso, fruto dos tempos imediatistas ou da constante pressa para ir fazer a seguir nem se sabe bem o quê, nem quando se encontram na rua ou se falam ao telefone vão muito além dos 5 minutos considerados o mínimo para não passar por indelicado (**).
E depois queixam-se que o mundo se tornou muito mais egoísta, nem lhes passando pela cabeça que também estão a referir-se a elas próprias.
(*) Não convém enriquecer muito um livro que já tem 700 páginas, ainda que eu conheça alguém que lida muito bem com livros gordos: desfaz os livros em “fascículos” mais maneirinhos, uma ideia prática mas que sempre me confundiu.
(**) É usual dizer-se que "um chato" é alguém a quem se pergunta "Como é que isso vai?" e ele explica tudo em vez de responder "Tudo bem" e seguir.
Sou dos que acham que se aprende com tudo e com todos e tenho aprendido muito com conversas que para muitos seriam consideradas "de chacha" e passam adiante daquilo que não seja elucubração intelectual sofisticada.
Em tempo, ía-me escapando.
Diverti-me imenso com o facto do "Arnaldinho" própriamente dito lá ter aparecido nos comentários (uns 30 anos depois) a agradecer-lhe a sua hospitalidade.
E com a sua resposta, está bem de ver.
Senhor Embaixador,
com esse passado de incivilizado e ausência de qualquer educação cívica por parte de pais incapazes deverá estar, provavelmente, na comitiva do Bolsonaro. Só pode!
Acabo de ler Pedro Correia no "Delito de Opinião".
Está lá tudo o que penso.
Incluíndo uma ligação a outro texto do próprio Pedro Correia também lá no DO com o título "Elogio da crónica".
Está lá isto neste último:
"Vou também praticando o género, sempre que posso: é a disciplina jornalística que mais se aproxima da literatura. Tenho pena de vê-la à beira da extinção, substituída pelo comentário anódino e sensaborão ou pela fatigante “análise” política que muitas vezes não é mais do que um mero piscar de olho a “fontes” de circunstância. Esquecendo por completo o leitor.".
Era exactamente a isto que eu me referi dois comentários atrás, que tento praticar como posso quando calha e de que sinto a falta por aí.
Não é o facto de eu também ter muitas teorias sobre como salvar o mundo que o vai salvar, o mundo não precisa de ser salvo pois sempre se salvou muito bem sem a nossa ajuda.
Portanto se algo do que vou contando fôr útil a uns e ajude a entreter outros já fico contente.
Só se questiona porque é que o Francisco não fez aquilo que fez - pôr em lugar alto todos os bibelots - mais cedo.
E poderia ter fechado à chave o quarto onde se encontrava o puzzle.
Ainda um excerto de uma resposta de Pedro Correia a um comentador no mesmo texto do "Elogio da crónica" que citei acima:
"A crónica - para o ser de facto - implica sempre um certo confessionalismo, algumas obsessões temáticas e a narração de uma pequena história."
Pela atitude permissiva dos pais da frenética criatura, que deixam o Arnaldinho fazer todos os disparates e até lhe acham graça, mesmo na casa de terceiros. Uma terapêutica e pontual palmada bem forte no rabo, talvez ele sossegasse.
Hilariante!!!!
Também eu fui á procura e encontrei o post original e claro, como sempre faço, li os respectivos comentários. Mas a pergunta do sr. Embaixador ao crescido Arnaldinho creio que ele não respondeu ?.:0
A história do Arnaldinho é das contadas com mais graça e humor neste blog. Lembro-me também de comentários hilariantes num post anterior, incluindo um do suposto Arnaldinho e da sua resposta, a que se referem Manuel Campos e Flor.
momentos de rara beleza...
Que máximo!
Além do "'Naldinho" a mamãe e o papai também estavam a precisar de uma aula prática de "psicologia aplicada".
A história dos ovos dava para umas boas teorizações de psicanálise de almanaque.
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