Anos 70 e 80 do século passado. Por esta altura de outono, quando passava por casa das minhas quatro tias, duas solteiras e duas viúvas, irmãs da minha avó materna, que viviam juntas nas Pedras Salgadas, recebia meia dúzia de malgas daquilo que, para a família, era a famosa "marmelada das tias".
Com a sua tradicional modéstia, a tia Helena, a mais dotada de entre elas para a doçaria, lançava umas rituais reticências: "Este ano, a marmelada não saiu lá muito bem..." E lá vinha eu, o sobrinho-neto guloso, com uma recheada saca de malgas, não sem antes me ter alambazado, no lanche na mesa da braseira, com uma sanduíche com uma bela fatia do produto, sempre acompanhada de uma idêntica porção do queijo de bola comprado no Frutuoso. (Um dia, o Frutuoso mandou fazer uns sacos de plástico, mas, por lapso ou pelos ínvios caminhos do senhor, saiu neles impresso "Furtuoso", o foi levado à conta do exagero da balança que usava e dos preços que praticava...)
Mas não era da marmelada, nem sequer da excelente marmelada das tias, que eu queria falar. Queria falar das malgas.
Desde miúdo até hoje, em casa dos meus pais ou depois da meia centena de anos que levo de casamento, que ouço uma conversa recorrente e nunca resolvida sobre malgas. Abre-se um armário e, à vista de uma qualquer malga, ouço logo uma referência à propriedade do objeto. No passado era: "Esta malga é das tias, temos de a levar de volta" ou "há que devolver esta malga à Mariazinha Rua", esta última uma senhora amiga que, por décadas, foi responsável pelos meus mais avantajados índices de glicose. Mais recentemente, a conversa passou a ser outra, mais ou menos lisboeta: "Esta malga veio, no ano passado, com a marmelada da Didas" ou "da Graça" ou "da Mariita". E a consciência, levemente culposa, de que aquilo não é nosso, fica a pesar no saldo de malgas cá de casa.
Não sei como se resolve, mas há um eterno problema com as malgas. Porque ele ainda se agrava quando, sem dolo mas com descuido, a marmelada confecionada cá em casa surge feita em malgas alheias. Mas já nem quero pensar nisso!
9 comentários:
dava uma Tese - e defendê-la.
Excelente história.
Para obviar ao problema das malgas, agora quem tem o cuidado de me oferecer esse precioso produto por aqui algures no país traz nuns "tupperwares", esta semana já recebi dois e vou a meio de um.
Claro que na malga é outra coisa mas eu não lhe ia de qualquer modo dar tempo a "envelhecer", assim facilita.
Acho que parte dos marmelos são aqui da minha produção (ou foram).
Em malgas vem a que compro em Lisboa, tenho muitas malgas para a troca.
Muito bom.
É sempre divertido acompanhar todos os anos esta troca de marmeladas. É um trânsito de malgas vazias e malgas cheias.
Parece que todos querem mostrar os seus dotes doceiros.
Aguardo em breve o capítulo das castanhas. Adoro ler estas cronicas.
Bom domingo
E a célebre e saborosa marmelada branca de Odivelas que é vendida em pequenas malgas? Conhecem?
"A Marmelada branca de Odivelas nasce no Mosteiro de São Dinis e São Bernardo de Odivelas, fruto do saber aprimorado pelas monjas Bernardas, ao longo dos séculos, distinguindo-se pela cor branca e pelo maior sabor a fruta."
Flor
Do "Público" de 1 de Janeiro de 2023:
"A marmelada de Odivelas “entrou” na UE e o “manjar dos deuses” ganhou asas.
A famosa iguaria odivelense obteve em Setembro a classificação de produto de Indicação Geográfica Protegida da Comissão Europeia e as suas vendas dispararam."
O meu coração balança entre essas estupendas marmeladas feitas com os marmelos dos outros e as mais vulgares e sem "IGP" da UE feitas com os meus marmelos.
Nestas coisas sou um sentimentalão.
Devo dizer que não aprecio doces (estou a falar a sério) pelo que posso comer marmelada às colheradas todo o ano desde que trave a fundo nas vésperas de fazer análises.
E convença o médico a não me prescrever a "hemoglobina glicada" porque essa dá os níveis médios da glicose nos últimos 2 ou 3 meses e bem me tramava.
A única excepção em doces, além da marmelada, é o bolo de bolacha, mas cada vez menos, anda muito por baixo a respectiva confecção, põem-se a inventar e é raro encontrar um decente.
Quem me dera ter problemas com malgas, mas não tenho doceiros-compoteiros na família e entre os amigos.
Manuel Campos boa tarde! A minha mãe fazia boa marmelada, encarnadinha, guardava-a na despensa nas tais malgas com uma folha de papel vegetal molhada de aguardente feita pelo meu avô que tinha alambique.
E sabe que eu já depois de adulta cheguei a fazê-la algumas vezes e até utilizava as velhas malgas? Pois é, aquilo dava muito trabalho até que desisti.
E a geleia de marmelo? Era uma delícia mas essa eu deixava a minha mãe fazer.
Senhor embaixador
Acredite que sou um especialista em marmelada; na minha infância havia marmeleiros na courela e a minha mãe não era pior doceira do que as suas primas. Assim, na próxima vez em que tiver dúvidas sobre qual das malgas tem a melhor marmelada já sabe a quem deve recorrer.
(É só pedir-me o endereço e depois enviar... Garanto-lhe uma apreciação isenta, tanto mais que não conheço nenhuma das suas primas...)
MB
Boa noite Flor
Pelo que sei a marmelada leva a folha de papel vegetal com umas pinceladas de aguardente para conservar, ora por aqui seria um despedício de aguardente porque eu não lhe dou tempo para se estragar, aliás não lhe dou tempo para nada de nada.
As malgas que se compram trazem o papel vegetal mas aquilo deve ter tratamento específico, que o papel nunca me cheirou a álcool.
A geleia dizem-me que dá muito trabalho , há por ali vários pontos que têm que saír bem à primeira.
Por aqui era habitual vir também geleia para minha mulher mas a senhora que tem a delicadeza de a trazer já informou que este ano não está para aí virada.
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