quarta-feira, outubro 25, 2023

Artigo que publiquei, há uma década, no "Diário Económico"


"Na minha vida diplomática, dei-me conta de que criticar a ação internacional de Israel obrigava sempre a um "disclaimer", implícito ou explícito, sem o que se erguia o risco de cair, de imediato, na jurisdição dos atentos polícias do espírito: cuidar em não poder ser acusado de anti-semitismo e nunca deixar de referir que o povo judeu foi vítima da violência nazi.

A ajudar a este temor reverencial soma-se, desde o primeiro momento, um racismo anti-árabe, que condicionou o discurso popular. Tutelados por regimes retrógrados, embrulhados em panejamentos que os indiciavam noutro patamar da civilização, os árabes são-nos mostrados como uma espécie de bárbaros, apenas desejosos de "deitar os judeus ao mar". Por isso, e porque não eram aceitáveis os métodos extremistas da Fatah ou o não são os das várias seitas em que a revolta palestiniana se balcaniza, aos olhos de muito mundo passou a "valer tudo" por parte de Israel, desde os assassinatos da Mossad ("extra-judicial killings", na linguagem eufemista das Nações Unidas) às incursões sem limite pelas terras vizinhas. Ninguém ousa lembrar que Israel se recusa a cumprir as resoluções que a ONU aprovou (já agora, sem oposição dos EUA), muito embora se levante um escarcéu se outros países procederem de forma similar (desde logo, o Iraque).

Durante a "guerra fria", Israel estava do lado "de cá" e os árabes do "outro lado", embora se soubesse que as coisas não eram bem assim. Os judeus eram o povo perseguido, rodeado de "facínoras" que aproveitariam o seu menor descuido para o esmagar. Por isso, para o ocidente, era de regra apoiar, sem limites, tudo o que pudesse ser apresentado em favor desse "enclave" não árabe, que "dava jeito" quando era necessário (sem que ninguém tivesse de "sujar as mãos"), por exemplo, para dar uma lição às ambições nucleares iranianas ou ver-se livre de alguns terroristas, esquecendo leis. É que, neste "racismo nuclear" que por aí anda, o Irão não pode ter a arma atómica, mas Israel está aparentemente "isento" da observância do Tratado de não-proliferação.

Os EUA, mobilizados pelo lóbi judaico, neutralizam toda a atitude que possa limitar a liberdade do Estado israelita. A Europa, com o ferrete da guerra a marcar-lhe a memória, vive entre piedosos protestos perante os "exageros" de Telavive e os negócios com a constelação dos governos árabes. Estes, com os conflitos entre si a prevalecerem hoje sobre a sua acrimónia face a Israel, vivem mais preocupados em fazer sobreviver os seus heteróclitos regimes do que se sentem mobilizados para a causa palestiniana.

O absurdo de tudo isto é que, se alguém se atrever a afirmar que Israel tem o indeclinável direito de ver respeitadas as fronteiras que lhe foram consagradas pelas resoluções da ONU, é imediatamente acusado de ser inimigo jurado do Estado judaico. E se ousar dizer que, em troca da segurança desse território, garantida, por exemplo, pela colocação de forças internacionais de paz, protetoras dessas mesmas fronteiras, Israel deve prescindir de quaisquer ambições territoriais e recuar na construção de colonatos em territórios que ninguém reconhece como seus, de imediato fica crismado de anti-israelita, provavelmente de anti-semita e, ainda com alguma probabilidade, sei lá!, de simpatizante nazi. Dei-me conta que não falei de Gaza. Para quê?"

Lembrei-me deste texto hoje, dia em que senti orgulho em ser diplomata português, ao ouvir as palavras de António Guterres.

15 comentários:

Anónimo disse...

Muito orgulho neste homem.

António Nunes

Unknown disse...

Excelente texto!

jj.amarante disse...

Refiro este post tão actual neste meu post (https://imagenscomtexto.blogspot.com/2023/10/guterres-o-google-o-chatgpt-pitonisa-de.html) onde falo sobre a dificuldade de prever o passado e onde também insinuo que os embaixadores raras vezes têm reacções irreflectidas embora seja frequente fazerem teatro.

Luís Lavoura disse...

António Guterres tem estado sempre muito bem, nesta crise do Médio Oriente.

J. Carvalho disse...

Muito bom e de uma tremenda atualidade numa guerra que nunca deixou de ser atual, sob que pretexto fosse.
Apreciei a tomada de posição de António Guterres que, sem deixar de criticar o crime hediondo do Hamas, desta vez, não deixou de alertar (e condenar) o genocídio que os radicais no governo de Israel estão a condenar todos os palestinianos.
A reação dos radicais judaicos a qualquer crítica que se faça é, como diz no artigo, qualificada de anti-semitismo, negacionismo e outras coisas afins, procurando desqualificar, dessa forma, a crítica e a pessoa. A verdade é que tem resultado porque há muito boa gente a inibir-se de criticar o que entra pelos olhos dentro.

Pedro Sousa Ribeiro disse...

Texto muito atual, mas que não agrada a alguns. Afirmações muito corajosas e apropriadas de António Guterres.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

E que sapientíssimas palavras!
Grande Guterres!

Audemaro disse...

Meu Caro Amigo,
Estava curioso, e confesso ansioso, por uma sua reação a este tema.
Sabemos que também aqui, não existem bons e maus, existem boas e más pessoas. E na politica deve ser difícil viver com esta gestão nos discursos, mas gostaria mesmo de ouvir a que considero ser uma sábia opinião: havia necessidade de neste momento recorrer a este discurso?

JFM disse...

Sr. Embaixador
Também fiquei muito orgulhoso pela clareza das palavras do engenheiro António Guterres

Tony disse...

O António Guterres, já voltou a falar na ONU e repetiu o que disse anteriormente sobre o assunto Israel/Palestina. O Embaixador de Israel na ONU, parecia um cão raivoso, contra o Secretário Geral da ONU. O Guterres foi muito claro e assertivo, sobre a questão. Ele, ainda há dias esteve no terreno e cheirou a pólvora. Gostei de ver os apoios: do Primeiro Ministro e agora do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Mas há, para aí no Burgo (Chega e IL) que estão contra. Não perdem pitada para irem ao palco. Até parece que o Chega vai apresentar uma Moção no Parlamento. O PPD/PSD, é que ainda nada disse. Não deve ter opinião.

Unknown disse...

Acho que o timing de António Guterres não foi lá muito apropriado para dar um contexto histórico do conflito, que é certeiro. Podia soar, como soou, como ua justificação dos excessos do Hamas. Podia ficar simplesmente pela condenação da violação por Israel do direito internacional humanitário.

Anónimo disse...

Senhor embaixador
Está de parabéns António Guterres e é muito assertivo e ponderado este seu texto.
(Como já referido noutro comentário, de Audemaro, também estava "a precisar" deste seu "post").
Porque o que se está a passar na "terra santa" é intolerável e é necessário que vozes se levantem, sem medo de ferir susceptibilidades. Notar: usei ali a palavra "medo".
Apetece-me dizer que é insuportável que a comunidade internacional permita - e nem sequer possa dizer nada - sobre o que se está a passar no "gueto" de Gaza.
MB

JA disse...

Todo o meu apoio, sr. embaixador!

Joaquim de Freitas disse...

Muito bem Senhor Embaixador. O Engenheiro Guterres disse justo ! Porque nao se pode ser mais claro: " que era importante reconhecer que os ataques do Hamas não foram realizados isoladamente. O povo palestino está sujeito à ocupação estrangeira há 56 anos...".

Quando o embaixador de Israel na ONU apelou à sua demissão e publicou nas redes sociais que não há espaço para uma "abordagem equilibrada", e que o "Hamas deve ser apagado da face da terra" e que o primeiro-ministro israelense não comentou , o que quer dizer que està de acordo com o seu embaixador na ONU,abre a porta àqueles que dizem que é "Israel que deve ser apagado da face da terra !"

Anónimo disse...

Orgulhoso de ser representado por este nosso grande HOMEM de seu nome ANTÓNIO GUTERRES. Israel devia ter vergonha de tentar amesquinhar um conterrâneo do grande diplomata português que salvou da morte centenas de verdadeiros Judeus. Quem deve pedir desculpas ao povo e governo português é o falhado e complexado do embaixador de Israel na ONU e o seu primeiro ministro fascista. Bem Haja dr António Guterres

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