"Ó doutor Seixas! Disseram-me que vai receber amanhã o Yossi Beilin? É verdade?"
A voz era de Jorge Sampaio, pelo telefone, pouco depois de jantar. Cedo na noite porque, ao que sempre presumi, o presidente deitava-se "com as galinhas".
O "doutor Seixas" era uma expressão que ele muitas vezes utilizava. Como só conheci pessoalmente Sampaio em 1993, quando eu vivia em Londres, nunca o tratei por "Jorge Sampaio", como ele passava o tempo a insistir que eu fizesse, comigo a persistir depois no "senhor presidente", que ele não gostava que eu utilizasse. Verdadeiramente, em privado, confesso que nem sei como acabei a tratá-lo...
Era, de facto, verdade que eu ia receber Yossi Beilin, ministro da Justiça de Israel de um governo de Ehud Barak, que visitava Portugal por uma qualquer razão e que tinha pedido para ter um encontro com o secretário de Estado dos Assuntos Europeus, que eu era nesse ano de 1999. Posso imaginar que nisso tivesse havido mão do então embaixador israelita em Portugal, um homem com quem eu tinha uma excelente relação.
Yossi Belin foi, por algum tempo, uma estrela no universo político de Israel. Como vice-ministro dos Negócios Estrangeiros de Yitzhak Rabin, Beilin é considerado o estratega israelita do Acordo de Oslo, entre Israel e a OLP. Foi com ele que o atual presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, trabalhou para a finalização do processo de paz. Depois do assassinato de Rabin, em fins de 1995, Beilin veio a ser ministro da Justiça e, mais tarde, dos Assuntos Religiosos, em governos de Barak. Saiu depois do Partido Trabalhista e passou para um partido mais à esquerda, de linha pacifista, Meretz, que chegou a liderar. Em 2003, viria a estar ligado à iniciativa de paz de Genebra e defendeu, anos depois, a ideia de uma confederação de dois estados - Israel e Palestina. Abandonou a política em 2008 e é hoje consultor no setor privado.
Jorge Sampaio, ligava-me nessa noite para pedir que, logo após o meu encontro com Beilin, eu lhe telefonasse. Ele recebia-o meia hora depois e pretendia uma avaliação minha, a montante da conversa que ele próprio iria ter.
Yossi Beilin era uma figura excecional e eu fiquei com a melhor das impressões, depois daquela meia hora de conversa. Sereno, ponderado, bom conhecedor das clivagens e fragilidades do lado palestino, pareceu-me sempre imensamente realista, em especial com uma grande "saudade" de Rabin. Lembro-me de me ter dito uma coisa que me marcou: uma das grandes dificuldades da gestão do processo de paz no Médio Oriente (na altura, a sigla PPMO fazia parte da nossa rotina) era o papel, nem sempre "helpful", dos países próximos de ambas as partes. Senti ali uma queixa em relação ao diverso mundo árabe e muçulmano, no tocante aos palestinos, mas igualmente à influência do lóbi judaico nos EUA, que não tinha um sentido unívoco e nem sempre estava em consonância com o ritmo da evolução do processo em Israel, imiscuindo-se mesmo na luta política doméstica em Jerusalem. Beilin pareceu-me cético quanto à possibilidade da União Europeia ter um papel substancial no PPMO, embora, na conversa, tivesse passado alguns "recados" que esperava pudéssemos canalizar para o debate Bruxelas.
Dei conta a Jorge Sampaio da conversa. Uma hora depois, ligou-me de volta:
"Doutor Seixas! Que figura, o Beilin! Com homens destes é que a paz naquela região pode um dia acontecer. Valeu bem a pena a conversa!"
A paz não aconteceu, apesar de homens como Beilin.
Há pouco mais de um mês, eu tinha lido uma entrevista de Yossi Beilin ao "El País" onde ele explicava, "crystal clear", as razões do impasse no processo israelo-palestino. Depois do atentado do Hamas e do que se passa e vai passar em Gaza, tudo ficará agora mais difícil. Mas vale muito a pena ler a entrevista, que aqui deixo.
Anotei que Beilin tem exatamente a minha idade, que é também a idade de Israel.
4 comentários:
Obrigado “embaixador Seixas” por nos ( me ) revelar o percurso do estratega Yossi Beilin. Mais um momento de aprendizagem, complementado com a incursão ao “El País”. “Cristal clear”.
"...Because of the settlements. And because of the rift between Hamas and Fatah...".
Tal como no poder político em Israel existia um "rift", minimamente democrático, entre as tendências internas, antes do dia 7/10.
Esta sangrenta e pricipitada iniciativa do Hamas é um sintoma da luta interna entre as tendências internas palestinas. E é o sinal de que o Hamas sabe, sabia, que estava, está a perder.
Dir-se-ia que o Hamas navega no "se não é para mim, não é para ninguém".
Caro Embaixador
A razão por que não deixo de ler diariamente o seu blog.
Em detrimento das notícias e comentários dos ditos especialistas nos media portugueses, os seus post´s – como este exemplo a propósito do conflito israelo-palestiniano – permitem-nos compreender com maior acuidade e rigor o que se passa nos meandros da política internacional.
PS: peço desculpa, mas não pude deixar de sorrir quando referiu o tratamento com que Jorge Sampaio se lhe referia "Ó doutor Seixas”!
Sorri, porque o modo como Jorge Sampaio o tratava, revela – ao contrário do que à primeira vista possa parecer – um sentido de respeito e de dignidade, ao contrário do que hoje acontece, como por exemplo, o do aquele seu interlocutor na CNN (major-general???, gabo-lhe a paciência de o continuar a aturar) que passa a vida a tratar os pivot´s da estação “sabujamente” por “sodoutor, sodoutora”!!!
Cordiais saudações
De impressões que vou colhendo fico com a ideia de que Jorge Sampaio era, nas relações privadas, uma pessoa mais estimulante e interessante do que aparentava ser enquanto Presidente.
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