sexta-feira, março 12, 2021

A fome


Acabo de ler que morreu Carlos Costa, o fundador do Trio Odemira. Desde os anos 50, o grupo musical foi muito famoso entre nós e atuava, com frequência, junto das comunidades portuguesas no mundo.

Não me admirei, por isso, em 1988, em deparar com o Trio Odemira em Kinshasa, no Zaire, onde eu tinha ido integrado numa missão chefiada, pelo jovem secretário de Estado Durão Barroso. Era, recordo-o, a primeira visita de Barroso a África. 

Numa das noites, o embaixador português no Zaire, Álvaro Guerra, oferecia um jantar a Durão Barroso e à delegação. Era uma refeição com várias mesas redondas, naquele imenso edifício da nossa embaixada que, nas vezes em que lá voltei, sempre me dava ares de um Palácio da Justiça do tempo do Estado Novo.
 
Convidados para o repasto estavam alguns dos interlocutores locais de Barroso e figuras da importante comunidade portuguesa no Zaire. Álvaro Guerra tinha perguntado se também podia juntar os integrantes do Trio Odemira, a quem queria fazer um gesto de simpatia. O secretário de Estado anuiu, claro.

A mais ansiada presença no jantar era, contudo, a de um homem poderoso do regime, o ministro das Finanças, com o qual não fora possível marcar um encontro, na agenda da visita ao país então ainda presidido por Mobutu. É que a resolução de uma determinada questão bilateral passava por ele e, por essa razão, tê-lo à mesa seria muito importante, para permitir “deixar cair uma palavra” sobre o assunto, como costumamos dizer nas Necessidades. Lembro-me de que Barroso não queria regressar a Lisboa sem ter um sinal sobre esse dossiê financeiro que muito nos interessava.

Chegada a hora, os convidados lá foram aparecendo, alguns com a costumeira imprecisão temporal africana. Porém, mais de uma hora tinha já passado e o ministro das Finanças não havia meio de aparecer.

Comecei a detectar algum desagrado em Durão Barroso, que era muito avesso a improvisos e a situações que saíam da rotina programada.

A certa altura, constatando o nervosismo crescente do nosso governante, já exausto das conversas preliminares com os seus interlocutores locais, recordo-me de que, quer o chefe de gabinete de Barroso, o meu colega António Monteiro, quer eu, termos dito ao Álvaro Guerra que seria importante passarmos à mesa. 

“Mas falta ainda o ministro das Finanças!...”, retorquia o Álvaro, cada vez mais embaraçado. Era uma pena, de facto, perdermos essa “cartada”, que ele preparara com tanto cuidado, mas tínhamos de acelerar as coisas, de uma vez por todas. O atraso do jantar começava a ser insustentável.

“Vou telefonar ao ministro!”, disse Álvaro Guerra, a certo ponto. Ora aí estava uma excedente ideia! E lá desapareceu para uma sala anexa.

Regressou cinco minutos depois. Trazia na cara algum desânimo pontuado, contudo, por um sorriso enigmático. E anunciou, a alguns de nós, que tínhamos de jantar sem o ministro das Finanças. Barroso mostrou um inicial “carão”, mas era preciso ir em frente.

Recordo que fiquei numa mesa onde também estavam os membros do Trio Odemira, entre os quais Carlos Costa, agora desaparecido, e o meu colega Manuel Lopes da Costa, que também se foi, há pouco tempo. Foi uma mesa com uma conversa extremamente animada!

No final, despachados que foram todos os convidados, restando nos salões apenas a delegação oficial portuguesa, alguém inquiriu: “E então por que diabo é que o ministro das Finanças não veio?”. 

O Álvaro Guerra, já com um amplo sorriso, lá nos contou a sua conversa telefónica com o convidado faltoso.

No contacto, tinha perguntado ao ministro se havia recebido o convite para o jantar dessa noite.

A resposta foi logo surpreendente: que sim, que tinha recebido, que sabia que era para estar com um governante português e que estava muito grato por ter sido convidado.

Desconcertado, o embaixador perguntou-lhe: “Et à quelle heure vous avez l’intention d’arriver, M. le Ministre?”. A resposta foi magistral: « Ah!, mais non, M. l’Ambassadeur, je vais pas. Ce soir j’ai pas faim… »...

3 comentários:

Unknown disse...

O Francisco está desatualizado. Ontem morreu outro fundador do Trio Odemira, um irmão do Carlos Costa. Morreram com cinco dias de diferença.

Francisco Seixas da Costa disse...

Não estou, não. À hora em que publiquei o comentário, não tinha morrido

Flor disse...

Ahahah não tinha fome!!!!

Eu encontrei por acaso o Sr.Júlio e o Sr.Carlos Costa, perto da minha casa em "Los Palos Grandes", Caracas. Cumprimentei-os e respondendo à minha pergunta de "o que fazem aqui" disseram-me que iam actuar no club "Centro Português" onde prometi ir vê-los. Foi uma noite bem passada, toda a gente os conhecia e trauteavam as suas canções. O Júlio veio á nossa mesa e a nosso pedido contou anedotas muito engraçadas, conversou, e mais tarde voltaram a actuar. Foi em 1981.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...