terça-feira, março 30, 2021

A confissão de Lúcio

                        


Nos dias de hoje, todos lhe chamam JN. Na minha infância, era conhecido por “Notícias”.

O ”Jornal de Notícias” era então um dos três matutinos do Porto, sendo os outros “O Primeiro de Janeiro” e “O Comércio do Porto”. (Havia ainda, na cidade, um vespertino, de escassa e muito local divulgação, chamado “Diário do Norte”. E o portista “O Norte Desportivo”, bissemanário do famoso Alves Teixeira).

Em minha casa, lá em Vila Real, liam-se os dois primeiros jornais. O meu avô materno comprava o “Janeiro” e o meu pai o “Comércio”, onde o seu irmão Severino Costa enchia meia página diária (!), como “correspondente” do jornal que, por décadas, foi em Viana do Castelo.

O “Notícias” era então o mais popular dos matutinos, com muitos “casos do dia” (“Talhante mata sogra a cutelo em Rio Tinto”) e, em especial, com uma crescente cobertura desportiva, que ocupava mais páginas do que as dos seus diretos concorrentes. Com os anos, os restantes jornais da cidade foram desaparecendo e o “Notícias” subiu ao topo das vendas. E, a nível nacional, foi mesmo um sucesso, antes de outros modelos mais ousadamente tablóides lhe disputarem a primazia.

Em 1966, fui para a universidade do Porto fingir que estudava engenharia. Alguém me disse então, um dia, que o “Notícias” recrutava gente para ir cobrir jogos de futebol entre clubes de segunda linha da cidade e periferia, tipo Aldoar-Paranhos ou coisas assim.

Pagava à peça, creio que dez escudos(*). Íamos ao estádio, recolhíamos a composição das equipas (com as referências ao guarda-redes, defesa, médios e avançados separados por três ponto e vírgula) e escrevíamos quatro ou cinco linhas do estilo: “O onze do Aldoar falhou um penalti, por Dionísio, aos 18 minutos, pelo que o prélio chegou empatado ao intervalo. Embora tivesse ficado reduzido a dez unidades, aos 60 minutos, por expulsão de Meireles, o Paranhos, com o campo então já sob forte chuvada, viria a marcar aos 75 minutos, por Sebastião, num livre de fora da área, terminando o jogo a vencer por 1-0”. Não tínhamos estatuto para fazer a mais pequena interpretação apreciativa e apenas a referência ao estado do tempo era admitida. Muito me ri com o Frederico Martins Mendes, responsável pela minha “contratação”, quando, muitos anos depois, falámos disso!

A tarefa era executada, em regra, aos domingos de manhã, o que conflituava, muito seriamente, com o caráter crescentemente lúdico das minhas noitadas de sábado. Embora os “dez paus” me fizessem muito jeito (o meu pai, lá de Vila Real, mandava-me 22$50 por dia, para comer na cantina e “extravagâncias”), creio que larguei esse excitante exercício de “jornalismo” ao final de poucos meses. Passei a ganhar outro dinheiro em inquéritos de publicidade, porta-a-porta, nada mal pagos, com a vantagem de poderem ser feitos em horas vespertinas.

Saí do Porto ao fim de dois anos. Mudei de vida. E tinha passado, entretanto, meio século. Numa tarde de março de 2015, andava eu à procura de um restaurante, algures na Beira, quando tocou o telefone: era o Afonso Camões, diretor do JN. Convidava-me a escrever uma crónica semanal no seu jornal. Sobre quê, perguntei. Sobre o que eu quisesse. Eu tinha então uma coluna quinzenal no “Diário Económico”, mas achei que podia ter graça “regressar” ao meu velho “Notícias”, agora travestido de JN.

E assim aconteceu. Já não escrevi sobre os “Aldoar-Paranhos”, mas dediquei-me a outros prélios, políticos mas não só, as mais das vezes sobre temas internacionais, praia em que me sinto melhor.

O JN veio, entretanto, a ter outros dois diretores. A ambos, quando assumiram funções, escrevi a colocar o meu lugar à disposição, porque é da lógica mais do que natural das coisas que cada diretor escolha os cronistas que entende melhor servirem a sua equipa.

Passam agora exatamente seis anos desde que iniciei a colaboração com o JN. Foram mais de 300 crónicas. E foi tempo de parar. 

Falhei, que recorde, uma única crónica: não enviei um texto na véspera do 1° de maio de 2015, porque pensei que o jornal se não publicasse no feriado. Ora o JN faz gala de nunca deixar de se “dar à estampa”, 365 dias por ano (“e 366 nos bissextos”, disse-me, orgulhoso, o Afonso).

Mas o meu grande e verdadeiro “encalacranço” - já prescreveu e posso confessar - foi uma tarde em que estava a intervir num painel, a debater um tema qualquer, no grande anfiteatro da Faculdade de Direito de Lisboa.

Vi o telemóvel a flashar. Era do JN. Enviei uma SMS para saber o que era: queriam saber a que horas eu ia enviar a crónica. Era dia de S. João, “fechavam” a edição às cinco! Eram três e meia! E o debate estava para durar! De um lado, tinha o Eduardo Paz Ferreira, do outro, o Rui Tavares. E ali mesmo, a tratar de “alhos”, escrevi no iPad um artigo a propósito de “bugalhos”, com a atenção dividida entre os dois assuntos. E não é que o texto saiu “jeitoso”?

Ao longo destes seis anos, enviei os meus artigos dos locais por onde andava: do México, da África do Sul, da Turquia, de Luanda, da Polónia, de Paris, da Áustria, da Colômbia, de Londres, da Estónia, de Maputo, de vários sítios de Espanha, de Nova Iorque, de Bruxelas, da Holanda, do Brasil, de Berlim, de aeroportos diversos, de mais algumas paragens e, claro, quase sempre, de Portugal, de muito do norte a algum pouco sul, a maioria das vezes de Lisboa, algumas do próprio Porto, mas também da Madeira e dos Açores.

Agora, a terrível “deadline” das terças-feiras, às oito da noite (antes era à quinta-feira, até que o Miguel Guedes me pediu para trocar de dia da semana com ele), essa hora limite para entrega do texto (às vezes esticada uns bons minutos), deixou de me angustiar. É que, tenho que admitir, houve dias de “brancas” e falta de ideias até muito tarde, outros em que tinha preparados dois textos, entre os quais tinha optar.

Do lado de lá da “linha”, no JN, tinha um interlocutor regular, chamado Lúcio Brandão. A “conversa” semanal, escrita ou falada, que, desde há seis anos, por vezes tínhamos, criou mesmo uma espécie de amizade virtual entre nós. E nunca nos conhecemos pessoalmente, acreditem! Já combinámos que, atenuada a pandemia, vamos beber um copo. Espero ouvir dele a “confissão” de como, desse “outro lado”, era visto o colunista cujas três centenas de crónicas ele teve de gerir, com quem “negociava” às vezes as frases para destaque. Estou interessado em ouvir essa “Confissão de Lúcio”, para usar o título da novela de Mário de Sá Carneiro.

Tive imenso gosto em ser colaborador do JN, jornal a que só posso desejar sorte e muitos leitores. 

(*) Um amigo diz-me que seria, pelo menos, o dobro.

Sem comentários:

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...