sexta-feira, março 19, 2021

Trabalhar o futuro


Vai para uma década, estive envolvido num exercício para a definição do novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional. Uma vintena de personalidades, empossadas pelo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, sob a coordenação de Luís Fontoura, produziram, ao longo de alguns meses, um extenso e muito detalhado trabalho.

Ele havia sido antecedido pela elaboração de diversos documentos temáticos, preparados no âmbito do Instituto de Defesa Nacional, que ajudaram a estruturar a nossa reflexão.

Após a entrega ao governo do nosso trabalho, o poder político extraiu dele o que entendeu e publicou-o, sob a sua responsabilidade, em Diário da República. Como é da natureza destas coisas, nem tudo aquilo que havíamos recomendado foi seguido, mas a legitimidade política existe, precisamente, para poder ser exercida no domínio das escolhas a fazer.

Pela parte do grupo, bem heterogéneo e diversificado, que havia estado envolvido no trabalho, houve a consciência de que tínhamos contribuído, da melhor forma que nos fora possível, para essa tarefa de interesse nacional, sem outra retribuição que não fosse o gosto de tentar sermos úteis ao país.

Os Estados têm obrigação de produzir uma reflexão regular sobre os principais eixos em que, com realismo e responsabilidade, assentará o futuro coletivo.

Desejavelmente, essa análise deve ser produto de um largo consenso, envolvendo atores oriundos de setores diversos de pensamento. Essa é uma regra básica para evitar o risco de que a reflexão redunde numa visão sectária, rebatível por perspetivas opostas, assim desvalorizando o que tiver sido produzido.

Nenhum texto desta natureza resiste ao desgaste do tempo e, muito em especial, às alterações de conjuntura, em particular daquelas nas quais o próprio Estado não consiga ter um papel determinante.

Para uma entidade internacional como é Portugal, um país com uma larga inserção externa - bastante maior do que a de muitos Estados com a sua dimensão - mas com limitados meios para poder garantir eficácia à sua voz, o principal esforço neste tipo de exercícios é começar por definir os valores que entendamos dever preservar, numa leitura atualizada da nossa soberania.

Daí decorre a definição dos factores e riscos que, num horizonte razoável, possam surgir como limitativos ou condicionantes do património de interesses a preservar. A isso se agrega, como lógico corolário, a definição de linhas orientadoras que devem ser observadas pelas políticas públicas nacionais, por forma a garantir a aplicação ótima dos recursos.

Este tipo de trabalhos processa-se sempre entre dois riscos: o de ser limitado por um pensamento conservador, que dê por adquiridos e imutáveis alguns paradigmas, e o da irresponsabilidade imaginativa, descolada da realidade, fruto da vontade de colocar tudo em causa. Descobrir o ponto certo de equilíbrio é a chave do sucesso destes exercícios, cuja real utilidade é sempre medida pelo modo como os governos traduzem esse quadro referencial em decisões no seu dia-a-dia.

Sem pretender ser polémico, limito-me a constatar que, entre nós, a governação costuma ser muito pouco sensível a visões estratégicas que abranjam mais do que a esquina do fundo da rua por onde caminha, isto é, a próxima eleição. Quero crer que nenhum executivo esteve disposto, até hoje, a proceder a uma aferição sobre o modo como a sua ação teve ou não em consideração aquilo que tinha sido definido nos “conceitos estratégicos” que, supostamente, os deviam ter orientado.

Lembrei-me disto ontem, ao terminar a leitura de um documento divulgado, ainda esta semana, pelas autoridades britânicas, em que é feita uma reflexão sobre os desafios que se colocam ao Reino Unido nas áreas da Segurança, Defesa, Desenvolvimento e Política Externa.

É muito refrescante poder apreciar um pensamento contemporâneo sobre o destino de um país antigo, que avalia o seu futuro com ambição e otimismo. Recomendaria que aquele estudo fosse bem lido entre nós.

Mais do que “chover no molhado” sobre o presente, a nossa grande responsabilidade é conseguir preparar o futuro. Nem que seja por mero egoísmo geracional: é que o futuro é o lugar onde “quem cá está” já vai passar o resto dos seus dias.

2 comentários:

Luís Lavoura disse...

Há alguma razão pela qual devamos ler a reflexão estratégica do Reino Unido em vez de lermos, por exemplo, a da Espanha, a da França ou a da Alemanha?

Francisco Seixas da Costa disse...

Porque acaba de sair. E as outras que referiu já as tinha lido.

Falemos então da velhice, através de Philippe Noiret

"Il me semble qu'ils fabriquent des escaliers plus durs qu'autrefois. Les marches sont plus hautes, il y en a davantage. En tou...