Nos jogos de salão, com dados, há um resultado que obriga ao regresso à primeira “casa”. Há dias, ao ouvir alguns comentários sobre o que se espera do novo presidente americano, em termos da sua atuação na ordem internacional, quase me pareceu que se prenunciava um regresso ao início do “jogo”, ao tempo antes de Trump.
Fazer de conta que Trump não existiu, que é possível voltar ao que muitos acham terem sido os “good old days” de Obama, é pura ilusão. Os países não são jogos. A América depois de Trump será, goste-se ou não, a América pela direção da qual a presidência Trump entretanto passou. E isso deixou marcas. E feridas, lá e nos outros. Mas é natural que algumas das decisões do presidente cessante venham a ser revertidas, embora provavelmente com um afã menor do que ele utilizou para tentar desmantelar o Obama tinha feito.
Vale a pena dizer, para sermos totalmente honestos, algo que, podendo não soar muito bem aos ouvidos de alguns, é uma pura verdade: a herança de Obama, em termos internacionais, é medíocre. A segurança do mundo, no fim dos seus oito anos, não estava em melhor estado do que aquela em que ele a encontrou – e isto, note-se, na sequência do desastre, quase criminoso, que George W. Bush tinha entretanto provocado.
Não tendo conseguido ter tempo para montar a agenda contra a China que tinha em carteira – isto, quase sempre, não é tomado em conta –, por ter ocorrido o 11 de setembro, a administração Bush atuou com toda a legitimidade no Afeganistão, com o apoio não apenas dos aliados como de outros parceiros, estes últimos aturdidos com a condenação esmagadora da barbárie terrorista.
Só que a América, tal como aqueles construtores civis que sempre nos convencem a fazer mais qualquer coisa na obra, na lógica do “já agora!”, achou que tinha de “explorar o sucesso”, como se diz em linguagem militar. Não só começou a entrar em “águas territoriais” russas, na Ásia Central e no Cáucaso, como mexeu no vespeiro do Iraque, tornando-nos a todos usufrutuários do Estado Islâmico, de que foi o involuntário criador. Recuou, ambas as vezes.
Obama herdou essa realidade e, sentindo o tropismo nacional favorável a um recuo do intervencionismo, foi incapaz de montar uma “exit strategy” minimamente eficaz. Lidou pessimamente com as “primaveras árabes”, deu vento ao aventureirismo franco-britânico na Líbia, hesitou no modo como tratar com a Turquia e Israel, revelou-se tíbio na Síria e na Ucrânia, deixou os aliados do Golfo em orfandade e apenas desenhou uma estratégia de contenção económica das ambições chinesas. O seu saldo é pífio e nem sequer com a Europa conseguiu estabelecer um laço sólido e operativo, salvo no acordo nuclear com o Irão.
Alguns dirão: mas, se passamos o tempo a acusar os Estados Unidos de excesso de intervencionismo, que autoridade temos para condenar aqueles que, em seu nome, procuram recuar dessas atitudes intrusivas?
Temos esse direito: é a mesma América que está em ambos os movimentos. A uma potência que se imiscui nos assuntos dos outros, à luz de uma leitura unilateral dos seus interesses, que tenta fazer passar por desideratos do mundo livre, é exigível que os “phasing out” dessas situações sejam feitos de forma responsável e, em especial, sem com isso fazer incorrer a outros, nomeadamente aos seus aliados, riscos que eles não criaram.
O modo como a América de Obama estava a sair da Síria já era irresponsável. Trump seguiu a mesma linha e, como que por “subcontratação”, deixou esse dossiê nas mãos da Rússia, que nunca esteve tão forte e presente na região. E, “para inglês ver”, deixa agora pelo Médio Oriente uma frágil aliança de pânico contra o Irão, em que mistura Israel e os regimes medievais do Golfo. Ao mesmo tempo, anuncia-se um novo caos no Afeganistão, onde a América enterrou muitos milhões de dólares, e os aliados europeus demasiadas vítimas, sem o mínimo resultado.
Esperemos pela política externa de Joe Biden. E que seja nova, não um “remake” de qualquer passado. Não se regressa à “square one”.
5 comentários:
Os problemas que o Francisco elenca neste texto - a Síria, o Irão, Israel, o Afeganistão - são todos eles de somenos importância.
O verdadeiro problema que a administração Trump deixa, é a guerra fria e, sobretudo, a guerra comercial que se está a criar entre os EUA e a China. Esse é que é um problema grande, mesmo muito grande.
O outro problema, relacionado com este, deixado pela administração Trump, é a utilização sistemática de sanções comerciais e de sanções financeiras, muito duras, como instrumento de política internacional. A administração Trump tem vindo a destruir sistematicamente o liberalismo nas trocas económicas internacionais.
Comparados com estes dois problemas, que nos afetam de forma grave embora indireta, o Irão e o Afeganistão são probleminhas regionais de importância muito lateral.
Com tantos defeitos, o saldo do Obama não é "medíocre", como diz, mas sim "mau"!
O Obama foi - e continua a ser -, uma imensa operação de marketing, que começou, logo, com o facto de lhe "apagarem" a metade branca, para o designarem como oficialmente preto.
Anónimo
que começou, logo, com o facto de lhe "apagarem" a metade branca, para o designarem como oficialmente preto
Agora estão a fazer ainda pior com a Kamala Harris, que é mais de 75% branca, aliás basta olhar para ela para se ver que é quase totalmente branca, mas que dizem que é preta.
O problema é que atualmente nos EUA e no RU se aceita a "auto-identificação" como sendo um direito de personalidade. Por exemplo, um homem tem o direito de dizer que é mulher e toda a gente tem que aceitar que se trata de facto de uma mulher, ainda que ele tenha barba e uma saliência entre as pernas. Da mesma forma, se a Kamala Harris diz que é negra, toda a gente tem que aceitar que ela de facto o é, ainda que seja óbvio para todos que a pele dela é branca.
“ a Síria, o Irão, Israel, o Afeganistão - são todos eles de somenos importância.” : são probleminhas regionais de importância muito lateral.”
Imagino o que poderiam pensar as famílias dos 380 000 vítimas sírias e todos aqueles que vivem há nove anos uma guerra atroz…se lessem o Sr. Luís Lavoura!
E as centenas de milhares de afegãos, iraquianos, líbios….mortos , muitos afogados ainda hoje!
E também os pobres palestinianos, vítimas de Israel, que vêm a sua pátria desaparecer todos os dias…aos bocados.
Quanto aos iranianos, que tenham dificuldades para vender o seu petróleo, que não possam importar medicamentos nem produtos alimentares, é um “probleminho”…
Sr. Luís Lavoura: São discursos deste género que alimentam o ódio aos ocidentais e o terrorismo internacional.
Que investigador, que líder, que observador não seria sensível à evolução do Médio Oriente e às consequências que esta evolução pode ter na vida de cada um de nós? Os meios de comunicação informam-nos dos horrores que são cometidos quando ultrapassam o limite do suportável. Por isso, protestamos, brandimos os valores que acreditamos serem universais: democracia, direitos humanos, etc.;.
L’analyse des événements qui ont marqué le Moyen-Orient au cours des cent dernières années montre l’importance du rôle des Occidentaux dans les processus qui ont conduit aux difficultés que nous connaissons aujourd’hui.
Os « probleminhos” fomos nós que os criamos. Nós os ocidentais.
Acordos Sykes-Picot (1916),
Quincy Pact (1945),
apoio ao Ayatollah Khomeini (1978-1979),
Guerra do Iraque (2003-2011),
Intervenção na Líbia (2011).
É claro que os ocidentais não são responsáveis por todos os desastres que afligem esta parte do mundo. Os abusos de muitas ditaduras, o surto de certas guerras e a violência resultante de conflitos internos na religião muçulmana estão completamente para além da sua influência.
A arrogância ocidental e a postura das lições que tão voluntariamente adoptamos tornaram-se insuportáveis, mesmo entre aqueles que estariam dispostos a trabalhar connosco para construir um mundo mais pacífico.
"a Síria, o Irão, Israel, o Afeganistão - são todos eles de somenos importância."
Mais uma Lavourice monumental.
"Imagino o que poderiam pensar as famílias dos 380 000 vítimas sírias e todos aqueles que vivem há nove anos uma guerra atroz... se lessem o sr Luis Lavoura."
Não lêem, graças a Deus. E nem sabem a felicidade que têm.
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