sábado, novembro 14, 2020

A cidade e a alcatifa



Nem me perguntem para que é que eu queria um pedaço de alcatifa, em Luanda. A verdade é que, tendo sido obrigado, por falta de casa, a ir ocupar um pequeno apartamento que, na altura da independência de Angola, tinha sido acabado por um “pato bravo”, a “mata-cavalos”, com torneiras cimentadas à parede (sem nenhuma canalização por detrás, é verdade!), havia nele partes da sala com um “soalho” de cimento, que só um pedaço de alcatifa disfarçaria. Mas onde comprá-la, nessa Luanda sitiada pela guerra civil, quase sem lojas, no início dos anos 80?

O chanceler da embaixada, Novais Ferreira, que conhecia os escaninhos de Luanda como os dedos das suas mãos, disse-me que, em tempos não muito distantes, um determinado comerciante português tinha tido alcatifas. Não custava nada passar por lá, embora a esperança de que ainda houvesse algo à venda fosse ínfima.

Mas eu, que estava farto daquela nódoa na minha sala, que lhe dava um ar de terraço, nem quis ouvir outra coisa. E partimos para a loja do tal português, Lousada, de seu nome, situada num edifício relativamente novo da zona baixa da cidade, na rua paralela à marginal, à Avenida 4 de Fevereiro.

Era uma sala comprida, com escassíssimos produtos, a maioria dos quais com ar de ali estarem, não para consumo, mas “para encher montra”, como então por ali se dizia muito. Ao fundo, estava um homem na casa dos 60 anos, refastelado numa cadeira, em frente a uma mesa de vidro. Era o tal Lousada, disse-me, baixo, o Novais Ferreira.

O Lousada falava, num tom bem audível e que era para o ser, para uma pessoa que entretanto ia saindo, cruzando-se connosco, dizendo: “Ó homem! Nem as pense! Alcatifa? Por estes tempos, o meu amigo não encontra um metro que seja de alcatifa em Angola. De Cabinda ao Cunene! Tire daí o sentido!”

Que raio de coincidência! Olhei para o meu companheiro de diligência, disposto a acabar logo com a aventura. O Novais Ferreira continuava, contudo, a avançar pela sala, até que chegámos junto do homem. Apresentou-me como um dos diplomatas da embaixada, chegado a Luanda há uns meses. O Lousada não pareceu muito impressionado: estendeu-me a mão, mas não se levantou.

Nesse instante, vislumbrei, debaixo do vidro da mesa, uma fotografia. Era do próprio Lousada, com duas crianças pela mão. Atrás, na imagem, estava a estátua de Carvalho Araújo, na avenida com o mesmo nome, em Vila Real. Arrisquei: “O senhor Lousada tem alguma coisa a ver com Vila Real? É que eu sou de Vila Real.”

O Lousada abriu-se num sorriso, levantou o corpo, que então vi ser pequeno mas pesado, da cadeira onde até aí se tinha mantido sentado, deu a volta à mesa e veio dar-me um abraço. “Eu sou de ...” e disse-me um nome de uma localidade do distrito que tanto podia ser Justes como Alijó ou Murça ou outra por ali; tenho boa memória, mas nem tanto! Voltei a atirar ao alvo: “Por caso, não é parente do senhor Lousada, da tipografia da rua Central?” Algo me sugeriu essa hipótese.

O sorriso do homem aumentou. Era, era de facto irmão daquela figura muito pequena, casado com uma senhora do mesmo porte, que, desde a minha infância, eu via passear, de costas muito estendidas, pela ruas da cidade. Pelos vistos, não eram uma família que se distinguisse pelo grande porte físico. Talvez mesmo pelo inverso.

Com a Minerva, o Vilarealense e o Agostinho da Travessa, a indústria do Lousada fazia parte do quarteto de tipografias locais. Tinha porta aberta entre a tabacaria do Fernando Choco e a sapataria do Julinho, em frente à casa fotográfica do Marius e aos eletrodomésticos do irmão deste, o Dionísio. Inundei o Lousada de Luanda com estes pormenores, para adensar a confiança e a cumplicidade regionalista.

No final deste reconhecimento mútuo, embora ainda sem a menor esperança, adiantei: “Indo agora ao que me trouxe aqui, senhor Lousada. Ando à procura de uns metros de alcatifa, mas, pelo que lhe ouvi dizer ao cliente que ia a sair, não há hipóteses, não é?”

O Lousada olhou para mim, sempre sorridente, pôs-me a mão no braço e disse: “Não faça caso! De que cor quer a alcatifa?”

1 comentário:

Anónimo disse...

Luanda dos inícios dos anos 80. Que saudades! Como se vivia ali bem, sem bens materiais, mas com imensa riqueza espiritual e idelógica!

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...