quinta-feira, novembro 12, 2020

Ainda Ribeiro Telles


A morte de Ribeiro Telles leva-me a contar, de novo, um episódio que creio que já aqui referi um dia.

É uma história que Nuno Brederode Santos ouviu a Melo Antunes, passada num Conselho de Ministros nos tempos do PREC. Nem o Nuno nem o Ernesto Melo Antunes já estão vivos para fixarem melhor os pormenores do episódio, que o primeiro contava, com a sua graça insuperável, nas grandes noites da “mesa dois” do Procópio. Vou tentar ser fiel àquilo que me lembro de ter ouvido.

Nesse ano de 1974, durante um dos três primeiros governos provisórios, o primeiro-ministro Vasco Gonçalves decidou levar a conselho de ministros o tema dos efeitos negativos de certas ações humanas na mudança no habitat que tradicionalmente acolhia a passagem de aves pelo estuário do Tejo.

A título excecional, para abordar o tema, decidiu convidar para ir ao conselho, para apresentar o assunto, o subsecretário de Estado Gonçalo Ribeiro Telles.

A temática ambiental, por essa época, era um assunto ainda muito pouco mobilizador, tratado mesmo com alguma sobranceria, pela classe política.

Ribeiro Telles, que os anos viriam a demonstrar que tivera razão antes do tempo, preocupava-se genuinamente com o assunto, mas, nesses dias de “politique d’abord”, era ainda difícil para ele captar a atenção dos seus pares.

Acresce que esse Conselho de Ministros estava estão, em absoluto, concentrado num determinado tema, sobre o qual era fundamental conhecer a posição do PCP, pelo que era importante ouvir o ministro sem pasta Álvaro Cunhal.

Naquela mesa em forma de ferradura, fechada no fundo, que Marcelo Caetano mandara construir, muito poucos anos antes, numa sala do primeiro andar da residência oficial de S. Bento (ainda por lá me sentei uma meia dúzia de vezes, vinte anos depois), Cunhal tinha um dos lugares imediatamente à esquerda do primeiro-ministro Vasco Gonçalves. À sua direita, o primeiro-ministro tinha sentado Ribeiro Telles.

Depois de uma (como habitualmente) longa introdução de Vasco Gonçalves, com que abriu o debate, iniciou a “volta à mesa” pela direita, isto é, por Ribeiro Telles.

À medida que este falava, percebeu-se que tinha aproveitado o ensejo para derivar para uma interpretação profunda das decorrências ambientais do que se pretendia fazer no estuário do Tejo. De certo modo, o raciocínio, típico do mundo do ambiente, era uma versão daquela metáfora científica consagrada de que “o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode provocar um tufão no Texas”. Ribeiro Telles explicava as consequências multiplicadoras de uma possível interrupção do pouso no Tejo das aves, no seu ciclo migratório.

Para o que aqui interessa, tratava-se de uma abordagem que, pela sua tecnicidade, suscitava um interesse apenas limitado por parte dos restantes membros do governo presentes. Ao que reza a crónica que me chegou, a maioria começava a revelar a sua impaciência: ansiavam ouvir o que Cunhal tinha para dizer e isso só ocorreria no fim da ronda de intervenções iniciada em Ribeiro Telles e que nele estacara.

Como sempre acontece nestas ocasiões, em que o que os outros dizem começa a interessar menos, a sala foi invadida por diversas conversas a dois entre membros do governo vizinhos de mesa, criando um crescente “bruá” de fundo que indisciplinava o exercício.

Vasco Gonçalves, ao contrário dos seus ministros, mostrava-se interessadíssimo naquilo que Ribeiro Telles dizia e, por mais de uma vez, pediu “silêncio” aos impacientes governantes. E, para crescente desespero destes, ia mesmo colocando questões ao interventor, inquirindo sobre pormenores que Ribeiro Telles, com o maior agrado, lhe ia detalhando, alongando assim, perante a impaciência geral, o seu tempo de palavra.

Foi numa dessas perguntas que o primeiro-ministro inquiriu: “E que ave seria mais prejudicada, nas suas migrações, por essa possível intervenção?” Ribeiro Telles respondeu-lhe: “O maçarico de bico direito”.

Nessa altura, as conversas na distraída sala estavam a tornar o Conselho já um tanto caótico e Vasco Gonçalves, desagradado, deu então um murro na mesa e, elevando a voz e com cara grave, disse: “Senhores ministros! Peço o favor da vossa atenção! O senhor engenheiro Ribeiro Telles está a falar sobre o maçarico de bico direito”.

A sala “acordou”, não tanto por um remorso de atenção, mas numa genuína gargalhada coletiva. E, agora já perante as caras sorridentes de todos, com Vasco Gonçalves furioso, Ribeiro Telles lá concluiu a sua explicação sobre os riscos que impendiam sobre o futuro do maçarico de bico direito, se privado de amarar no nosso Tejo e zonas adjacentes.

Minutos depois, finalmente, Cunhal teria oportunidade de intervir sobre o tal tema grave que a todos preocupava, quiçá, embora injustamente, um pouco mais do que o destino da ave que, por instantes, pousara, com inegável graça, nesses dias da Revolução.

Ribeiro Telles pode ter sido pouco ouvido nessa ocasião. Mas o tempo veio a provar que, afinal, era ele quem tinha razão ao dar voz e razão às questões ambientais que hoje determinam o nosso futuro.

7 comentários:

Anónimo disse...

Efeito colateral, senhor embaixador: o elogia à classe desse primeiro ministro tão vilipendiado por tantos. Esses tantos que, muitos deles, prestam bem menos que o tal maçarico...
MB

Luís Lavoura disse...

Assim se fica a perceber porque é que os Conselhos de Ministros demoram seis horas e terminam à meia-noite: porque todos os ministros são forçados a ouvir aquilo que a todos os outros apetece dizer, mesmo que não interesse à imensa maior parte deles.

Anónimo disse...

especiosidade? Não queria dizer especificidade?

Francisco Seixas da Costa disse...

Anónimo da 12.43. Agradeço a correção. Já ontem tinha retificado no texto do Facebook, mas escapou por aqui

Corsil Mayombe disse...

O Arquiteto Ribeiro Telles era um homem muito à frente do seu tempo.

Anónimo disse...

"Como sempre acontece nestas ocasiões, em que o que os outros dizem começa a interessar menos, a sala foi invadida por diversas conversas a dois entre membros do governo vizinhos de mesa, criando um crescente “bruá” de fundo que indisciplinava o exercício."

tambem relacionado com o que diz Luis Lavoura. Conheco varios sitios onde nao acontece, portanto surpreende-me a tirada inicial. Culturas,,,

Anónimo disse...

Parece que Luís Lavouras achava melhor que cada ministro fosse a despacho com o Presidente do Conselho...e nada soubesse do que se passava nos outros ministérios. Sempre era melhor, deve o Luís Lavouras achar, que só quem soubesse de tudo era o Senhor Presidente do Concelho.
Ai, que saudades, que saudadinhas...

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