quarta-feira, novembro 11, 2020

O império


Vi por aí uma polémica em torno de um cantor, autor de uma canção com o título de “Império”. Confesso que a minha curiosidade não vai ao ponto de ir ouvi-la.

Mas a polémica lembrou-me o Alberto. O Alberto era o meu cozinheiro em Luanda. Herdei-o do meu antecessor, tal como a lavadeira, a Domingas.

O apartamento em que eu ia ficar instalado, na marginal de Luanda, nesse longínquo ano de 1982, “eclipsou-se”, da noite para o dia, entre a partida desse meu colega e a minha chegada. Parece que foi “requisitado” pela Secretaria de Estado da Habitação local, embora a doutrina se divida sobre o que realmente se passou.

Quando cheguei a Luanda, instalei-me num hotel, num tempo em que a penúria de bens também atingia essas unidades. E aí tive de viver quatro meses, com as minhas mobílias encaixotadas na embaixada, até que arranjei uma nova casa. Foram tempos bastante complicados, mas ser novo ajudava.

O Alberto apresentou-se “ao serviço”, logo no meu primeiro dia de Angola. Por meses, não tive nada para lhe dar que fazer, embora pagando-lhe sempre.

Achei contudo estranho encontrar o Alberto, várias vezes, pelas escadas da embaixada, ao longo desse tempo. “O que anda a fazer por aqui?” (eu nunca consegui tratar um empregado, ou um soldado, por tu). Ele metia os pés pelas mãos, até que alguém me explicou: a embaixada tinha um acordo com uma padaria e o meu antecessor recebia uma partida de pão todos os dias, que era essencial para a alimentação da família do Alberto, que tinha muitos filhos e vivia num musseque junto ao aeroporto. Essa “pontualidade” ao serviço tinha, assim, uma explicação simples...

O Alberto, Resende de apelido, já não devia ser novo, porque tinha passado a idade militar. Tinha uma cara séria, fechada. Com o tempo, tive ocasião de apreciar esse fácies com ar de zangado. É que os problemas só surgiam quando o Alberto sorria: significava que tinha bebido, e isso acontecia bastantes vezes.

Sóbrio, o Alberto era um razoável cozinheiro, não o estando era um trapalhão e era preferível mandá-lo para casa. Quantas vezes, ao abrir-lhe a porta, de manhã, deparando com um sorriso escancarado e um hálito inconfundível, eu lhe dizia: “Vá-se embora, Alberto. Volte amanhã!” E o Alberto rodava os calcanhares e zarpava de volta ao musseque... com o pão do dia, claro.

Para além do resto dos copos de vinho, de toda a gente que tinha estado à mesa, num almoço ou jantar lá em casa, que ele escorropichava da bandeja entre a sala e a cozinha, o Alberto era fã de “caporroto”, uma aguardente cuja fermentação era às vezes acelerada com uso do ácido de pilhas elétricas... A sério! Uma vez provei! Não era mau de todo...

Um dia, fui com o Alberto à Corimba, um subúrbio de Luanda, no meu carro, buscar qualquer coisa para casa. Em Luanda, nesse tempo, passávamos metade do tempo a tentar arranjar coisas para comer e a outra metade a comê-las, em jantaradas com os amigos. Também havia bastante trabalho e tempo para dormir, claro!

Nessa viagem, pela estrada acidentada, a fugir aos buracos, perguntei ao Alberto que diferenças ele achava que havia em Angola, desde a independência, que tinha ocorrido apenas sete anos antes. Vivia-se então em guerra civil, Luanda era uma cidade sitiada, parte do país estava a ferro e fogo.

O Alberto nunca me pareceu ser um grande fã do MPLA. Sempre desconfiei que tinha simpatias pela Unita. Ele era de Sumbe, antigo Novo Redondo, uma localidade que ficava a algumas horas de Luanda, por uma estrada que, com o tempo, veio a tornar-se muito perigosa. Depois da independência, Sumbe chegou a chamar-se Nzunga Cabolo, até a historiografia do MPLA ter descoberto que esse herói tinha tido os seus “podres”. O Alberto, às vezes, enganava-se e falava da sua terra como Nzunga.

Nessa conversa, e via-se que o fazia com naturalidade, sem ser para me agradar, o Alberto disse muito bem do “tempo do colono”, designação muito comum em Angola, para identificar a época local “da outra senhora”. Esse tinha sido um período, segundo ele, em que “os mercados estavam cheios”, as estradas não tinham covas, “as coisas funcionavam”. A certo ponto da conversa, entusiasmou-se e disse mesmo: “Os portugueses deviam regressar”.

Achei aquilo um tanto exagerado e retorqui: “Mas quer que Angola volte a ser colónia de Portugal?” O Alberto olhou-me, com a cara séria que era a sua, e afirmou, com clareza: “Não, não! A independência é nossa, ninguém a leva!”. Tomei nota. O Alberto tinha toda a razão. E hoje é 11 de novembro, dia da independência de Angola.

Ao ouvir falar hoje de “império” lembrei-me desta conversa com o Alberto Resende, meu cozinheiro em Luanda. Que será feito dele?

9 comentários:

Anónimo disse...

Tmabem concordo com o Alberto... Angola e as restantes Provincias deviam ter tido uma independencia "a la Brasil"

Luís Lavoura disse...

a lavadeira, a Domingas

Não havia máquinas de lavar roupa? A roupa era lavada à mão?

Anónimo disse...

Dia triste!

Anónimo disse...

Maquinas de lavar na Luanda colonial ou nos anos 80? Oh meu Deus...
Fernando Neves

Luís Lavoura disse...

Fernando Neves

Não sei desde há quantas décadas há máquinas de lavar roupa em Portugal, mas creio que muitas. Em 1970 já havia, certamente.

Nunca pus os pés em Luanda. Mas não vejo porque é que lá não haveria de haver máquinas de lavar roupa, já no tempo colonial. Nem todos os colonos teriam criados para lhes lavar a roupa, creio.

Parece-me incrível que um embaixador não tivesse uma máquina de lavar roupa ao seu dispôr.

Prontos, fiz uma pergunta ao Francisco, ele que me responda, se quiser.

Corsil Mayombe disse...

..."(eu nunca consegui tratar um empregado, ou um soldado por tu)"...

Muito bem.
Eu também não!

Anónimo disse...

Luís Lavoura, se o embaixador disse que tinham uma lavadeira, é porque não tinha máquina de lavar roupa. Caso resolvido. Perguntou isso apenas porque lhe apetecia escrever aqui e não tinha mais que fazer? ;)

Anónimo disse...

Ora, ora... sobre as lavadeiras, vamos lá ver uma coisa. A mão de obra era muito barata. Já o era no tempo colonial e continuou a ser. Não havia família da metrópole, até simples funcionários públicos, que não tivessem dois criados, ama para os filhos etc. Em Moçambique o mesmo, com os mainatos, os moleques, as criaditas, etc. Para que queriam eles máquinas de lavar, ainda que as houvesse (até 74 deviam raras, mesmo por cá), para gastar energia?

jj.amarante disse...

Luís Lavoura:

Da publicação do INE "25 de Abril, 40 Anos de estatísticas", disponível na net em .pdf
Na pág. 34:
Percentagem de alojamentos familiares sem infraestruturas básicas em Portugal (na "metrópole") em 1970:
- sem água canalizada: 53%, sem esgoto: 42%, sem electricidade: 36%
Na pág. 55:
Percentagem de agregados familiares com máquina de lavar roupa em Portugal em 1987: 44%, em 2010: 93%

É provável que existissem máquinas de lavar roupa em Luanda mas como curiosidade, as lavadeiras tinham uma taxa de disponibilidade muito maior e deviam ser mais baratas.

Em Bissau em 1973/74 a "minha" lavadeira herdei-a do militar que fui render, vivia no bairro do Cupilon e chamava-se "Quinta da Silva".

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