sexta-feira, novembro 13, 2020

No fim do buraco

 


Da notícia, ontem à tarde, só vi o título, que dizia que a Apple ia ficar com as instalações de um restaurante de luxo, no Porto. Fiquei curioso, embora não espantado. A pandemia está a arruinar o setor da restauração e, neste, os espaços de maior luxo, aqueles que são muito impulsionados pelo turismo, estão a ser fortes vítimas. 

Qual era, então, o restaurante “de luxo” que a notícia dizia que ia fechar? Nem o restaurante era de grande luxo, nem sequer ia fechar, sendo transferido para outra área do imenso edifício onde estava instalado, debaixo do Hotel Intercontinental.

Trata-se do Café Astória, uma “marca” consagrada no imaginário portuense. Desde há alguns anos, o antigo café, embora mantendo o mesmo nome, tinha passado a restaurante. Era relativamente sofisticado, tinha um carta interessante, mas não se pode dizer que fosse de luxo. A relação qualidade/preço, com uma simpática decoração a ajudar, era bastante boa.

O Café Astória é um café com alguma história. Situado na esquina do Passeio das Cardosas, no fundo da Praça da Liberdade, a sua entrada dava para a estação ferroviária de S. Bento, que, ao contrário do que hoje acontece, foi, durante muitas décadas, o termo de quase todos os comboios que chegavam à cidade. E um café em frente a uma grande estação tinha então muita importância.

O Astória abria muito cedo. Muito mais cedo do que os vizinhos Imperial, Embaixador ou Brasileira. Lembro-me de aí se poder tomar (o último ou o primeiro, dependendo do freguês) café às seis da manhã, tendo a abertura, mais tarde, passado para as sete, ao que vim a saber. 

Na Baixa do Porto, a casa que encerrava mais tarde era a Stadium, uma espécie de bar na zona sul da rua do Bonjardim. Fechava às cinco. Começava então o “buraco”. 

O “buraco” era a designação que dois notívagos colegas - o Tavares e o Susano -, vagos estudantes de Economia, chamavam à hora que mediava entre o fecho da Stadium e a abertura do Astória. Mais velhos do que eu, tinham-me “adotado” para essas aventuras, às vezes com outros colegas.

Lembro-me de algumas noites começadas a jantar no Ginjal, pouso de algumas horas na Candeia, na rua do Almada, com um salto à Japonezinha, na praça da República, que acabavam inevitavelmente na Stadium. Depois, para “encher o buraco”, passeávamos até à ponte dom Luís. 

Não se bebia muito, nem eu tinha dinheiro para grandes folias, mas eles tinham artes de conseguir “estacionar”, sem gastos, por essas casas da boémia portuense, julgo que graças ao estatuto de universitários e à cumplicidade adquirida dos porteiros. Víamos o que por ali andava, entremeando com conversas interessantes e alguns conhecimentos de ocasião. Às vezes, recordo, essas noites tinham mesmo muita graça, naquilo que foi a minha iniciação à “grande cidade”.

Às seis, acabado o “buraco”, bebíamos um galão e uma torrada no Astória, antes de recolhermos aos lares universitários respetivos, eles na rua do Rosário, eu na Torrinha. 

Não é impunemente que demorei dois anos para fazer duas cadeiras, no meu nunca acabado curso de Engenharia Eletrotécnica. Mas a verdade é que só tive 18 anos uma vez na vida.

1 comentário:

Anónimo disse...

O que será feito do Tavares e o Susano, " vagos estudantes de economia" ? A expressão é óptima!

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...