terça-feira, novembro 24, 2020

Olá, António!


Não sei bem quantos andares eram, mas nunca menos de 14 ou 15, talvez mais. Pela regular avaria dos elevadores naquele prédio de Luanda, éramos muitas vezes obrigados a subi-los a pé, para ir jantar a casa da Élia (que saudades, não é?). 

Naquele noite, uma vez mais, não havia elevador. Lembro-me de ali chegar, com os bofes de fora, a pedir encarecidamente um gin tónico de salvação. E dei de frente com uma cara que conhecia, mas não reconhecia. Eras tu, António. Lembras-te?

Estávamos aí por 83 ou 84. Vivias, creio, em Cabo Verde. A Élia achava que nós éramos íntimos dos tempos do MES. Ora eu tinha sido sempre um militante relapso daquela singular formação política, ao contrário de ti que, anos mais tarde, com o Didas (que também andava connosco lá por Luanda), escreverias o “Uma Aventura Improvável”, o livro que, para sempre, desenhou aquela fantástica festa política, que nos deu em gozo aquilo que nunca nos daria em votos - e acho que ficámos muito bem servidos, em ambos os registos. 

Tu e eu conhecíamo-nos apenas vagamente, daquelas noites loucas da Dom Carlos, entre Tupamaros que saíam e gente do MIR a entrar, intercalados por turistas políticos e jornalistas “gauchistes” das várias Europas, lá no fundo chateados por sermos nós quem estava a viver a Revolução que eles não tinham conseguido fazer em casa. Naquela noite de Luanda, recordo-me bem, colámos memórias, refizemos o passado e inventariámos amigos comuns. E ali reforçámos uma boa solidariedade, que comungávamos e comungamos, porque a vida, sem ela, não tem graça nem dignidade.

E se nos tínhamos cruzado pouco no MES, também nunca nos chegáramos a cruzar na minha Vila Real, por onde passaste, ligado à família da histórica Pensão Excelsior, nos bilhares de cujo café registei as minhas mais expressivas tacadas. Não te refiro números, por modéstia...

A vida errante de ambos fez com que nos perdêssemos, apenas com episódicos reencontros, algumas vezes no Procópio, na “mesa dois”, capitaneados pelo grande Nuno. Em Londres, em algumas das minhas idas por lá, falámos bastante. Tenho fotografias dos jantares bizarros da Crabtree, connosco engalanados de smoking, ouvindo discursos a que era obrigatório achar graça e que, na realidade, às vezes, eram uma xaropada feita de inuendos e “private jokes”, entre o pessoal da academia do University College. Mas nós lá fazíamos cara alegre, para acompanhar a memória do Bartolomeu e a genica da Fernanda.

Um dia, saíste-me na “rifa”. Foste colocado em Paris, onde eu estava prestes a acabar a minha carreira. Deve estar ainda para nascer uma teoria conspirativa que irá ligar a tua ida à nossa amizade. Como temos disso a consciência muito tranquila, vivemos bem a certeza de que foi uma coincidência - uma feliz e magnífica coincidência que nos proporcionou alguns tempos, embora escassos, de trabalho conjunto. E, caramba!, fizemos por ali muitas coisas, algumas menos fáceis, como te recordarás, nesse tempo de “troika” e dos seus aliados por cá. Sempre com sentido de Estado, em que nunca recebemos lições de ninguém.

Mas, fora disso, também nos rimos bastante, nessa sorte de estarmos a trabalhar juntos. Vou-te agora revelar uma “diretiva” que a Dulce, a minha secretária, tinha: “O Dr. António Silva é a única pessoa que pode sempre entrar no meu gabinete sem necessitar de ser anunciado”. Só a Gina tinha idêntica “clearance”.

Mas tenho uma queixa - e tu, António, vais ouvi-la agora: deste-me cabo da saúde!

Se, há um ano, tive de trocar um joelho por uma coisa metálica que apita na segurança dos aeroportos, posso hoje revelar que, com toda a certeza, isso se deve às muitas dezenas de quilómetros que me fizeste percorrer, a calcorrear feiras nos arredores de Paris, onde demos milhares de mãozadas a industriais portugueses que ali iam propagandear as coisas mais diversas que produziam. O que eu aprendi sobre metalomecânica, toalhas, lençóis e bens correlativos, sabonetes ou espelhos que abriam ao meio para deixar à vista um plasma, para lustro e luxo das casas de compradores árabes ou “afro-residentes”. Percebe-se agora melhor por que, logo que chegado a Lisboa, fui trabalhar para o retalho. Ganhei-lhe o gosto...

Mas há mais, António! O meu fígado! O que eu bebi nas provas de vinhos que, sob a tua tutela, regularmente empestavam a residência, deixando eflúvios que ali permaneciam por dias! É que eu nunca soube provar vinhos, António: eu bebo-os. E, numa carreira em que, com brio, fui dando o meu fígado pela pátria, muitos trigliceridos ou agravamentos da Gama GT (uma marca laboratorial que sempre me soou a veículo açoreano...) foram devidos aos litros que tu me levaste a emborcar. Não venhas com desculpas, António, foi assim mesmo!

Há dias lembrei, num texto, a tua voz, a mandar-me acordar, no Salpêtrière, comigo saído de uma operação complicada, com a Gina, por azar duplo, a ter de estar em Vila Real, por morte do pai. Foi então com o teu inconfundível sorriso de deparei. Nunca esqueci nem te agradeci suficientemente esse instante.

A nossa presença comum em Lisboa, nos últimos anos, não nos fez juntar o que devíamos, em especial depois do regresso da Carol. Mas charlámos ainda bastantes vezes, combinando o registo sério - tu foste sempre muito mais sério do que eu, rapaz! - e a boa gargalhada. E, sempre, com a nossa eterna cumplicidade, que não precisa de ser explicitada, de tão óbvia que ela é.

Agora, António, depois da “pandemia” privada que se atravessou na tua vida, põe-te melhor, aproveita a presença da Sara e da tua neta por perto. Os teus amigos - e tens tantos! - querem-te de volta à vida deles.

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Há semanas, mandei esta carta ao António. A vida tinha-lhe pregado uma partida. Não sabíamos, nem ele sabia, que seria a última. Não te vamos esquecer, António. Um beijo imenso de pesar à Carol e à Sara.

1 comentário:

Luís Lavoura disse...

Quem é este António?
Tenho a impressão de que reconheço a pessoa na fotografia, mas não me recordo de quem seja.

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