domingo, novembro 15, 2020

O fim do Navegador


Ao “abrir” (pode dizer-se isto, fazendo referência a uma edição on-line?) o Público de hoje, dei de frente, num texto sentido de Alexandra Prado Coelho, com uma notícia desagradável: a falência de “O Navegador”. 

Era um restaurante situado no topo do Clube Naval do Rio de Janeiro, um lugar que tinha o ar decadente das coisas fora do tempo, um estilo que nos conduz frequentemente à frase nostálgica de “já não é o que era”. O que, no caso, até era gastronomicamente injusto.

Há um Brasil de outros tempos, com arquitetura datada, que sobrevive ainda em muitas da suas cidades. Nada tem a ver com Portugal, para quem esteja à cata de referências saudosistas. Liga-se a períodos da história brasileira contemporânea que, a partir de um certo momento, entraram em dessintonia com o mundo. O Rio tem muito disso, em especial depois que a “cidade maravilhosa” se viu desapossada, por Brasília, do papel político que tinha e, no plano económico, foi suplantada por S. Paulo. O chamado “centro da cidade” do Rio de Janeiro - que, olhando para o mapa, fica tudo menos no centro - é disso um flagrante exemplo.

Fui algumas, poucas, vezes ao “O Navegador”. A única que anotei na memória foi em 2005. Acedia-se ao restaurante por elevadores marcados pelo uso. Não dava tempo para nos preocuparmos... 

Anotei então que espaço era muito agradável, com um toque “rétro”. Creio que o local do almoço foi escolhido pelo Pedro Corrêa do Lago, que, ao tempo, dirigia a Biblioteca Nacional. Estava com a mulher, Bia, e o sogro, que era, nem mais nem menos que Ruben Fonseca, um génio da escrita e uma figura que eu sabia que raramente surgia a público. Não deu para falarmos.

Foi um almoço por ocasião da atribuição do Prémio Camões. O Adriano Jordão, conselheiro cultural da embaixada em Brasília, deve lembrar-se. Fiquei sentado entre a vencedora do prémio desse ano, Lygia Fagundes Telles, e Agustina Bessa Luís. 

Ao final de uma vida em que, por acasos de função, encontrei gente muito interessante - ou outra, que, não o sendo, era relevante por si mesma - dou comigo a pensar que deveria ter tomado muitas notas da interlocução com essa gente. Nunca o fiz. Não tenho o menor apontamento. Depois, pensando melhor: se estivesse preocupado a coligir apontamentos desses instantes, “perdia-os”... Por isso, sobra o que tiver de sobrar. Adiante.

Até esse dia, nunca tinha encontrado Agustina. Era uma mulher com um olhar vivo, perscrutante. Com surpreendente à vontade, ia fazendo comentários, de caraterização caricatural, às vezes cruel, sobre algumas pessoas à mesa. “Não acha que aquela tem ar de ...” Tinha imensa graça mas eu, confesso, estava espantado: não me conhecia de parte alguma, eu estava ali formalmente como embaixador de Portugal, e ela dava-se ao luxo (e dava-me a confiança para me introduzir nessa intimidade) de elaborar, ludicamente, sobre os circunstantes. Sem peias, com toda a liberdade.

Num certo momento, puxei a conversa para Manuel de Oliveira, perguntando-lhe por filmes que este tinha feito com base em romances seus. Quando esperava loas ao parceiro da passagem a filme das suas criações, saiu-me o contrário: críticas ao feitio de Oliveira, que era um “chato”, com quem tinha discussões. “Algumas vezes, deu-me cabo de boas ideias. Tem muitas manias”. Eu estava siderado, mas, pensando bem, acho que Agustina estava a fazer “um número”, a que achava graça.

Nessa mesma noite, no Copacabana Palace, quando Helder Macedo a elogiou, dizendo que “a Agustina é uma mulher feliz, só tem amigos, não tem inimigos”, guardei a réplica rápida: “ Não tenho inimigos? Posso não ter, mas faço-os...”

Volto ainda ao almoço no Navegador. A figura do dia, que eu tinha à minha direita, era Lygia Fagundes Telles. Eu (confesso!) tinha lido poucas coisas dela, mas agarrei aquilo que dela conhecia para ancorar a conversa. (Em voz não muito baixa, minutos antes, Agustina tinha sido franca: “Não gosto muito do que ela escreve!”). Lygia era uma figura pessoalmente muito interessante, com alguma doçura, nos 82 anos que então já tinha. Disse-me coisas simpáticas sobre Portugal e os seus amigos portugueses, que eram muitos. E, nunca mais o esqueci, repetiu uma frase que ouviu um dia ao seu pai, sumariando a sensação que ele tivera, numa viagem de barco a Lisboa: “ir a Portugal é como atravessar a rua para ir visitar um parente”.

O que a notícia sobre a falência de um restaurante nos pode suscitar!

1 comentário:

Anónimo disse...


O Rio de Janeiro também já teve um "Terreiro do paço" muito semelhante ao
que existe(ia) em Lisboa,
nos dias de hoje Praça XV" que fica no meio dos prédios
quando antigamente estava junto ao mar
claro que eles modernizaram tudo
"...Praça 15 XV de Novembro é vista em 1818 através de uma gravura do Rio antigo, praça esta então chamada Largo do Paço. A gravura antiga é comparada com vistas atuais. Assim temos uma visão desta local, como era 200 anos atrás e nos dias de hoje!
Neste vídeo é mostrada também a evolução do local com relação às construções históricas, modificações das mesmas e aterros levaram o mar para adiante, deixando o chafariz afastado do mar e do antigo cais."


mas pode-se ver nestas imagens antigas (1818):
https://www.youtube.com/watch?v=xHmK27RabS8

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