quinta-feira, setembro 19, 2019

Na sopa

O jantar começou tarde, com muito boa disposição, como é típico dos ambientes africanos. Era uma mesa muito longa, bastante larga, que apenas permitia conversa com os parceiros do lado. À minha esquerda, estava uma senhora bem servida de carnes, uma figura política local. À direita, tinha um franzino alto funcionário, encarregado das questões da dívida pública desse país.

A conversa iniciou-se com este último, que elegi como alvo de curiosidade protocolar sobre a situação económica. Fi-lo, confesso, mais por não ter outro tema de conversa do que por interesse particular sobre os equilíbrios macro-económicos dessa antiga colónia de um poder europeu, situada na África central. Deixei-o explanar as dificuldades, disse duas ou três platitudes e, numa pausa, voltei-me para a volumosa vizinha da esquerda, com quem encetei uma breve troca de impressões.

Na sala, entretanto, as conversas ressoavam altas e bem animadas. Era uma visita oficial portuguesa e o chefe da nossa delegação, frequentemente macambúzio, estava nessa noite de boa onda. A certa altura, senti um toque no meu braço direito e voltei-me, de novo, para o meu vizinho. O seu fácies pareceu-me estranho, estava agora silencioso e, em segundos, vi a sua cabeça, sempre voltada para mim, descair e entrar, com lenta suavidade ... na sopa! Continuava a olhar-me, de lado, com ar vidrado e parte da cara submersa no "consommé". Não consegui ver se estava pálido, por óbvias razões...

Por um segundo, fiquei sem saber o que fazer. Desmaiado estava, pela certa. Mas teria o homem morrido? Atrapalhado, dei um toque na vizinha da esquerda, na esperança que tivesse uma solução de emergência, mas ela estava numa conversa galhofeira com um qualquer membro da nossa delegação e não se voltou. Fiz gestos de chamada para as pessoas em frente de mim, mas os espíritos continuavam altos e ninguém me ligou nada. Optei por me levantar, o que levou algumas pessoas a olhar-me e, rapidamente, a notar o estado esvaído do meu antigo interlocutor.

Foi então que uma rápida operação logística se desencadeou. Como se estivessem já preparados e sem denotar surpresa, apareceram do fundo da sala dois latagões, que retiraram o corpo do homem. De seguida, criados recolheram com rapidez o prato de sopa e limparam a área. Tudo foi feito com tal despacho que até parecia rotina. Um minuto depois, num gesto de inusitada normalidade, sentou-se ao meu lado uma outra figura local, sorridente, que logo pretendeu retomar conversa social, como se nada se tivesse passado, quase ignorando a minha preocupação com o estado de saúde do meu ex-vizinho. O resto da mesa, salvo, por instantes, alguns membros da delegação portuguesa que estavam mais próximos, continuou na anterior cavaqueira, "business as usual". 

O homem tinha tido um ataque epilético, vim depois a saber. Já era costume, tinha acontecido várias vezes, em ocasiões diversas, ninguém estranhou nada. Só eu é que, nessa noite, perdi por completo o apetite...

2 comentários:

Anónimo disse...

“ África minha “ belo filme , mas ficção , já não existe . E também não era a Africa portuguesa ... Coisas do tempo em que não havia “ gente que não sabe estar “ ... ainda o Ricardo Araújo Pereira !!!

Anónimo disse...

Mas ainda eu : coitado do senhor que era doente . Espero que melhore .

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...