domingo, setembro 22, 2019

De Bouillon a Berasategui


Ao ouvir, há dias, na RTP, a jornalista Cândida Pinto perguntar aos líderes políticos qual era a sua refeição memorável de vida, dei comigo a responder intimamente à questão. E com grande facilidade.

Era o fim do verão de 1971. Eu andava, há mais de três semanas, numa das minhas viagens à boleia, pela Europa. Depois de ter ido até aos países nórdicos, regressava já ao sul. 

Nesse dia, tinha saído de Roterdão, na Holanda, e pretendia chegar ao Luxemburgo. Às vezes, naquela vida à boleia (o Interail ainda não tinha sido inventado, esclareço), as coisas não corriam de feição. Tinha já passado Lovaina e Namur, na Bélgica, mas o Luxemburgo ainda ficava longe e uma chuva miudinha, puxada a vento, tornava esse final de tarde desagradável, para quem tinha de ficar bastante tempo nos cruzamentos, de dedo estendido e uma placa de papel com o nome do destino pretendido. Surgiam boleias para pequenos troços mas, a certo ponto, percebi que já não iria conseguir chegar ao Luxemburgo nesse dia. Onde dormir, então? Já encarava a hipótese de uma qualquer pensão de estrada.

No guia de “pousadas de juventude” que trazia comigo, alojamentos que eu procurava e quase sempre consegui utilizar, descobri que, numa localidade um pouco fora do meu percurso, chamada Bouillon, local de que eu nunca ouvira falar*, havia um desses albergues. Já ao cair da noite, consegui, finalmente, uma última boleia que me deixou à porta da pousada, que sempre recordo que tinha uma vista deslumbrante, como se vê na imagem (que agora arranjei na net).

Entrei e ninguém estava no balcão da receção. Pousei a mochila, andei pela casa, seguindo vozes que ouvia ao longe e fui parar a uma espécie de refeitório. Num instante, vi os olhos de cerca de duas dezenas de pessoas que por ali estavam a jantar concentrarem-se em mim. De entre eles, ergueu-se um homem mais velho, que logo percebi ser o gestor da pousada. Olhou o meu ar, imagino que um pouco esbodegado pela atribulada jornada, e, com um sorriso simpático e acolhedor, disse-me: “Sente-se já! Venha jantar connosco. Acho que deve estar com fome. Tratamos da sua inscrição depois”. 

Tenho de confessar que o frango corado, com batatas e arroz, que comi nesse jantar em Bouillon, e que há quase meio século trago no meu arquivo gustativo de prazeres, compara muito bem com o almoço que, na passada sexta-feira, sob a batuta do chefe Martín Berasategui, também com uma bela vista, apreciei no “estrelado” Fifty Seconds, no topo da torre Vasco da Gama. A cada momento, o seu prazer.

(*Em tempo: o meu amigo Carlos Leite lembra-me que Bouillon era a terra de Godofredo do Bolhão, figura que a História nos ensinou. Eu sabia lá!)

2 comentários:

jj.amarante disse...

Será então que o Mercado do Bolhão no Porto se devia chamar "Mercado do Caldo" ou "Mercado do Godofredo"?

Luís Lavoura disse...

Pois eu há dias comi no restaurante Berneliu Uzeiga, em Vilnius, uma refeição que me soube divinalmente.
Não sabia que a cozinha lituana fosse tão boa!

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...