Este não é um texto fácil de escrever. É que, ao fazê-lo, mesmo para descrever uma simples realidade, sou já obrigado a encontrar artes para conseguir fugir ao “policiamento” semântico.
Um dia, em Luanda, fui com um amigo negro (devia ter escrito “afrodescendente”?) , hoje figura de destaque na vida política local, a um cocktail num hotel. A certa altura, quis chamar a sua atenção para alguém que estava do outro lado da sala, que eu tinha ideia de já ter conhecido antes. Expliquei que era "aquele tipo baixo, de casaco escuro, encostado à janela". Havia duas pessoas nessas condições, pelo que foi necessário dar um outro pormenor: "É o que está a fumar". Foi então que o meu amigo reagiu: "O preto? Já podias ter dito que era o preto...". Assim era, mas eu estava a hesitar dizer-lhe isso a ele, também preto, ou negro. E não disse.
Mais recentemente, na minha terra, em Vila Real, cruzei-me na rua com um amigo do tempo de liceu. Vinha acompanhado de um homem negro, que eu não conhecia e que ele me apresentou. Na conversa que entabulámos, falou-se da criminalidade na cidade. Referi que não sentia a menor insegurança nas ruas, mesmo à noite. A pessoa que tinha acabado de me ser apresentada corroborou, em absoluto, a minha perceção. Virando-se para ele, o meu amigo retorquiu, risonho: “Ora, ora! A ti, com essa cor, à noite, ninguém te ataca, porque ninguém te vê!”. Rimos os três, sem constrangimento. Mas, por um segundo, perpassou-me um leve incómodo, por ser a cor daquele homem que estava na génese da piada. Devíamos tê-la evitado?
Vieram-me à memória estes episódios, ao ver a polémica, de natureza similar, que agora envolve o primeiro-ministro do Canadá, por terem sido divulgadas fotografias de uma festa carnavalesca de estudantes em que ele, há 18 anos, estava vestido de Aladino e tinha escurecido a pele para construir a personagem. Caíram o Carmo e as cataratas do Niagara, assistindo-se a Trudeau a pedir desculpas públicas por esse “pecaminoso” passado. E, pior ainda, viu-se o seu opositor político a exigir a sua cabeça, porque uma pessoa “assim” mostrava não ter qualidades para dirigir aquele país.
Reconheço que são hoje inaceitáveis práticas e atitudes discriminatórias que, no passado, eram toleradas e não objeto de censura ou rejeição. O mundo evoluiu e ainda bem. Mas se nessa evolução não for possível preservar um margem sensata de adaptação temporal, feita de compreensão, tolerância e bom senso, o novo mundo acabará por ser perigosamente “orwelliano”.
11 comentários:
Casos semelhantes com finais diferentes ! E porquê ? Porque , apesar de uma certa classe politica portuguesa querer deitar achas na continuando a querer insinuar que os portugueses foram uns colonizadores que mataram e fizeram “ o diabo a quatro “ a esses povos do antigo “ ultramar “ , a verdade é que não foi assim , e a actualidade mostra que a amizade e carinho que essas pessoas sentem por Portugal e pelos portugueses está patente todos os dias ... não há rancor , não há ódio , não há desprezo . Continuam a haver amizades e até as brincadeiras por causa da cor da pele são prova disso ! Muitos ainda se consideram portugueses de coração . Isto quer dizer o quê ? Não acontece com mais nenhum país e a prova é o artigo que acaba de ser contado ! Houve guerra , houve , e muito feia e devastadora para os dois lados . Mas guerras sempre houve e haverá no mundo . Agora amizade entre pessoas que ainda estão vivas e foram contemporâneos nessas guerras , não acredito que exista em nenhum outro país ,
Afinal a política portuguesa não foi assim tão cruel , senão episódios como o que lemos neste post não existiriam . Mas existem com outros países .
Xenofobia ? Talvez . Mas noutros países . Cumprimentos
Atendendo a que o seu amigo é angolano, o PC não exige o "afrodescendente". Já o artificial "negro" podia ser ´substituído por "preto", palavra de igual valor e que os polícias do PC querem, à viva força, penalizar. Ninguém diz - convenhamos -, "Que belo rabo o daquela... negra", pois não? Ups... sexismo.
NOTA: PC = "politicamente correto"
Bernardo Silva, o futebolista português, também está no centro de uma polémica por ter chamado "conguito" a um ex-colega preto. Dá-se o caso de os dois serem muito amigos e terem por hábito trocar piadas. A "vítima" não só achou graça como ainda prometeu "vingança". Entre os dois, só risos - para os polícias do PC, só "crime"...
As cataratas do Niagara estão sempre a cair. Sem parar.
Quando a cantina reabriu este setembro encontrei a cozinheira, que é negra, e disse-lhe "vê-se mesmo que esteve na praia!", e ela retorquiu "estou escurinha, não é?".
(A pobre mulher evidentemente não esteve na praia, passa as férias em casa num bairro da Amadora.)
Nem mais!
Se o sr era negro e afro-descendente ,o sr embaixador seria euro-descendente e alvo. Acho eu que pura simplesmente diria e era mais fácil um preto acompanhado dum branco-
A censura é mesmo apertada : ou estás comigo ( politicamente ) ou estás contra mim !
É pena que assim seja , mesmo que o opositor não seja ofensivo nem mal educado . Pensava que a censura tinha acabado , com a extinção da Pide . Ou então estou enganado e é só um atraso na publicação ...
Perfeito. Discordo em grande parte do que escreve mas desta vez tem toda a razão.
eu sempre tive amigos , alguns mesmo do peito , pretos . a ofensa está no como se diz e não no que se diz . essa de chamar negro a um preto ( são sinónimos , não são ? ) nunca me caiu bem
Absolutamente de acordo com o facto de o "affaire Trudeau" ser uma tempestade num copo de àgua.
Se o politicamente correto não for combatido acabamos mesmo no 1984.
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