quarta-feira, setembro 25, 2019

A fugir à polícia


Este não é um texto fácil de escrever. É que, ao fazê-lo, mesmo para descrever uma simples realidade, sou já obrigado a encontrar artes para conseguir fugir ao “policiamento” semântico.

Um dia, em Luanda, fui com um amigo negro (devia ter escrito “afrodescendente”?) , hoje figura de destaque na vida política local, a um cocktail num hotel. A certa altura, quis chamar a sua atenção para alguém que estava do outro lado da sala, que eu tinha ideia de já ter conhecido antes. Expliquei que era "aquele tipo baixo, de casaco escuro, encostado à janela". Havia duas pessoas nessas condições, pelo que foi necessário dar um outro pormenor: "É o que está a fumar". Foi então que o meu amigo reagiu: "O preto? Já podias ter dito que era o preto...". Assim era, mas eu estava a hesitar dizer-lhe isso a ele, também preto, ou negro. E não disse.

Mais recentemente, na minha terra, em Vila Real, cruzei-me na rua com um amigo do tempo de liceu. Vinha acompanhado de um homem negro, que eu não conhecia e que ele me apresentou. Na conversa que entabulámos, falou-se da criminalidade na cidade. Referi que não sentia a menor insegurança nas ruas, mesmo à noite. A pessoa que tinha acabado de me ser apresentada corroborou, em absoluto, a minha perceção. Virando-se para ele, o meu amigo retorquiu, risonho: “Ora, ora! A ti, com essa cor, à noite, ninguém te ataca, porque ninguém te vê!”. Rimos os três, sem constrangimento. Mas, por um segundo, perpassou-me um leve incómodo, por ser a cor daquele homem que estava na génese da piada. Devíamos tê-la evitado?

Vieram-me à memória estes episódios, ao ver a polémica, de natureza similar, que agora envolve o primeiro-ministro do Canadá, por terem sido divulgadas fotografias de uma festa carnavalesca de estudantes em que ele, há 18 anos, estava vestido de Aladino e tinha escurecido a pele para construir a personagem. Caíram o Carmo e as cataratas do Niagara, assistindo-se a Trudeau a pedir desculpas públicas por esse “pecaminoso” passado. E, pior ainda, viu-se o seu opositor político a exigir a sua cabeça, porque uma pessoa “assim” mostrava não ter qualidades para dirigir aquele país.

Reconheço que são hoje inaceitáveis práticas e atitudes discriminatórias que, no passado, eram toleradas e não objeto de censura ou rejeição. O mundo evoluiu e ainda bem. Mas se nessa evolução não for possível preservar um margem sensata de adaptação temporal, feita de compreensão, tolerância e bom senso, o novo mundo acabará por ser perigosamente “orwelliano”.

11 comentários:

Anónimo disse...

Casos semelhantes com finais diferentes ! E porquê ? Porque , apesar de uma certa classe politica portuguesa querer deitar achas na continuando a querer insinuar que os portugueses foram uns colonizadores que mataram e fizeram “ o diabo a quatro “ a esses povos do antigo “ ultramar “ , a verdade é que não foi assim , e a actualidade mostra que a amizade e carinho que essas pessoas sentem por Portugal e pelos portugueses está patente todos os dias ... não há rancor , não há ódio , não há desprezo . Continuam a haver amizades e até as brincadeiras por causa da cor da pele são prova disso ! Muitos ainda se consideram portugueses de coração . Isto quer dizer o quê ? Não acontece com mais nenhum país e a prova é o artigo que acaba de ser contado ! Houve guerra , houve , e muito feia e devastadora para os dois lados . Mas guerras sempre houve e haverá no mundo . Agora amizade entre pessoas que ainda estão vivas e foram contemporâneos nessas guerras , não acredito que exista em nenhum outro país ,
Afinal a política portuguesa não foi assim tão cruel , senão episódios como o que lemos neste post não existiriam . Mas existem com outros países .
Xenofobia ? Talvez . Mas noutros países . Cumprimentos

Anónimo disse...

Atendendo a que o seu amigo é angolano, o PC não exige o "afrodescendente". Já o artificial "negro" podia ser ´substituído por "preto", palavra de igual valor e que os polícias do PC querem, à viva força, penalizar. Ninguém diz - convenhamos -, "Que belo rabo o daquela... negra", pois não? Ups... sexismo.

NOTA: PC = "politicamente correto"

Anónimo disse...

Bernardo Silva, o futebolista português, também está no centro de uma polémica por ter chamado "conguito" a um ex-colega preto. Dá-se o caso de os dois serem muito amigos e terem por hábito trocar piadas. A "vítima" não só achou graça como ainda prometeu "vingança". Entre os dois, só risos - para os polícias do PC, só "crime"...

Luís Lavoura disse...

As cataratas do Niagara estão sempre a cair. Sem parar.

Luís Lavoura disse...

Quando a cantina reabriu este setembro encontrei a cozinheira, que é negra, e disse-lhe "vê-se mesmo que esteve na praia!", e ela retorquiu "estou escurinha, não é?".
(A pobre mulher evidentemente não esteve na praia, passa as férias em casa num bairro da Amadora.)

Anónimo disse...

Nem mais!

alvaro silva disse...

Se o sr era negro e afro-descendente ,o sr embaixador seria euro-descendente e alvo. Acho eu que pura simplesmente diria e era mais fácil um preto acompanhado dum branco-

Anónimo disse...

A censura é mesmo apertada : ou estás comigo ( politicamente ) ou estás contra mim !
É pena que assim seja , mesmo que o opositor não seja ofensivo nem mal educado . Pensava que a censura tinha acabado , com a extinção da Pide . Ou então estou enganado e é só um atraso na publicação ...

Anónimo disse...

Perfeito. Discordo em grande parte do que escreve mas desta vez tem toda a razão.

diogo disse...

eu sempre tive amigos , alguns mesmo do peito , pretos . a ofensa está no como se diz e não no que se diz . essa de chamar negro a um preto ( são sinónimos , não são ? ) nunca me caiu bem

carlos cardoso disse...

Absolutamente de acordo com o facto de o "affaire Trudeau" ser uma tempestade num copo de àgua.
Se o politicamente correto não for combatido acabamos mesmo no 1984.

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...