quarta-feira, setembro 11, 2019

A crise dos rituais


Imagino que poucos leitores terão tido paciência para acompanhar, na madrugada de segunda para terça feira, a singular coreografia da cerimónia que consagrou o encerramento do parlamento britânico, imposto pelo primeiro-ministro Boris Johnson.

Durante o desenrolar do protocolo daquela cerimónia, houve um momento que me pareceu revelador: à chegada do representante da Câmara dos Lordes aos Comuns, em farda própria e em passo muito estudado, foram visíveis e audíveis risotas e gargalhadas por parte de muitos parlamentares, numa cena impensável há alguns anos. 

Ficou a sensação de que todo aquele gongórico aparato, feito de algum exagero no sublinhar dos rituais, pode estar já menos conforme com o “ar do tempo”. Mais do que isso: resultou a ideia de que existe um setor da classe política - seguramente correspondente a áreas homólogas na opinião pública - que já não está disposto a respeitar alguma dessa liturgia.

Minutos depois, quando os Comuns se deslocaram em procissão até aos Lordes, e nessa câmara foi lido, em nome da rainha, um discurso sem a menor substância relevante, preparado pelo governo, com a soberana a ser, no meio de tudo aquilo, um mero “carimbo” formal, era visível, na cara de todos os presentes a esse “teatro”, um sentimento de alguma distância face à “peça” em cena.

Os rituais não existem por si próprios: consagram um entendimento coletivo que serve de esqueleto formal às instituições. Todos eles, se olhados singularmente, podem quase sempre ser lidos numa perspetiva ridícula. O que os sustenta, o que lhes está subjacente, é o respeito às instituições que encarnam. Quando alguém se ri de um ritual, ri-se da própria instituição. 

Não quero, com esta leitura, deixar a ideia de que a monarquia britânica está em inevitável crise. Mas parece-me evidente que a circunstância de, sem qualquer escândalo, a sua liturgia começar a ser desrespeitada é um sinal claro de que as coisas já não são o que eram. E talvez importe perceber porquê.

O mundo parece surpreendido com o facto do fundamentalismo anti-europeu poder estar a abalar um sistema democrático que era tido por exemplar. É, aliás, sintomático que seja um partido dito conservador a titular essa mesma agressão, de que a insólita suspensão do parlamento é o ato mais evidente. Ora isso não pode deixar de ter consequências no modo como muitos britânicos passarão olhar, no futuro, as suas instituições. A monarquia, e a sua provada irrelevância neste grave contexto, pode vir a sofrer bastante com isso.

8 comentários:

Anónimo disse...

Ainda assim, na sua passividade, é uma monarquia que aceita e defende a Democracia, comportando-se como consequência desta e não se impondo a ela. Veja-se a diferença relativamente aos nossos vizinhos, onde o rei é um ator político que se põe ao lado de uns contra outros. Os britânicos têm sorte em ter uma monarquia assim, que não aceita colónias internas.

Esperam-se 500.000 (quinhentas mil) pessoas nas ruas de Barcelona, hoje, celebrando a identidade catalã e defendendo o direito à autodeterminação. Todos estaremos olhando para o lado...

aamgvieira disse...

A preocupação maior da Europa são os muçulmanos que em França e outros países já constituem bairros onde o estado já não entra.

Esse sim é o problema europeu, o resto é folclore.

Gato Aurélio disse...

...o Reino Unido em risco de se tornar desunido, que tempos estes, hein...?

Luís Lavoura disse...

O que [sustenta os rituais], o que lhes está subjacente, é o respeito às instituições que encarnam.

Não. Uma pessoa pode achar uma instituição respeitável, mas achar ridículo um ritual que dela faz (atualmente) parte. A instituição pode manter-se mas o ritual ser modificado ou eliminado.
Por exemplo, a Igreja Católica é uma instituição milenar, mas muitos dos seus rituais já foram modificados e/ou eliminados diversas vezes.

Anónimo disse...

Na SkyNews, em directo, o espanto dos apresentadores. Engasgavam-se sem conseguir explicar, nem acreditar, no que viam. O "Speaker", por seu lado, não conseguia manter o procedimento protocolar. É pena.

Os parlamento foram criados exactamente com os rituais que controlam as emoções primárias.
Protocolos para que os (genuínos) representante dos eleitores negoceiam entre si -sem ser de forma violenta- a multitude de interesses em presença. Ali falhou. Porquê?.

Aamgvieira tem razão. Outra consequência do que menciona no comentário é exactamente esta.
A eleição em certos círculos eleitorais como representante no Parlamento -perfeitamente de acordo com a Lei- de personagens provenientes de culturas que não as indígenas.
Desprezam e tentam destruir o edifício cultural para onde ocorrem.

E não é, nem será só no Reino Unido. Há culturas simplesmente não assimiláveis.
Pelo contrário, tentativamente dominadoras.
Será aconselhável persistir no politicamente correcto: meter a cabeça na areia?.

Augie Cardoso, Plymouth, Conn. disse...

A democracia inglesa a funcionar, mesmo no tempo de Alta Tensao.
O parlamento deu a palavra ao povo, o referendum, e agora nao a quer seguir ......

Anónimo disse...

estamos em época de grandes mudanças muito rápidas,
mas li algures que a City ainda funciona com os seus rituais
melhor ou pior, pelo menos isso

Mal por Mal disse...

Os ingleses indígenas ainda são maioria, mas muito pouco.

Antes que sejam minoria querem que os acordos shenghen e a europa vão para o raio que os partam.

Quem já não vai ter concerto vai ser a França, e Portugal já há muitos anos que está desconcertado.

Mas nós já estamos habituados.

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