sábado, setembro 18, 2010

"To go native"

Uma das fraquezas da vida diplomática é a possibilidade de alguém se deixar seduzir de tal modo pelo país ou pelo governo junto do qual atua que passa, de forma mais um menos acrítica, a tomar como suas as respetivas posições, muitas vezes em contraponto às próprias orientações do Estado que representa. 

"To go native" (ou, em tradução livre, ficar igual aos locais) é uma forma de mimetismo diplomático que pode arruinar a função e tornar irrelevante, quando não contraproducente, a ação do diplomata. Esta atitude pode comparar-se a uma outra, de sinal contrário, igualmente nefasta: a rejeição e diabolização das instituições e das figuras do país onde se atua, conduzindo a uma sistemática crítica negativa das suas políticas e tomadas de posição.

Conheço muitos casos de diplomatas que "went native", subscrevendo, com regular entusiasmo, tudo quanto emane do governo junto do qual estão a atuar, relevando a sabedoria das suas políticas, a argúcia dos seus dirigentes e a sistemática razão que lhes assiste. A maioria das vezes, isso não tem a menor das importâncias, para além do facto de desvalorizar o trabalho de informação que deve ser efetuado pelo posto. 

Um problema surge, porém, se e quando há algum conflito de interesses entre o governo que esse diplomata representa e o Estado junto do qual está acreditado. Por real convicção ou por tropismo comodista, já vi casos de colegas apostados em tentar que as nossas autoridades mudem de posição, que Lisboa siga no sentido dos interesses... dos outros. Às vezes, o argumentário acaba por ser tão criativo que não pode deixar de ter-se alguma admiração profissional por quem, do outro lado, os conseguiu convencer...

Que fique bem claro que não estou aqui a falar de "traição" ou sequer de deslealdade, coisa com que, felizmente, nunca na minha vida profissional deparei em nenhum colega - o que, aliás, seria muito estranho, num corpo diplomático, como o português, onde o patriotismo é uma marca bem reconhecida. Trata-se apenas da emergência sincera de uma convicção de que a posição do nosso país está errada e de que certa é a daquele em cuja capital vive. Ora a vida diplomática é o contrário disso: é a necessidade de fazermos passar mensagens favoráveis aos interesses que as autoridades do nosso país entendem dever promover como sendo os nossos, mesmo que não tenham "pitada" de razão. Como dizem os americanos - e todos os diplomatas devem ter como lema -, "my country, right or wrong".

Muitas histórias poderia contar para ilustrar este tipo de atitude, mas, a este propósito e num sentido algo diverso, vem-me à memória a relutância que um dia notei, de um representante português junto de uma organização internacional, em obstaculizar a entrada da Indonésia num determinado comité. Tratava-se de uma instância onde a unanimidade era requerida e, por essa razão, Portugal poderia aí objetivar a sua política de então, que era criar dificuldades ao país cujo isolamento tentávamos garantir, como indireta pressão para contrariar a sua atitude no caso timorense. O argumentário técnico para justificar a nossa rejeição à pretensão de Jacarta era nulo, pelo que se imagina o embaraço do diplomata português junto dos seus colegas, ao ser-lhe pedido para explicar o inexplicável. Mas ele era pago para isso...

Depois de ter suscitado por escrito, ou em contacto com os serviços do MNE, todas as sua possíveis objeções às nossas instruções, o embaixador pediu para me falar - estava eu então em funções de natureza política. Pelo telefone, explicou-me a sua dificuldade: "Eu não tenho argumentos para me opor à admissão da Indonésia. Os meus colegas acham ridícula a minha posição e isto é quase um vexame!". Reparei que o homem estava, de facto, numa posição difícil. Perguntei-lhe: "Mas você acha que nós não temos razão?". Ao que me respondeu, um tanto aflito: "Bom, nós temos as nossas razões, só que eu as não posso dizer abertamente, porque eles nunca as aceitariam".

Nesse passo da conversa, não vi outra solução: "Meu caro, nesse caso, 'go native' e diga aos seus colegas que, por si, até concordaria com eles e deixaria entrar a Indonésia. Mas que, 'lá de Lisboa', as ordens são imperativas e que você, como profissional que é, as não pode contrariar. Eles perceberão". E ele assim fez. E julgo que os colegas perceberam.

11 comentários:

Helena Sacadura Cabral disse...

E o mimetismo na política? Que cansaço!

Julia Macias-Valet disse...

Estranhei hoje que nao nos tivesse feito um post sobre isto :

http://sic.sapo.pt/online/video/informacao/NoticiasCultura/2010/9/dia-da-lingua-mirandesa-celebrado-com-lancamento-de-edicao-dos-lusiadas-em-mirandes18-09-2010-19213.htm

Afinal, o Mirandês é a segunda lingua oficial do nosso pais e hoje celebrava-se o seu dia.

Julia Macias-Valet disse...

E como o Senhor embaixador nao fez...lanço-me : )

La lhéngua mirandesa ye ua lhéngua romance falada an Pertual, ne ls cunceilhos de Miranda de l Douro (30 aldés) i de Bumioso (3 aldés), ne l çtrito de Bergança, nun spácio que ten pouco mais de 500 km2 i alredror de 7000 falantes. Ye ua region ancostada a la Spanha, subretodo la porbíncias de Çamora y Salamanca. L mirandés fui recoincido cumo lhéngua pula Assembleia de la República, que aprobou la lei nº 7/99, de 29 de Janeiro. Ende se reconhécen ls dreitos lhenguísticos de la quemunidade de falantes de la lhéngua mirandesa, mas cun muitas lhemitaçones. Assi i todo, essa lei marca un amportante renacer de la lhéngua al nible de l ansino, de la scrita i de l coincimiento fuora de las tierras de Miranda.

patricio branco disse...

houve um caso falado há 2 ou 3 anos que não sei se entra no go negative: o embaixador na unesco, manuel m carrilho, não quiz votar segundo as instruções do seu governo num candidato a uma eleição na unesco.
Esse candidato favorecido pelo governo de portugal acabou aliás por não ser eleito.
Já não recordo bem os pormenores, se mmc foi ou não votar (contrariado), se se absteve ou delegou em alguém para votar por ele. Na internet poderá ver-se o caso.
Deve haver outros exemplos do "go negative" ou ir pela contrária.

patricio branco disse...

reparo que o título é "to go native" e não "negative" pelo que o meu comentário perde um pouco da lógica, embora não toda.

José Martins disse...

Senhor Embaixador,
Apenas me vou referir à Indonésia em cima das relações com Portugal e a pressão política, do Governo Português, existente, relativo à ocupação do território de Timor-Leste.
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Ora eu estou enfronhado no assunto desde 1991 e no ponto geográfico e nevrálgico, a cidade Banguecoque, aonde era produzida uma luta, silenciosa e bem conduzida entre as Ong´s e um jornal local de língua inglesa.
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Entretanto as relações entre Portugal e a Indonésia cada vez mais se iam azedando, enquando os países, nossos parceiros, da União Europeia vendiam à Indonésia biliões de euros.
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Os nossos parceiros europeus, os Estados Unidos nas “tintas” se a Indonésia ocupava Timor-Leste, porque o que eles pretendiam era fazer grandes negócios com uma nação, na altura, com cerca de 180 milhões de habitantes.
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Poderia aqui citar vários casos e, inclusivamente, a forma doentia e estática do Governo Português em resolver o caso diplomaticamente e até seria evitado o “massacre” do cemitério de Santa Cruz em 12 Novembro de 1991, que estava inflamada a rebelião por alguma imprensa internacional pelo facto de não permitir a Indonésia a entrada, juntamente com um grupo jonalistas, o português Mário Robalo e a , Australiana, Jill Jolliffe.
Saudações de Banguecoque
José Martins.

Anónimo disse...

Expressão extremamente interessante do ponto de vista sociológico...
Tão fácil compreender o contágio nesse contexto,dada a exposição e proximidade.
Isabel Seixas

Mário Machado disse...

Talvez esse seja o maior desafio do serviço público cumprir ordens sem a convicção. Por que como todos sabemos ser patriota não é crer sem contestação no Estado e no governo.

Mas, é nessa hora que se deve ser profissional até mesmo para se demitir quando o que for pedido for de tal maneira incompatível.

Obrigado pela gentil nota em minha página.

Abs,

patricio branco disse...

interessantes os comentários de J Macias Vallet em lingua mirandesa, assim presumo. Ouve se falar dum "dialecto ou lingua" mirandêsa, mas é algo que não se sabe como é e qual a sua realidade. É utilizado ainda na vida prática no dia a dia? é escrita? existe uma gramática ou dicionários do mirandês? é ensinada nalguma escola da região? Tem alguma protecção e financiamento oficiais?
Pela amostra, parece me mais afastada do português padrão que o galego tendo portanto uma real personalidade.
O link que nos é dado e a informação da tradução dos lusiadas mostram uma certa dinâmica.
Há coisas que parecem pequenas, mas não são. A existência em portugal duma outra lingua é uma boa riqueza cultural e se se protegem gravuras de foz coa ou espécies em risco de extinção (lince iberico, águia, laurisilva) com mais razão se deve proteger a pratica e o estudo duma lingua que tem uma dimensão humana e cultural.
Vou tentar informar me mais sobre o mirandês e obrigado a JMV por ter dado as valiosas informações.

Julia Macias-Valet disse...

Caro Patricio Branco, como foi o unico comentador que se deixou cativar pelo assunto, aqui lhe deixo um documentario onde encontrara resposta a algumas das suas perguntas :

http://www.youtube.com/watch?v=3SIv2sF5jOM

patricio branco disse...

Obrigado a Julia Macias-Valet, vou ver

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