quarta-feira, setembro 01, 2010

Iraque

O presidente Obama anunciou ontem o fim das operações militares americanas no Iraque. As forças armadas dos EUA permanecerão, a partir de agora, naquele país, apenas para ações de formação, até ao termo de 2011.

Em 2003, o governo americano decidiu invadir o Iraque e derrubar o regime dirigido por Saddam Hussein. A sombra dos ataques terroristas cometidos contra a América, menos de dois anos antes, estava bem clara por detrás dessa decisão. Contudo, o argumento então utilizado foi a existência no país de armas de destruição maciça, que ameaçariam a segurança internacional. Washington considerou, embora sem grande convicção, ter cobertura legal para promover essa invasão, à luz de uma anterior resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Esta tese não foi, como é sabido, maioritariamente aceite pela comunidade internacional, que se dividiu entre a rejeição e o apoio à iniciativa americana, fratura que acabou por se refletir dentro da própria União Europeia. As autoridades portuguesas de então optaram por transformar Portugal num sujeito ativo nessa polarização, adotando, na circunstância, uma atitude que afetou o tradicional consenso político interno em matéria de ação externa.

Veio a verificar-se, entretanto, que não havia no Iraque quaisquer armas de destruição maciça, que tudo não havia passado de uma invenção para criar fundamentos para a invasão. Muitos de quantos haviam apoiado a intervenção à luz daquele argumento acabaram, sem surpresas, por reconverter o pretexto, sublinhando depois a importância de eliminar um regime ditatorial e instaurar um sistema político democrático. Tomando o mundo por ingénuo, evitam lembrar que romperam, dessa forma, as regras mínimas do direito internacional e que, por alguma razão, não mostram idêntico zelo face a outras ditaduras cuja sustentação estrategicamente lhes convem. Alguns, entre nós, fazem patéticos atos tardios de contrição, alijando as graves responsabilidades que tiveram na aventura em que envolveram o nome de Portugal, atitude que só não foi mais trágica porque lhes não foi permitido o envolvimento dos nossos militares.

O que se passou depois pode ajudar, cada um de nós, a fazer a avaliação do saldo político e humano desta intervenção: mais de 100 mil mortos entre a população iraquiana, um regime político frágil instalado em Badgad e, muito particularmente, uma indireta contribuição para o imenso reforço do regime iraniano, visto agora, por grande parte da comunidade internacional, como uma real ameaça à segurança coletiva.  Mas, mais do que isso, a invasão acabou por favorecer a consolidação da máquina de terror montada pelo extremismo islâmico, que passou a poder apresentar a agressão externa ao Iraque como tendo sido feita sob uma falsa base.

Nos últimos anos, a questão iraquiana esteve no centro de um debate que os Estados Unidos tiveram consigo mesmos, sobre o seu papel no mundo e sobre o modo como este os passou a olhar. A eleição de Barack Obama foi também, de certo modo, um reconhecimento do erro da estratégia seguida a partir da aventura no Iraque.

A história não volta atrás, mas é hoje muito claro que não são apenas os Estados Unidos quem está a expiar os seus erros passados. A instabilidade acrescida induzida naquela zona do mundo - e que tem, repita-se, a invasão americana do Iraque no seu eixo - é um dado com que todos temos agora de contar, no desenho da nossa segurança coletiva.    

11 comentários:

Anónimo disse...

Poder-se-ia escrever um ou outro comentário a este extraordinário Post, na medida em que é aqui feita uma excelente análise de todo esse trágico episódio que foi a invasão do Iraque e tudo o que desde então tem sucedido, em virtude disso. Seria todavia redundante e inútil. Está aqui tudo dito, de forma lúcida, quer no que ao plano internacional respeita, quer mesmo no nacional. Permitia-me apenas dizer que na minha modesta opinião esta reflexão sobre o Iraque dava um brilhante artigo de jornal. E assim, mais gente poderia ler e pensar sobre o que foi a questão do Iraque.
P.Rufino
PS: um Post a reler!

Carlos II disse...

Sr. embaixador.

Compreendo a invasão do Iraque como uma acção inserida na ideia da guerra preventiva.
Saddam preparava-se para possuir armas atómicas, atacar Israel e provocar o Ocidente.
É sabido que desejava ser uma potência regional, daí ter provocado uma guerra com o Irão e invadido o Kuweit -aqui porque havia a necessidade estratégica de ter acesso ao mar.
É evidente que a questão das armas de destruição e o ataque às torres gémeas foi um pretexto.
Que a invasão não teve em conta determinados aspectos,isso é outra coisa, porque evidentemente, transportar os nossos valores democráticos a quem não sabe o que isso é, parece-me um absurdo. Devia ser melhor calculado? Talvez. Como deveria ser feito? Não sei.
O terrorismo que por lá se passa, não é mais do que uma guerra civil latente, com a Al-Qaeda pelo meio.

Um abraço!

Anónimo disse...

“Saddam preparava-se para possuir bombas atómicas, atacar Israel e provocar o Ocidente”. Esta visão maniqueísta de ver certas coisas na política internacional é muito curiosa. A ideia que fica é que Israel e o Ocidente são actores inocentes neste Mundo e aquilo que fazem de errado tem sempre uma desculpa, uma explicação justificativa. Foi assim com Hiroshima e Nagazaki (preste-se uma homenagem a Barack Obama, o único Presidente norte-americano a lamentar aquelas atrocidades), é assim com as constantes agressões israelitas na Palestina e desrespeito ou ignorância das decisões das N.U, foi assim com a dita invasão do Iraque (a palavra”invasão” foi mesmo evitada durante determinado período), etc. Não se desculpando, em momento nenhum, as violações dos Direitos Humanos e as características de certos regimes ditatoriais, como era o caso do Iraque de Saddam, nem por isso se devem ignorar os erros e actos menos reflectidos, de forma a no futuro não se repetirem. A diferença entre uma Democracia e uma Ditadura deve residir exactamente na capacidade de a Democracia poder reconhecer esses erros e atitudes praticadas e aprender com eles, para melhorar o seu sistema. Agora, esconder a cabeça na areia, desculpabilizar, ou, pior, justificar o que não deve ser justificado, o que constitui um crime internacional, é má política. Só fragiliza uma Democracia que assim se comporta.
Daí que, este Post tem um interesse muito especial por ser não só clarificante relativamente a uma questão da história recente do Ocidente, mas falar desinibidamente, mas de forma objectiva, de certos factos, decisões e comportamentos que não prestigiaram quem os praticou e planeou. Julgo, todavia, que todos aqueles que naquela ocasião se envolveram, ou intervieram, negativamente, na questão do Iraque, souberam extrair as devidas lições, para que, no futuro, não se cometam os mesmos erros. Por mim, acredito nisto. Porque acredito nas virtudes da Democracia, apesar dos seus defeitos.
P.Rufino

ARD disse...

A guerra preventiva é uma violação manifesta do Direito Internacional.
E mesmo que estivesse provado, o que está longe de acontecer, que o Iraque "se preparava ara possuir armas atómicas, atacar Israel e provocar o Ocidente" - e seria extraordinário que "provocar o Ocidente" possa ser um "casus belli", ainda assim a agressão (porque foi disso que se tratou) ao Iraque sempre seria ilegal, ilegítima e condenável.
Nos termos da Carta da ONU, o emprego da legítima defesa por um Estado (do que, grosseiramente, a guerra preventiva poderia aproximar-se) só é aceitável no caso de esse Estado ser vítima de ataque armado, ou tentativa de ataque, vindo do Estado contra o qual lança mão dessa medida, e ainda assim, com caráter provisório, até que o Conselho De Segurança da ONU tome as providências necessárias. O direito do Estado à legítima defesa pressupõe a existência dum ataque prévio, real e efectivo.
O Iraque não praticou um ataque dessa natureza contra os Estados Unidos.
Por outro lado, usar "pretextos" - sejam eles as ADM e o ataque do 9/11 ou quaisquer outros quando se sabe que são apenas isso mesmo - pretextos - dá bem a ideia da justeza do ataque que Bussh e os seus "poodles" desencadearam.

Carlos II disse...

Meus caros amigos:
Existe alguma moralidade na política quando se pretende agir para este género de casos.

Alguma vez as resoluções da ONU ou o Direito Internacional ou a Declaração dos Direitos do Homem foram respeitados, quando a China anexou o Tibete, a Indonésia invadiu Timor, os soviéticos invadiram o Afeganistão, Milosevic travou uma cruzada étnica na ex-jugoslávia. Será o Irão também respeitador dessas resoluções? Foi Saddam respeitador quando invadiu o Kuwait?

Fácil é agora estar no sofá e analisar à posteriori. Difícil é tomar uma decisão. Ou boa ou má!

Alguém acredita na ONU e na sua autoridade?

Anónimo disse...

“Alguém acredita na ONU e na sua autoridade?” Bom, uma frase que até poderia merecer alguma reflexão (e análise), quem sabe!
P.Rufino

Helena Oneto disse...

Excelente texto Senhor Embaixador! subescrevo na íntegra os comentários de P. Rufino e de Gil.
A publicar!

ARD disse...

Respondo a Carlos II.


"Alguma vez as resoluções da ONU ou o Direito Internacional ou a Declaração dos Direitos do Homem foram respeitados, quando a China anexou o Tibete, a Indonésia invadiu Timor, os soviéticos invadiram o Afeganistão, Milosevic travou uma cruzada étnica na ex-jugoslávia. Será o Irão também respeitador dessas resoluções? Foi Saddam respeitador quando invadiu o Kuwait?"

Não, nesses casos não foram respeitados; isso apenas significa que os chineses que invadiram o Tibete, a Indonésia que invadiu Timor, os soviéticos que invadiram o Afeganistão, o Milosevic, o Bush e similares, são pão da mesma farinha.
O facto de o direito ser violado, quanto a mim, só sublinha a necessidade da sua existência. Se todos os homens se comportassem "como deve ser" não havia necessidade do Direito.
É claro que, ao invocar falsos pretextos para uma guerra de agressão que teve as consequências que estão à vista, os defensores da guerra estão a ser hipócritas e a reconhecer que não é legítimo atacar sem causas reconhecidas pelo Direito Internacional. E, como se sabe, a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude.
Por isso, a mentirola das ADM foi o reconhecimento da que o ataque foi lançado sem razões válidas.
Tudo o resto é cinismo de pacotilha.

"Alguém acredita na ONU e na sua autoridade?"

Muitas pessoas acreditam na ONU e gostariam que ela tivesse mais autoridade; mas a autoridade que a ONU pode ter é aquela que os seus membros lhe querem dar. Ora, Bushes, Milosevics, Shartos e quejandos decidiram qual é a autoridade que a ONU tem.

Nuno Sotto Mayor Ferrao disse...

Caríssimo Senhor Embaixador Francisco Seixas da Costa,

Efectivamente, fecha-se agora uma página, mas não um capítulo da História das relações internacionais deste século XXI. O erro de Bush e dos seus conselheiros neoconservadores consistiu em atropelar a vontade da comunidade internacional que na ONU não subscreveu a tese da guerra preventiva. No entanto, para além das dificuldades que criou e que constituem fragilidades acrescidas de estabilidade para o Médio Oriente e para o mundo que nos acabou de referiu com clarividência conta-se ainda o despesismo militarista que agravou a crise económica que hoje os EUA e o mundo vivem devido a várias razões de debilidade sistémica mundial. Os Estadistas de bom-senso e humanistas, como o Dr. Mário Soares e o Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, criticaram de forma acutilante a posição das autoridades portuguesas da altura.

A herança que nos é deixada, como nos diz o Senhor Embaixador Francisco Seixas da Costa, é profundamente negativa e exige da Comunidade Internacional um esforço colectivo para reabilitar o papel da ONU no complexo jogo de xadrez que temos pela frente.

Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt

Anónimo disse...

Caramba Gil! Meu Caro, você tem um martelo pilão! Quando bate até faz eco!
Cordialidade!
P.Rufino

Carlos II disse...

O caro amigo Nuno Sotto Mayor Ferrão, faz referência à opinião dos humanistas Mário Soares e Freitas do Amaral. Pois, discernir sobre o passado é muito fácil. Até dá um ar de humanista a quem os lê. Mas, acredite, se eles tivessem estado no governo na altura, teriam precisamente a mesma decisão, sabendo-se da política seguidista dos portugueses com os seus aliados.

Livro