Eça de Queirós
escreveu um dia que «a crise é a condição quase regular da Europa ».
Com um pouco de exagero, poderia ter dito que a guerra era também algo que, por
séculos, viveu historicamente inscrito no código genético do continente. Eça não
teve presciência para prever que, no período subsequente ao segundo conflito
mundial, a Europa viria a usufruir de um desenvolvimento em paz que lhe parecia
induzir um destino de felicidade eterna, não obstante conviver com vizinhanças
próximas sob elevada tensão. Um período em que as crises foram controladas e
que criou a ilusão, se não do “fim da História”, pelo menos da aparente garantia
de um não surgimento, em termos trágicos, de velhos demónios. O tempo veio a
atenuar essa ilusão, embora a Europa, comparativamente a outras áreas, seja
ainda um invejável oásis..
O projeto integrador europeu constituiu um inegável sucesso.
Mas o sucesso tem sempre um prazo de validade e faces inesperadas. Ao procurar
alargar-se a Estados que carrearam consigo uma cultura de valores diferente e obsessões
estratégicas muito diversas, por muito compreensíveis que estas últimas sejam,
a Europa mudou fortemente de natureza. Ao entender como inevitável levar a sua
integração a domínios que tocam de perto o cerne tradicional da soberania dos
Estados que a compõem, a União Europeia acabou por ressuscitar pulsões
nacionais que pareciam eternamente adormecidas. Alargamento e aprofundamento
criaram desafios a que a Europa parece ter dificuldade de ultrapassar.
Isso aconteceu por uma razão relativamente simples: ao não
comportar no seu projeto um modelo de representação operativa de interesses
onde, de uma forma vista como equitativa pelos seus cidadãos, estes pudessem
expressar e resolver, com eficácia e resultados, as preocupações muito
diferenciadas que os atravessam, a Europa como que obrigou esses mesmos
cidadãos a procurarem refúgio no único espaço onde, tradicionalmente, sentiam
representada com legitimidade a sua diferença – os Estados nacionais. O único
onde, para muitos deles, a sua voz conseguia ser ouvida. Ao fazê-lo, retiram
implicitamente legitimidade ao projeto europeu e dão força, no interior de cada
Estado, a quantos afirmam que a sede ideal para a resolução dos problemas é aquela
que lhes está mais próxima, provando que é o défice democrático e de
representatividade das instituições europeias que afasta estas dos cidadãos.
Esse processo de perda de representatividade das
instituições europeias agravou-se ao verificar-se que, na perspetiva de muitos
cidadãos, estas passaram a ser fautoras dos seus problemas e, muito menos, o
espaço e o mecanismo para a sua resolução. Alguns governos nacionais, como
forma de alienarem responsabilidades pelos seus insucessos, colocam também a
débito do projeto europeu grande parte das insuficiências que afetam o
quotidiano das populações – escondendo que a esmagadora maioria das políticas
que são objeto de contestação não relevam de decisões europeias mas,
simplesmente, de meras opções nacionais. Esta transferência de
responsabilidades, transformando a Europa num bode expiatório de tudo quanto
corre mal, é um ato de irresponsabilidade e de cobardia política. Mas é,
igualmente, um sintoma muito evidente de um mal-estar europeu que não parece
ter tendência a atenuar-se.
A Europa integrada vai, daqui a dias, comemorar o seu 60°
aniversário. Vamos ter discursos com muitas platitudes políticas. Infelizmente,
os seus líderes serão incapazes de uma autocrítica franca que explique as
razões do Brexit, a subida de Le Pen e congéneres, que denuncie quem, no seu
seio, lhe contraria os valores. A Europa vai comemorar um passado de que pode
orgulhar-se, mas para os seus cidadãos o futuro, para o qual parece com
escassas soluções, é o mais importante.