quarta-feira, fevereiro 15, 2017

"Sobre a diplomacia de prestígio"

Hoje, numa pesquisa na net, encontrei, por mero acaso, este artigo, intitulado "Sobre a diplomacia de prestígio", escrito há 20 anos na "Folha de S. Paulo" por uma grande figura brasileira, o diplomata e político Roberto Campos. Devo dizer que aprendi bastante ao lê-lo, recomendando-o vivamente a quem por aqui passa:

Na historiografia das relações exteriores costuma-se distinguir a "diplomacia de prestígio" da "diplomacia de resultados". Esta se baseia na análise de custos e benefícios. Aquela privilegia a capacidade de manipulação política, valorizando fatores ideológicos e psicológicos.

O grande mestre da "diplomacia de prestígio" foi o general De Gaulle, que conseguiu projetar uma imagem política do poderio francês muito superior à realidade econômica e militar. Mao Tse-tung fez o mesmo na China utilizando o efeito "massa", aliado a um furor ideológico, para criar uma ilusão de sucesso como modelo socialista. Alguns países adquirem prestígio político negativo pela sua capacidade de usinar problemas: Cuba, na América Latina, e Israel, no Oriente Médio.

O chanceler Helmut Kohl, da Alemanha, exemplifica, ao contrário, a "diplomacia de resultados". Manteve perfil político modesto, com alto desempenho econômico, balanceando custos e benefícios até conseguir a reunificação alemã e posição econômica dominante no continente. Reproduziu, num país derrotado, o desempenho do chanceler Bismarck, unificador da Alemanha no século 19.

O Brasil tem exemplo de ambas as coisas. O acordo nuclear com a Alemanha e a política terceiro-mundista foram ilustrações da "diplomacia de prestígio". A laboriosa construção do Mercosul, de outro lado, tipifica a "diplomacia de resultados". Um dos mais frustrantes exemplos da "diplomacia de prestígio" foi nossa longa campanha para obter reconhecimento como grande potência política nas organizações internacionais.


Desde 1923 o Brasil anunciava a sua pretensão de tornar-se membro permanente do Conselho da Liga das Nações (a qual, sem adesão dos Estados Unidos, se tornara um clube "europeucêntrico"). A oportunidade surgiu em 1926, quando, após o tratado de conciliação de Locarno, a Alemanha obteve o apoio franco-britânico para tornar-se "membro permanente" da liga. Para evitar a candidatura da Polônia, houve um veto a novas inserções no conselho. Ficou prejudicada a candidatura do Brasil, que sofria objeções européias e dos próprios latino-americanos, interessados no sistema de rodízio. O Brasil revidou com um veto ao ingresso da Alemanha e acabou, pouco depois, renunciando à sua cadeira na Liga das Nações.

Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, em reunião com Vargas, o presidente Roosevelt, grato pelo apoio bélico brasileiro por meio da cessão da base aérea de Natal, declarou que proporia para o Brasil uma posição de relevo na futura ONU, a ser criada após o conflito. Na conferência de Ialta, com Stálin e Churchill, em 1943, Roosevelt aventou a idéia dessa participação especial brasileira. Stálin objetou, alegando que a União Soviética não tinha relações diplomáticas com o Brasil (essas só viriam a ser restauradas em 1945). Na realidade, Stálin queria limitar o CS (Conselho de Segurança) a um diretório tripartite dos Estados Unidos, União Soviética e Grã-Bretanha. Apenas relutantemente aceitou o acesso dos chamados "países derrotados" -França e China. O Brasil teve de se contentar em inaugurar o sistema de rodízio no Conselho de Segurança, cabendo-lhe um primeiro mandato de dois anos na instalação desse conselho, em 1946.

O tema continuou por muito tempo como brasa sob cinzas no Itamaraty, sem análise realista dos custos (que são muitos) ou dos benefícios (que são poucos). O custo deriva da responsabilidade maior dos membros permanentes do Conselho de Segurança na montagem das operações de paz, com implícita aceitação de maior participação em seu financiamento.

Suscitar-se-iam também rivalidades regionais (agravadas no caso brasileiro por sermos uma ilha de cultura portuguesa num mar hispânico). A vantagem seria a projeção externa de nossa imagem política. Mas essa projeção melhor seria alcançada como subproduto do desenvolvimento econômico, à guisa do que fizeram Alemanha e Japão. Poucas objeções haveria à nossa pretensão se o Brasil voltasse ao milagre de desenvolvimento da década dos 60, pois combinaríamos o efeito "massa" com o efeito "eficiência".

O assunto ressuscita agora porque os Estados Unidos, desejosos de dar reconhecimento ao peso econômico e militar da Alemanha e Japão, concordaram em acrescentar aos atuais membros permanentes do Conselho de Segurança -Estados Unidos, Inglaterra, França, Rússia e China- mais cinco países.

Duas candidaturas, a da Alemanha e do Japão, são consensuais, confirmando o valor da "diplomacia de resultados", pois essa promoção política seria mero registro de sua ascensão econômica e militar. Os outros três lugares caberiam, respectivamente, à América Latina, à Ásia e à África. Abre-se aqui uma "caixa de Pandora". Na Ásia, o candidato natural seria a Índia, que sofre impugnação do Paquistão, despontando, à margem, a candidatura da Indonésia, que alega representar também a cultura islâmica. Na África, competem o Egito, com maior tradição diplomática, a Nigéria, com potencial econômico, e a África do Sul, como democracia multirracial pós-apartheid.

Na América Latina, além do Brasil, o mais antigo pretendente, há que levar em conta a Argentina, que apóia o rodízio, e o México, que preferiria o "status quo" a um reconhecimento explícito da prerrogativa brasileira. Mesmo na Europa, onde a candidatura alemã é consensual, começam a aparecer ambições latentes na Itália e Espanha...

Mesmo transpostas as dificuldades de seleção, surge a questão do direito de veto, hoje menos importante que na época da Guerra Fria, mas ainda de valor cautelar. Os Estados Unidos prefeririam excluir desse direito os novos membros permanentes, o que seria considerado uma "capitis diminutio" pela Alemanha e Japão. Os países em desenvolvimento, que desejariam no futuro ver abolido o direito de veto, entendem que, na transição, os novos membros permanentes não deveriam sofrer discriminação, tendo direito aos três "vês" -voz, voto e veto. O fato de que, no sistema de rodízio, o direito de veto poderia cair em mãos de países inexpressivos é um complicador adicional...

Atentas essas controvérsias, a ampliação do Conselho de Segurança pode tornar-se paradoxalmente um fator de insegurança pelo atiçamento de rivalidades regionais.

Para complicar as coisas, a recente política de Washington em relação à América Latina é uma obra-prima de "confusionismo". Talvez a idéia subjacente seja o princípio de "divide et impera", de que se serviu o Reino Unido para reger o concerto europeu no século passado. Haverá coisas mais divisórias do que abolir a proibição de venda de armas sofisticadas, com o fornecimento de aviões F-16 ao Chile, país que até recentemente teve tensões territoriais com seus vizinhos? Ou a caracterização da Argentina como aliado especial extra-Otan e, portanto, autorizada a comprar armamentos em condições especiais? Os argumentos de que (a) com a redemocratização foi anulado o perigo de corridas armamentistas porque "as democracias não guerreiam entre si"; ou (b) que os Estados Unidos fazem apenas vendas preventivas para ocupar espaço que russos e europeus ocupariam, parece resultar menos de avaliações políticas sóbrias do que de mera racionalização de pressões da indústria bélica ou do Pentágono.

Como conciliar pregações de austeridade fiscal aos latino-americanos com a liberalização de venda de armamentos? Os militares, aqui e alhures, nunca foram fanáticos no cálculo de custos e benefícios. Os F-16 para o Chile são como o submarino nuclear brasileiro. Excelente idéia, desde que primeiro se encontrem inimigos credíveis que justifiquem a despesa...

Se para a "'diplomacia de prestígio" a questão do CS é importante, para a "diplomacia de resultados" ela é secundária. "Paris vale bem uma missa", disse o rei Henrique 6º ao aderir ao catolicismo, em 1593. Mas certamente o CS não merece uma querela entre o Brasil e a Argentina...
Nossas prioridades devem ser outras de tipo mais utilitário. A primeira prioridade é o fortalecimento do Mercosul, até mesmo como pista de treinamento na harmonização de políticas, coisa indispensável para chegarmos a uma negociação competente na formação da Alca, em 2005.

Uma segunda seria o ingresso do Brasil no clube dos países industrializados -a OCDE-, a exemplo do que fizeram México e Coréia do Sul. A troca de experiências nesse conclave aumentaria o grau de racionalidade em nossa política econômica e talvez contribuísse para melhorar o "credit rating" do Brasil, hoje menos favorável que o de vários países de economia mais débil.

A posição política do Brasil é confortável, independentemente de cabalas diplomáticas. Se a América Latina optar pela designação de um membro permanente para o CS, dificilmente o Brasil seria preterido, em vista de seu peso específico econômico e territorial. Se adotado o rodízio, isso não seria uma derrota. Desastroso, sim, seria qualquer esfriamento na cordialidade tardiamente alcançada entre o Brasil e a Argentina. 

1 comentário:

Joaquim de Freitas disse...

Henri 4° vai se sentir espoliado duma bela expressao, Senhor Embaixador ...

Falemos então da velhice, através de Philippe Noiret

"Il me semble qu'ils fabriquent des escaliers plus durs qu'autrefois. Les marches sont plus hautes, il y en a davantage. En tou...