sábado, fevereiro 04, 2017

Lula e FHC


Ao ver, ontem, o abraço sentido que Fernando Henrique foi dar a Lula da Silva, por ocasião da morte da mulher deste, Marisa Letícia, não pude deixar de recordar uma ocasião similar, a que assisti, quando Ruth Cardoso faleceu. Impressionou-me então a emoção transmitida no encontro entre os dois, nessa noite de junho de 2008, na Sala S. Paulo.

Ruth Cardoso era uma figura excecional que eu havia tido o privilégio de conhecer e encontrar, por mais de uma vez, em Nova Iorque, por ocasião de reuniões do "executive board" do United Nations Fund for International Partnerships, de que ela fazia parte e cujo "advisory board" integrei durante dois anos, a convite de Kofi Annan. Era uma mulher respeitadíssima e a sua súbita desaparição foi um forte abalo para o marido.

Fernando Henrique Cardoso contou-me um dia que Ruth e ele haviam convidado Marisa e Lula a passarem com eles, creio que um fim de semana, na sua "chácara" perto de S. Paulo, semanas antes de Lula da Silva lhe suceder. "Eu gosto do Lula", disse-me Fernando Henrique, que estava convencido de que um sentimento idêntico existia por parte do novo presidente. Ao que me contou, Lula havia-lhe dito que, por todo o tempo em que permanecesse na presidência, ele teria "um amigo no Alvorada". E teria dito mais: que nunca se referiria negativamente sobre o passado. Nessa conversa, num almoço a dois para que o convidei, no "Carlota", em S. Paulo, creio que em 2006, Fernando Henrique Cardoso disse-me da desilusão que tinha tido com as constantes críticas que Lula passara a fazer ao seu período presidencial. Era verdade. Lula, para exaltar os feitos da sua presidência, passava o tempo a usar uma expressão que ficou nos anais políticos: "Nunca, antes, na História deste país..." "E o Lula sabe que o presidente tem essa queixa dele?", perguntei-lhe. "Claro que sim, mas não se emenda..." E riu-se. E foram muitas as vezes em que Fernando Henrique se viu obrigado a pôr os pontos nos "ii", em declarações ou artigos de imprensa, para refutar argumentos do seu sucessor. Sempre, diga-se, com firmeza nas também imensa elegância, que é o seu excecional timbre.

E Lula sabia. Um dia, numa conversa, referi-lhe isso. Lula "chutou" para o lado: "O Fernando, na realidade, sofre é com o facto dos seus amigos políticos não virem à praça defender a sua herança política". Mas não contestou as razōes de queixa do antigo presidente, de quem, no entanto, se dizia amigo: "Tenho grande estima por ele", ouvi-o dizer por mais de uma vez. Mas nem por isso deixava de criticá-lo, porque, nisto da política, vale quase tudo...

Quero com isto dizer que acho que no recente abraço entre Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso há uma sinceridade que passa muito para além das divergências políticas que, imagino, se devem ter agravado muito nos últimos anos. São dois homens que lutaram muito por um lugar na História do Brasil contemporâneo. A História, porém, ao que tudo indica, não os deve vir a tratar da mesma forma.

4 comentários:

Anónimo disse...

As criticas do Lula aos governos FHC fazem parte do normal jogo politico. O Lula, como lhe competia, sempre defendeu que no seu governo foi o que mais fez pelos pobres, mais do que o anterior. Certo ou errado, convém recordar, porque está esquecido, os avanços das politicas sociais dos governos Lula foram reconhecidos pelo FMI, ONU, etc, etc. Em suma, nada que permitisse concluir que a sua estima pessoal e até politica pelo FHC fosse menor.
Menos típico é o facto de, que me lembre, nunca o FHC ter vindo defender o Lula dos ataques ao seu carácter e honestidade, para além de outras coisas mais escabrosas. Quantas vezes o FHC veio defender o Lula das acusações de ladrão, que lhe eram feitos nas tribunas politicas e na imprensa? Isto, como se sabe, é outro patamar, já não politico.

Helena Sacadura Cabral disse...

Francisco ninguém deve confiar no coração. É ele e não a razão que, a maior parte das vezes, nos engana!
Um dia, o meu amigo disse-me que se eu conhecesse Lula, iria gostar dele. Ainda pensa assim?

Majo Dutra disse...

Gostei de ler...
Ótimo fim de semana.
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Anónimo disse...

Andam aqui a colocar-se de cócoras perante o execrável, depois admiram-se do aparecimento dos extremismos. Quando comemos na mesma mesa que eles, somos iguais a eles.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...