segunda-feira, setembro 09, 2013

Síria

Governar é escolher, dizia Mendès-France. A escolha, no caso sírio, é de uma extrema complexidade. Deixar impunemente Bashir Al-Assad continuar a repressão de parte do seu povo parece obsceno, agora que as acusações de uso de armas químicas fizeram a guerra civil mudar de patamar. Mas decapitar o poder em Damasco, provocando uma espécie de "balcanização" armada, com a entrega do poder a grupos islamistas radicais, muito fragmentados entre si, sem a menor garantia da criação de um processo democrático alternativo, é também um risco estratégico fortíssimo.
 
Que fazer? A escolha dos EUA e alguns aliados, mas ainda não plenamente assumida e fragilizada na reunião do G20, seria no sentido de provocar um forte abalo do regime sírio, por ataques cirúrgicos a estruturas e entidades que suportam o essencial da sua ação militar, com vista a provocar o seu enfraquecimento e a forçá-lo à negociação de um qualquer compromisso. Curiosamente, no discurso ocidental, poucos falam na substituição de Assad e mesmo no seu possível julgamento pelo TPI (Tribunal Penal Internacional), talvez porque alguns considerem que um cenário "menos mau" ainda pode ter de vir a passar por ele. Longe vão os tempos do "regime change" que era voz corrente no caso do Iraque.
 
Em todo este contexto, valerá a pena não perder de vista algumas coisas:
 
  • que o regime de Assad, não obstante a violência dos seus métodos (aliás, na velha tradição bárbara do pai do ditador), tem um considerável apoio popular no país, por razões de equilíbrios étnicos que têm muito a ver com a própria existência do país. O sunitas moderados, bem como as minorias cristãs, druzas, chiitas e curdas parece continuarem a preferir Assad à instauração de um modelo islâmico radical.
  • que a oposição está extremamente fragmentada entre grupos no exterior, sem grande influência interna e apenas relevantes nos refugiados e na diáspora, e os grupos internos que conduzem as operações militares, fortemente extremistas, que fazem parte de uma espécie de "brigadas internacionais" salafistas, que o ocidente se resignou a apoiar, sob pressão dos seus aliados sunitas (Turquia, Arábia Saudita e Qatar).
  • que a agenda anti-Assad, na realidade, tem como importante objetivo tentar enfraquecer a aliança entre a Síria e o Irão - porque a questão iraniana permanece como o elemento vital de toda esta questão. Por forma a evitar que o Irão se assuma potência central da região, em especial se vier a obter poder nuclear, o ocidente decidiu tomar partido pelas forças sunitas, na tentativa de quebrar a ligação entre as forças chiitas que ligam Síria, Irão e Iraque, bem como o Hezbollah libanês.
 
No caso sírio, como às vezes acontece, parte do mundo encontra-se perante a "alternativa do diabo": qualquer escolha será má, restando saber qual será a pior.
 
ps - porque é bem ilustrativa do que a Europa política é, note-se o esforço declaratório da União Europeia sobre este assunto, recheado de ambiguidades para poder acomodar o mar de divergências no seu seio.

O cano

"Estes tipos estão muito atrasados. Parece impossível! Não sabem colocar canalizações!"

Estávamos na Líbia, em 1976, numa artéria de Tripoli. Com o condutor local, viajávamos três portugueses, membros de uma missão técnica exploratória das possibilidades de negócio em matéria de construção civil e obras públicas.

(Para a história, diga-se que essa missão, decidida pelo então ministro nos Negócios estrangeiros, Medeiros Ferreira, iria abrir caminho a uma imensidão de rentáveis contratos nesse setor, para empresas portuguesas, nas décadas seguintes).

O autor da frase, um engenheiro civil português, que seguia ao lado do motorista, queixava-se de uma elevação, que atravessava toda a faixa viária, obrigando a viatura em que seguíamos a "subir" essa protuberância rodoviária, com algum incómodo para os passageiros e, naturalmente, obrigando a uma sensível redução da velocidade. Ele achava que era um cano...

Ao meu lado, no banco de trás, um homem da banca portuguesa, Mascarenhas de Almeida, deu-me uma cotovelada cúmplice e ambos contivemos, a custo, o riso. Mas nada dissémos.

Por essa altura, por esse mundo fora, apenas num número escasso de países fora já introduzido o método de colocar, nas ruas e estradas, em locais mais sensíveis, amortecedores de velocidade. A Líbia era um deles, mas o nosso engenheiro, embora "civil", aparentemente não conhecia ainda a novidade.

Passaram-se alguns minutos. O engenheiro deve entretanto ter constatado que mais "canalizações" iam aparecendo, ao longo dessas avenidas. E a certa altura, saiu-se com esta:

"Pensando bem, esta ideia de usar tubagens para reduzir a velocidade dos automóveis não é má de todo! Às tantas, era capaz de ser útil fazer isto em Portugal..."

Terá sido ele?

domingo, setembro 08, 2013

Vale tudo?

Um político português abriu, em Portugal, uma conta num banco e nele fez um depósito. O banco era uma sucursal de uma intituição alemã: como o Santander é espanhol, o Barclays é britânico ou o BNP-Paribas é francês. O banco oferecia, a quem quer que fosse ao seu balcão, boas condições e, com toda a naturalidade, o político escolheu-o. Que sentido teria optar por um banco que lhe desse piores condições?

Foi ilegal a abertura da conta? Não. Houve alguma ilegalidade ou ilegitimidade na operação? Nenhuma.

Um jornal, porém, coloca em título que o político "põe poupanças em banco alemão". "Banco alemão"? Ó diabo! O leitor incauto logo conclui, pela fórmula habilidosa utilizada, que, com um malote atulhado de euros, o político, quem sabe se numa "aberta" de uma deslocação oficial à Alemanha, terá colocado o dinheiro, à sucapa, na segurança das terras da senhora Merkel.

Vale tudo? Não vale. Mas quem é que abriu a caixa de Pandora?

sábado, setembro 07, 2013

Os ódios e as ideias

A pretexto de algumas lamentáveis reações à morte de António Borges, a historiadora Maria de Fátima Bonifácio deu à estampa no "Público" um texto inqualificável, no qual, misturando deliberadamente os seus ódios com bugalhos alheios, deu uma expressiva nota da intolerância que afeta as mentes de certos setores políticos em Portugal. Ao lê-la, devo dizer que me percorreu um frio na espinha, sentindo o sopro de um vento ideológico que eu pensava amainado e enterrado no passado. Com a sofisticação de quem sabe o que escreve, a professora Fátima Bonifácio fez-me recuar aos tempos em que, noutros contextos, alguns intelectuais de mérito serviram de adubo pensante e justificador de certas barbáries. 

Devo dizer, com sinceridade, que mantenho respeito intelectual pela professora Maria de Fátima Bonifácio, com quem integrei, no ano passado, um grupo de trabalho, nomeado pelo governo, que produziu as bases para um novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional. Reconheço-lhe a autoria de uma obra relevante, que, desde há uns anos, tem vindo a ser produzida sob o prisma de uma linha ideológica cada vez mais radical. Contudo, leio-a sempre com bastante proveito e continuarei a fazê-lo, a ela bem como aos restantes cultores de uma historiografia conservadora, alguma mais liberal que outra, que agora está um pouco na moda, que reconheço que é muitas vezes (embora nem sempre) servida por boa escrita e interessante investigação, que se apoia em setores universitários e em editoras que alimentam a mesma agenda ideológica, sendo também promovida com empenhamento por certa imprensa e blogues. 

Situando-me, com cristalina clareza e sem ambiguidades, no espetro das "sinistras" ideias diabolizadas no texto da professora Fátima Bonifácio, fica-me a dúvida sobre se o que aqui escrevi sobre António Borges, na ocasião da sua morte, também se enquadrará nos comentários por ela policiados.

Aga Khan

Num mundo onde a solidariedade anda pelas horas da morte, é um gosto ver Portugal acolher as meritórias iniciativas de uma instituição "do bem" como é a Fundação Aga Khan, a qual, sem grandes alardes, promove uma notável obra internacional de cooperação e de difusão cultural, com forte sentido universalista. Esta semana, Lisboa é o palco escolhido para a entrega do prémio internacional Aga Khan para Arquitetura, com a presença do próprio príncipe Aga Khan.

A comunidade ismaelita portuguesa, uma orientação muçulmana com raízes em Moçambique, constituiu-se em Portugal, em especial após 1974, como um setor dinâmico, respeitável e com um profundo sentido de responsabilidade social. A figura tutelar de Nazim Ahmad, que no nosso país dirige a Rede Aga Khan para o Desenvolvimento, é uma personalidade que honra, simultaneamente, a Fundação e o nome de Portugal, representando, de forma exemplar, o trabalho dessa comunidade de prestígio, cujo percurso tenho acompanhado, desde há décadas, com sincera admiração. 

Num tempo de tropismo para a crítica, vale a pena destacar - e lembrar, porque normalmente não são "notícia" - as coisas positivas que por aí existem.

Bombeiros

É um lugar comum mencionar, por estes dias, o trabalho magnífico e esforçado dos bombeiros portugueses. Já por aqui disse, um dia, que cresci numa cidade onde, não só admirávamos as duas corporações de bombeiros, como tomávamos partido por uma dentre elas, numa rivalidade feita de fascínio saudável. Sou, assim, insuspeito de indiferença face a essa atividade com forte dimensão cívica.

Porque digo isto? Para enquadrar melhor a ideia, que venho a alimentar nestas últimas semanas, de que muitos dos infortúnios que têm afetado os nossos bombeiros, com a ocorrência de várias vítimas mortais, pode também ser a consequência de algum amadorismo e, em especial, de falta de uma adequada preparação técnica. O modo como vários desses tristes acidentes ocorreram, pelos relatos ouvidos, pode apontar nesse sentido. Admito estar errado, mas, se assim for, gostava que alguém me explicasse, por exemplo, que tipo de formação orientada para operações em zonas de montanha, com declives e variações eólicas muito específicas, têm os bombeiros que foram deslocados de cidades do sul, como foi o caso dos integrantes das corporações das zonas urbanas na periferia de Lisboa.

Fico com a sensação que, por detrás da justificada emoção com que glorificam os bombeiros que faleceram, pode estar uma história mal contada. Acho que a memória dessas mortes merece a verdade.

sexta-feira, setembro 06, 2013

Para alemão ver*


Angela Merkel é a atual "patroa" político-económica da Europa. Na existência da UE, nunca um só país foi tão relevante no seu equilíbrio interno de poderes. Esta singularidade conjuntural, devida à fragilidade da França, cria uma realidade nova que, sendo má para a União, acaba por não ser cómoda para Berlim. Essa solidão de poder acaba por ter um efeito nefasto sobre a imagem do país, embora não devamos exagerar na ideia de que se caminha necessariamente para o acordar de alguns demónios históricos.
 
Nestas condições, Angela Merkel é, de facto, a mais importante personalidade, no que toca à economia portuguesa. Atenta a nossa dependência da orientação que a politica económico-financeira europeia venha a assumir, e tendo em conta que nada do que aí se passar deixará de ter a posição alemã no seu centro, é obvio que o chanceler federal, seja ele quem for, tem nas suas mãos parte importante do nosso destino. O resto, que ainda é algum, dependerá da competitividade do nosso tecido económico (o que hoje tem essencialmente a ver com a capacidade dos nossos empresários, no vazio do investimento público), da determinação política que Portugal vier a mostrar na obtenção de melhores condições no plano externo (que é o contrário do seguidismo e do atentismo sobre o que a Europa "nos dê") e, claro, da evolução da situação económica global.
 
O governo português, nos últimos dois anos, colocou todas as suas cartas em Berlim, na convicção de que a Alemanha premiaria os casos de sucesso nos países sob resgate e, se algo corresse mal, acorreria a ajudá-los, desde que tivessem sido alunos aplicados no ajustamento. Lisboa procurou evitar todo o gesto, por menor que fosse, que pudesse contrariar Berlim. Prova disso foi o modo como Portugal (não) negociou as ultimas "perspectivas financeiras" comunitárias, no fatalismo de que tudo acabaria sempre por se passar como a Alemanha determinasse. Custa-me ter de concluir que esta não foi a melhor forma de defender os interesses portugueses.
 
* texto que hoje publico no "Jornal de Negócios" como comentário à decisão do jornal de considerar Angela Merkel a mais importante personalidade da economia portuguesa.

"A Internacional"

Na noite de quarta-feira, na comemoração das ainda escassas décadas de existência de um bom amigo, acabámos a cantar-lhe os "parabéns a você", com a música de "A Internacional". É uma prática pouco comum nas festas de aniversários, salvo quando a densidade daqueles que seguem pela faixa esquerda dos caminhos da vida é forte e maioritária. Como era, obviamente, o caso. De qualquer forma, a letra cantada era bem mais inóqua do que a da original "A Internacional" (e, à atenção de quem não saiba, há uma variedade de letras de "A Internacional" muito apreciável), tanto mais que não se registava a presença de quaisquer "vítimas da fome", o que também era assegurado pela participação no repasto do "papa" da crítica gastronómica portuguesa, José Quitério.

Lembrei-me então que um dia, num intervalo de um Conselho de Ministros de um dos dois governos de António Guterres, foi decidido comemorar o aniversário do primeiro-ministro, com bolo e as inevitáveis velas. Alguns (assumo que fui um deles) decidimos pôr os ministros e secretários de Estado a cantar-lhe as palavras do "parabéns a você" com a música inesquecível de Pierre de Geyter. Foi curioso ver as reações: alguns de nós arrancámos a cantoria com a energia de uma geração que um dia soube ao que ia, outros, mais ou menos embaraçados ou com um sentido das conveniências apurado, trauteavam baixinho, e, finalmente, alguém vindo do tempo "da outra senhora", cooptado pela democracia com generosa abertura, parecia não saber onde se meter, como o sorriso amarelo bem denunciava.

Mais a sério: "A Internacional" é uma canção que ficou ligada à memória comunista, mas cujo espírito progressista sempre foi muito para além desse terreno específico de acantonamento ideológico. Para muitas pessoas da minha geração (política), "A Internacional" foi uma bela arma contra a ditadura, um terreno comum onde muita gente que lutava pela democracia e pelas ideias da solidariedade e do progresso se encontrava, com alegria e entusiasmo. Para mim, "A Internacional" faz assim parte da minha melhor memória afetiva. E não tenho o menor receio de o afirmar.

quinta-feira, setembro 05, 2013

O intérprete acidental

Ontem fiz uma viagem aérea ao lado de uma jovem intérprete de conferências. Falámos da sua profissão e explicou-me que viaja por todo o mundo para colaborar em vários eventos, sendo que um dos seus grandes clientes é, imagine-se, a Fifa!

O meu respeito pela profissão de intérprete é imenso. Trata-se de uma atividade de grande responsabilidade, que exige uma elevada qualificação técnica e que é extremamente exigente em termos físicos e mentais. Fazer interpretação simultânea (o que é uma coisa totalmente diferente de fazer tradução escrita de textos) é uma tarefa muito cansativa, razão por que muitas vezes vemos reuniões terem de terminar mais cedo por exaustão dos intérpretes.

A meu primeiro contacto com esta realidade foi na Noruega, em 1980, durante uma visita de Estado do presidente Ramalho Eanes. No termo da visita, estava prevista uma conferência de imprensa do presidente, no hotel SAS, em Oslo. Embora me recorde que outros temas conjunturais acabaram por se sobrepor, a ideia original era dar conta à comunicação social norueguesa da avaliação do chefe de Estado português sobre os importantes programas de cooperação que a Noruega desenvolvia, à época, em Portugal.

(Depois da Revolução de 1974, os governos trabalhistas noruegueses levaram a cabo um vasto conjunto de programas de solidariedade para com a nova democracia portuguesa, desde o apoio aos "retornados" das antigas colónias a diversas contribuições em setores técnicos, de que foram exemplos os setores da saúde, da investigação marítima, etc. Fico com a sensação de que o nosso país nunca prestou um suficiente testemunho da gratidão devida à Noruega por estes gestos materiais de grande solidariedade, num tempo difícil para nós.)

Porque a conferência de imprensa do presidente Eanes se situava fora do programa oficial da visita, coube à nossa embaixada organizar a logística do encontro com os jornalistas. Havia assim que prever um intérprete para fazer "chuchotage" (interpretação em voz baixa, ao ouvido) do presidente, fazendo-o entender as perguntas da imprensa, e outro para, numa cabine, traduzir para os jornalistas, em norueguês, as respostas de Ramalho Eanes. Para a primeira função escolheu-se Joelle Bastviken, uma luso-norueguesa que já acompanhava em permanência o casal presidencial, infelizmente já desaparecida. Para a segunda, e no "deserto" que então era o mundo dos noruegueses com conhecimentos de português, decidimos encarregar da tarefa o tradutor da embaixada, Johan Jarnaes.

Jarnaes era professor de português na universidade de Oslo e pensámos que, se o seu conhecimento da nossa língua era suficiente para nos fazer pequenos resumos da imprensa local ou traduzir cartas, talvez fosse capaz de passar para norurguês as respostas do presidente. Com grande boa vontade, Jarnaes voluntariou-se para a tarefa, não sem que antes, com toda a honestidade, me tivesse avisado das dúvidas que tinha sobre se estaria à altura da função. Animei-o, com a inconsciência de quem não tinha outra solução.

Fui com ele para a cabine de interpretação, para atenuar o nervosismo de que dava mostras e, talvez, também por um pressentimento de que as coisas poderiam não correr bem. Como não iriam correr, de facto.

Logo às primeiras respostas de Eanes, cujo discurso, como é sabido, tende a ser rebuscado e pouco direto, para além de assente numa verbalização alcainense menos fácil para um ouvido estrangeiro, o nosso Jarnaes começou a gaguejar, a suar em bica e, num certo momento, bloqueou por completo. O facto de Eanes debitar longas frases e encadear o discurso, sem pausas, justificava o "pânico" em que Jarnaes entrara que me fazia sinais desesperados de que não conseguia prosseguir. Do alto da cabine, eu olhava para a sala e constatava a perplexidade na cara dos jornalistas noruegueses, que olhavam uns para os outros, dando voltas ao aparelho da interpretação, acreditando que o silêncio que lhes passara a ser oferecido se devia a alguma avaria técnica.

Foi então que decidi correr um imenso risco, com vista a ultrapassar o embaraço em que estávamos. Arranquei o microfone a Jarnaes e passei a fazer eu a "interpretação" , mas, desta vez, para inglês, língua que todos os jornalistas noruegueses compreendiam. Aqui para nós, tenho hoje a sensação que improvisei imenso, que coloquei na boca do presidente muitas coisas que ele, na realidade, não disse (como, no dia seguinte, vi nas citações de imprensa que lhe foram atribuídas). A verdade é que também eu era incapaz de seguir o ritmo das palavra de Eanes, pelo que fui avançando com frases que pressenti se colavam, mais ou menos, àquilo que eu sabia ser o pensamento do presidente, pelo que dele conhecia através da imprensa. Foi uma grande irresponsabilidade? Talvez, mas era necessário salvar, ainda que modestamente, a situação criada. Até porque dela eu era o principal responsável...

No fim daquele esforçado e penoso exercício, recebi um abraço de agradecimento do assessor diplomático do presidente, embaixador Luis Martins, que se apercebera da súbita complicação surgida e do meu ato de "desenrascanso". Mas, devo confessar, aqueles quinze minutos foram dos mais longos da minha vida e, para sempre, fiquei a ter um imenso respeito pela dificílima tarefa dos intérpretes profissionais.

quarta-feira, setembro 04, 2013

Mundos


Lembrei-me há pouco de uma cena, passada neste mesmo aeroporto de Roma, onde agora estou.

Foi há mais de uma década. Vinha do Irão, onde fora chefiar uma "troika" de diálogo político com as autoridades locais. No voo da Iranair que nos trazia de Teerão, todas as mulheres seguiam as determinações religiosas, com as cabeças devidamente tapadas. A ausência estrita de bebidas alcoólicas a bordo ajudava a lembrar-nos que o ambiente comportamental em terra tinha o seu estrito prolongamento no ar.

Chegados ao corredores de Fiumicino, notei que uma revoada de passageiras se agitou em direção às primeiras casas de banho públicas que surgiram, como se uma súbita urgência diurética tivesse atacado a ala feminina dos viajantes desembarcados desse voo.

Bastaram alguns escassos minutos para se entender melhor a razão de tudo. Do local para onde tinham entrado essas figuras embrulhadas em trajes escuros, de cabelo tapado e longas vestes, saíam sucessivamente mulheres em roupas bem ocidentais, muito bem pintadas e com belos adereços, com cabelos magníficos, algumas tão belíssimas como as iranianas frequentemente podem ser.

Enfim, para citar H. G. Well, esta é, de uma certa maneira, uma "guerra dos mundos". 

terça-feira, setembro 03, 2013

As contas do Nagorno-Karabakh

O Azerbaijão, onde me desloquei no ano passado pela UNESCO, e a Arménia, onde hoje me encontro pelo Centro Norte-Sul do Conselho da Europa, mantêm entre si um estado de tensão político-militar, por virtude do conflito do Nagorno-Karabakh, um território que foi objeto de uma guerra sangrenta no início dos anos 90. Esse território, cercado pelo Azerbaijão (há uma única estrada de ligação à Arménia) é hoje ocupado por populações e forças arménias, situação que os azeris não reconhecem. Esta questão tem vindo a ser tratada, desde 1994, pelo chamado "grupo de Minsk", uma entidade internacional composta por 11 países (de que Portugal faz parte), cujo trabalho negocial não tem dado resultados muito visíveis, "to say the least".

A zona do Nagorno-Karabakh constitui um dos clássicos "conflitos congelados" que derivaram do fim da União Soviética, sendo os restantes a Transnístria, a Ossétia do Sul e a Abcásia. Com exceção deste último caso (que compete à ONU), os restantes têm a sua sede de tratamento na Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). No ano 2002, coube-me dirigir, em Viena, a presidência portuguesa da OSCE, razão pela qual passei a seguir estes temas, até hoje, com alguma curiosidade e interesse.

Um dia, na segunda metade de 2002, o diplomata português que seguia o dossiê na nossa presidência, José Manuel Carneiro Mendes, transmitiu-me o convite do chefe do chamado "High Level Planning Group" (HLPG), dependente do "grupo de Minsk", para que eu visitasse essa estrutura. Vim então a ser simpaticamente acolhido, num andar de Viena, por um grupo multinacional de dez oficiais (idealmente serão 13, atualmente serão 8), secretariados por uma simpática senhora, que me fizeram um "briefing" sobre a situação no terreno, a qual nada diferia das informações que o "Conflict Prevention Centre" da OSCE regularmente me transmitia. 

Mas, afinal, para que servia o HLPG? O objetivo desta estrutura seria montar uma operação de "peacekeeping" posterior ao estabelecimento de um acordo, eventualmente a ser obtido pelo "grupo de Minsk". Com exceção de algumas missões de observação no terreno, quando as partes assim o consentiam, o grupo vivia (e vive) encerrado naquele andar, com mapas desatualizados, sem um serviço mínimo de "intelligence" que o abastecesse de dados relevantes, sendo as "missões" da OSCE na Arménia e no Azerbaijão os seus escassos suportes informativos. Desde 1994...

Na ingenuidade de que a razão podia prevalecer, sondei discretamente os "major players" da OSCE, bem como as duas partes diretamente interessadas, com vista a tentar perceber se não seria possível fazer "destroçar" a tropa acantonada naquele dispendioso andar da capital austríaca. A minha ideia era fazê-los regressar aos respetivos países, reconstituindo-se o HLPG se e quando uma hipótese remota de acordo viesse a ser viável. A poupança orçamental seria significativa, fosse para os cofres da OSCE, fosse para os países de onde os militares (de várias patentes) eram "seconded".

O que eu fui dizer! Com maior ou menor ênfase, não houve um só dos meus interlocutores que desse a menor abertura a essa minha "bizarra" ideia, a começar pela Arménia e pelo Azerbaijão. Para todos eles, se levada à prática, a minha proposta indiciaria um menor empenhamento internacional na resolução do conflito. E assim fracassou a minha ideia.

Ontem, aqui em Yerevan, capital da Arménia, vim a confirmar que o HLPG permanece galhardamente no seu posto em Viena. Para o ano, comemoram-se 20 anos (!!!) desde que esse grupo de oficiais, regularmente renovado, foi criado e se mantém em "funções", encerrado naquele andar, fantasiando uma "operação de paz" que terá lugar lá para as calendas gregas.. Quando ouço por aí falar nas "gorduras do Estado" e dos gastos supérfulos, lembro-me muitas vezes do HLPG...

Em tempo: hoje à noite, durante um jantar, falei deste assunto com um responsável político arménio. Esclareceu-me que o HLPG em Viena gasta cerca de 200 mil euros/ano, sem contar com os salários dos militares. E ele também me confirmou não haver consenso para o desmantelamento da estrutura, dado que ela "faz parte de um processo complexo, que não teria sentido sem uma das partes" (sic).

Acrescento também um mapa, que dá conta da complexidade da área. A cinzento, na parte de baixo do mapa, pode ver-se o enclave azeri de Nakhichevan, que visitei em 2012. Da capital do Azerbaijão, Baku, a única forma de chegar é por avião, entrando no espaço aéreo do Irão.

segunda-feira, setembro 02, 2013

Não incomodar

Há já muitos anos, um amigo, já desaparecido, revelou-me que fazia coleção daqueles pequenos letreiros que, nos hotéis, se penduram na porta dos quartos, pedindo, de um lado, para "não incomodar" e, do outro, para o quarto ser arrumado. Esse amigo pretendia que eu colaborasse nessa sua peculiar "recolha", no curso das minhas andanças diplomáticas.

Embora com alguma relutância, devo confessar, fiz-lhe a vontade e, durante alguns anos, fui "pilhando" esses penduricalhos dos quartos dos diferentes hotéis por onde passava. Devo ter-lhe "fornecido" algumas dezenas de exemplares, de todo o género, cores e tamanhos. Hoje pergunto-me o que será feito dessa sua imensa coleção, agora que a ele já ninguém pode, em definitivo, incomodar ou arrumar o quarto.

Lembrei-me disso há pouco, no quarto do hotel de Yerevan onde estou hospedado, onde a imagem de marca da "inesquecível" Intourist de outros tempos ainda não desapareceu por completo, ao ver um desses letreiros. Tive então pena de não sentir nenhuma tentação para o trazer comigo, o que significaria que o meu amigo colecionador ainda estava entre nós.

No momento, veio-me também à memória uma madrugada em que, envergonhado, senti ser meu dever repor na devida posição alguns desses penduricalhos, num corredor de um hotel algures no mundo, depois de uma destacada personalidade portuguesa, tocada por alguns efeitos etílicos, se ter entretido a invertê-las, criando um potencial incómodo para alguns hóspedes. É também para isto que servem os diplomatas...

domingo, setembro 01, 2013

Empatas!


Escapadelas

Lisboa recebeu um "óscar" para a melhor cidade para fazer "city breaks".

Parece-me, contudo, que traduzir isso por "escapadelas urbanas", como faz a nossa imprensa, é uma interpretação um demasiado extensiva.

Devo dizer, no entanto, que não ouso sequer pronunciar-me sobre a justeza da aplicação do conceito, em português, à nossa capital. "Óscar para escapadelas"? Ó diabo!

Piropos

O Bloco de Esquerda quer abrir um debate parlamentar para tratar a questão dos "piropos", ao que parece com vista a atenuar a agressão verbal decorrente de bocas foleiras que inundam as esquinas do país. Nada de mais urgente, claro!

Ainda bem que uma força política tem a coragem de trazer para a praça pública um assunto desta magnitude, conferindo-lhe prioridade legislativa. Eu ousaria dizer que este é um debate com séculos de atraso! Dada a atenção que o Bloco tem com as questões de género, posso imaginar que o diploma deve vir a cobrir, não apenas os piropos entre pessoas de sexos diferentes, mas, igualmente, os ditos brejeiros entre pessoas do mesmo sexo. Por isso mesmo, este é um debate que promete alegrar os dias da Assembleia da República, com a riqueza de "apartes" que se adivinha, que tanto vai incendiar setores tradicionais das partes fonteiras do areópago como pode mesmo vir a revelar algum "backbench" parlamentar até agora menos exposto ao escrutínio público. 

Fico com uma dúvida, provavelmente irrespondível: sobre o tema em si mesmo, será que a posição de bloquistas como Joana Amaral Dias e de Ana Drago é exatamente a mesma de Helena Pinto ou Catarina Martins? 

sábado, agosto 31, 2013

Maria José Constâncio

Foi aqui, no aeroporto de Lisboa, onde estou agora a embarcar para Roma, que encontrei pela última vez, há já bastantes anos, a Maria José Constâncio, de cuja morte acabo de ter conhecimento. Nesse dia, íamos ambos para Bruxelas, um destino que à época nos mobilizava muito.

A Maria José estava há largos anos afastada da vida pública, vítima de uma doença incapacitante muito grave. Fizémos parte do mesmo governo, nos idos de 1995 e hoje recordo para sempre a sua grande competência profissional e o seu sorriso suave.

Deixo ao Vitor e a toda a família um abraço de sentido pesar.

Graça Andresen Guimarães

O recém-designado diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, o diplomata brasileiro Roberto de Azevedo, acaba de nomear a embaixadora Graça Andresen Guimarães para integrar o seu gabinete.

Aquela embaixadora portuguesa tinha terminado funções como representante permanente de Portugal junto das organizações internacionais, em Genebra, após ter chefiado, durante vários anos, a missão diplomática portuguesa em Cabo Verde.

Sou naturalmente suspeito ao falar de Graça Andresen Guimarães, de quem sou amigo pessoal e com quem tive o gosto de trabalhar quando, nos anos 90, coincidimos na embaixada portuguesa em Londres. Esta sua prestigiante nomeação apenas confirma o que há muito se sabia: que estamos perante uma das mais qualificadas profissionais da diplomacia portuguesa. 

Pergunto-me se o facto de uma organização internacional como a OMC ter decido recorrer aos conhecimentos de uma diplomata a quem as atuais regras etárias do MNE impediram de continuar ao serviço do seu país no estrangeiro não deveria ser razão para suscitar, entre nós, um debate sobre a racionalidade de obrigar os funcionários que atingem os 65 anos a abandonarem o serviço externo, quando hoje se caminha, cada vez mais, para um alargamento da idade de aposentação. Faço-o com a independência de quem nunca antes, em nenhuma ocasião, opinou sobre a questão, enquanto ela lhe podia dizer respeito. Agora que o assunto me é, em definitivo, pessoalmente indiferente, considero poder dizer, alto-e-bom-som, que é absurdo manter essa regra, em lugar de caminhar para uma natural dilatação do limite etário para a permanência em cargos no exterior. Mas imagino que isto seja "chover no molhado", atentas  as "capelinhas" que, com toda a certeza, se mobilizarão para defender o "statu quo".  

sexta-feira, agosto 30, 2013

Desapontamentos

O governo britânico ficou desapontado com o facto do parlamento se ter oposto à participação do país numa ação militar contra a Síria, mesmo se os peritos das Nações Unidas vierem a confirmar que o respetivo regime utilizou armas químicas na guerra civil.
 
O governo português manifestou o seu desagrado pelo facto do Tribunal constitucional, respondendo a dúvidas suscitadas pelo presidente da República, ter rejeitado a constitucionalidade da lei que flexibilizava regras laborais na função pública.
 
É humano que os executivos reajam à derrota das suas propostas. Porém, um democrata mede-se pelo modo como respeita, em qualquer circunstância, as decisões das instituições que lhe não são favoráveis. Ponto.

Diplomacia e disciplina

O caso do diplomata brasileiro Eduardo Saboia, o qual, desrespeitando instruções do seu governo, decidiu auxiliar à retirada da embaixada brasileira em La Paz de um refugiado político, é um interessante "cas de figure". Simples mas instrutivo.
 
Perante uma situação como a que se vivia naquela embaixada, um profissional da diplomacia - e Eduardo Saboia era "encarregado de negócios", na ausência de um embaixador, logo, o principal responsável - tinha a estrita obrigação de (1) transmitir às suas autoridades a sua avaliação sobre o caso em apreço, bem como as soluções que, a seu ver, se impunham e, após isso feito, (2) deveria ter obedecido às legítimas instruções dessas autoridades, que eram emanadas do governo de um país democrático e que é internacionalmente reconhecido como atento aos Direitos humanos.
 
Admitamos, porém, que o diplomata, por razões que considerou mais relevantes, entendeu que essas instruções ofendiam os seus princípios e a sua consciência. Nesse caso, duas alternativas se lhe ofereciam: (1) demitir-se ou (2) contrariar as ordens, eventualmente denunciando-as, mas, neste caso, tendo a consciência de que iria arrostar com todas as consequências disciplinares daí decorrentes. O ato de Eduardo Saboia configura esta última opção.

O que não é admissível é que um profissional da diplomacia, abusando da confiança do Estado que o mantinha no lugar, no pressuposto de que cumpriria escrupulosamente as suas instruções, se possa arrogar o direito de proceder a seu bel-prazer, fazendo a sua interpretação pessoal sobre a melhor forma de agir, abusando assim do estatuto de que usufruía. Se acaso este procedimento fosse aceite como regra, isso significaria uma absurda transigência com uma cultura de descricionariedade, com a qual nenhuma ordem político-jurídica pode conviver.
 
Podemos ter toda a simpatia para com as motivações humanitárias que estiveram subjacentes ao ato de Eduardo Saboia. Não me parece, contudo, que deva haver uma complacência disciplinar com o seu comportamento, salvo alguma atenuante que possa decorrer de uma perturbação no seu estado de espírito, fruto do peso psicológico que a situação nele estava a provocar.

Coincidências

A propósito de uma confusão sobre a nacionalidade de uma senhora, durante um jantar no Brasil, que há dois dias aqui referi, vou contar uma história que acho curiosa, que também me ocorreu, nesses nossos primeiros dias de Brasília.
 
O conselheiro social da embaixada e a sua mulher haviam decidido convidar-nos para conhecer, em sua casa, vários portugueses que ocupavam lugares destacados na vida política, económica e social da capital brasileira. Foram dois simpáticos jantares, que permitiram ficar a conhecer um conjunto muito interessante de personalidades, que viram a revelar-se essenciais para o meu trabalho futuro.
 
Uma dessas figuras era um engenheiro português, altamente colocado na administração brasileira. Na conversa ao jantar, que tinha de ser dividida com os restantes convidados, dei-me conta, a certa altura, que ele nascera no Porto e que era engenheiro eletrotécnico. Ora eu fora, em 1966/68, um efémero estudante de engenharia eletrotécnica, precisamente na universidade do Porto. Em que ano tinha ele entrado para a faculdade? Em 1966...
 
Tinham passado quase 40 anos, mas a curiosidade fez-nos remexer memórias, que viémos a constatatar que, em vários casos, eram comuns. Ambos tínhamos tido aulas de Química Geral com o Vasco Teixeira, de Matemáticas Gerais com o Arala Chaves, e aí por diante! Depois, vieram à baila alguns episódios, passados na Unicepe, no "Piolho" ou no bar do "Centro" (Universitário do Porto). Ambos havíamos estado nos mesmos locais, nos mesmos dias, lembrando as mesmas coisas, com pormenores. Os nomes de amigos comuns vieram à conversa. Por outro cruzamento de referências, também a probabilidade de termos feito algumas tardes de estudo juntos se tornou plausível (no meu caso, sem um grande sucesso académico, o que me conduziu à sensata decisão de mudar de curso). Mas nem eu me lembrava concretamente dele, nem ele de mim. Mas esse foi o começo de uma bela amizade.
 
O Manuel Lousada, que às vezes lê este blogue, lembrar-se-á desse momento em que nos (re)encontrámos, e que, depois disso, muitas vezes repetimos, nomeadamente no Porto (onde é que havia de ser!). Tudo graças à simpática e acolhedora iniciativa, também muito profissional, da Anabela e do Joaquim do Rosário. Aqui fica um abraço para todos eles, lembrando esses magníficos tempos de Brasília.

quinta-feira, agosto 29, 2013

A França, a Rússia e a Síria

Fui procurar à net e encontrei um artigo que, há pouco mais de um ano, o antigo primeiro-ministro conservador francês, François Fillon, havia escrito no "Le Figaro", denunciando a política externa do presidente Hollande. Na altura, tomei nota do que ele dissera sobre uma conversa havida com Vladimir Putin (em França, escrevem "Poutine", porque, sem o "e", a palavra, lida "à francesa", teria uma sonoridade estranha), a propósito da crise síria.

De acordo com o relato de Fillon, Putin "teme um contágio fundamentalista ao conjunto da região, da qual a Rússia está mais próxima e mais dependente do que a Europa e a América. Ele sabe que os americanos abandonarão em breve o Afeganistão, que se pode voltar a converter num santuário terrorista às portas da Rússia. Ele constata que a intervenção americana no Iraque redundou num caos por muito tempo. Teme o recuo do Egito nas mãos dos fundamentalistas. Não quer juntar a Síria à lista dos lugares dos santuários de desestabilização das suas fronteiras a sul".

Nesse artigo, Fillon dizia que "recusava" os argumentos avançados pelo líder russo para justificar a sua oposição a uma mudança do regime em Damasco, embora os considerasse "não desprezáveis". Ao ler o que Fillon ontem afirmou sobre uma possível intervenção militar na Síria, fico com a ideia de que as palavras de Putin ainda lhe estarão na memória.

António Patriota

António Patriota deixa o cargo de ministro das Relações Exteriores do Brasil para ir chefiar a missão brasileira junto das Nações Unidas. Patriota é um excelente profissional, com uma imensa experiência e, devo dizer, sinto pena ao vê-lo deixar a chefia do Itamaraty. Ainda há pouco tempo tive o gosto de conversar com ele em Lisboa e confirmar o seu empenhamento no aprofundamento das relações luso-brasileiras.
 
Fizemos uma boa amizade no tempo em que coincidimos no Brasil e, creio, ambos contribuímos, cada um à sua maneira, para um período interessante da nossa relação bilateral. Por essa altura, o António desempenhava o importante lugar de diretor-geral político do Itaramary e eu era embaixador de Portugal.
 
Um episódio curioso envolveu-nos aos dois, por esse tempo. O ministro brasileiro das Relações exterioras, Celso Amorim, havia decidido pôr termo à missão em Lisboa do embaixador António Paes de Andrade, um "embaixador político" que ocupava esse cargo, desde há alguns anos. Nas vésperas da decisão ser tomada, o governo brasileiro, num gesto elegante, havia decidido informar-nos, através de uma conversa que o então secretário-geral do ministério das Relações exteriores (que é o substituto do ministro), embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, quis ter comigo, do nome do sucessor de Paes de Andrade. Pela regras normais da diplomacia, deveria ser este a pedir, em Lisboa e junto das Necessidades, o "agrément" para o seu sucessor. Ora António Paes de Andrade - e só conto isto porque tudo veio publicado na imprensa brasileira da época - terá eventualmente reagido mal à decisão da sua substituição, recusando-se a solicitar às nossas autoridades a acreditação para o novo embaixador.
 
(Para quem não saiba, a regra dos pedidos de "agrément" é que o embaixador cessante faça a entrega, junto do chefe do Protocolo do país onde está acreditado, de um currículo da pessoa que o seu governo pretende nomear para seu sucessor, numa folha de papel branco, não timbrada. Pela tradição, se o nome for recusado (o que acontece raramente, sendo um longo "silêncio" do Estado recetor a demonstração implícita de que o nome não vai ser aceite), não restará qualquer prova material do pedido. Isto era assim no passado. Nos dias que correm, muitos Estados já não procedem da mesma forma e os currículos até já seguem, em muitos casos, em anexo a uma simples nota rubricada...)
 
As autoridades brasileiras terão ficado numa situação algo embaraçosa. Como podiam formular o pedido de acreditação para o sucessor de Paes de Andrade, face à recusa deste em executar a instrição? Só havia uma maneira: utilizar a embaixada portuguesa em Brasília. Assim, dois dias mais tarde, António Patriota, como diretor-geral político, pediu para eu ir vê-lo. Durante vários minutos, a nossa conversa tocou vários assuntos, sem aparente objetivo concreto. A certo passo, porém, disse-me:
 
- Francisco, você sabe que vamos mudar o embaixador em Lisboa?
 
Respondi-lhe que sim, que, simpaticamente, já fora informado pelo secretário-geral, e que até conhecia bem o futuro embaixador, de quem era amigo, desde o meu anterior tempo de Viena.
 
- E você tem o currículo dele?, inquiriu António Patriota, estendendo-me uma folha sem timbre, com o percurso profissional do diplomata.
 
Agradeci a "informação" e, minutos depois, regressei à embaixada. Transmiti então a Lisboa o pedido de "agrément" formulado pelas autoridades brasileiras. Mas a conversa com Patriota configurava algum pedido? Na realidade, nada me tinha sido solicitado, a palavra acreditação não fora sequer pronunciada, formalmente a nossa conversa não podia mesmo ser qualificada de uma "démarche" ou diligência. Mas, para bom entendedor, o gesto "florentino" de diplomacia de António Patriota era muito claro. E, três dias depois, o sucessor de Paes de Andrade recebia o beneplácito das autoridades portuguesas - uma rara rapidez, no nosso caso consonante com a excelência das relações que sempre pretendemos manter com Brasília.
 
Um forte abraço, António. Boa sorte para Nova Iorque! Quando passar por Portugal, os seus amigos aqui estarão à sua espera. 

quarta-feira, agosto 28, 2013

Síria

Vai para aí uma "salgalhada" no que respeita à posição portuguesa, em face de uma possível intervenção militar no conflito na Síria, sem um mandato expresso do Conselho de Segurança. A cacofonia, em ambos os lados do nosso espetro político, não augura nada de bom. E de prestigiante. E é nestes momentos que um forte sentido de Estado se imporia.
 
Uma atitude portuguesa sobre esta matéria tem, antes de tudo, de deixar bem claro se Portugal - em todos os casos, não "à la carte" - defende a preeminência absoluta das instituições multilaterais, a que se comprometeu ao assinar a Carta das Nações Unidas.
 
Se assim não for, Portugal terá então de conceder que considera admissível, agora e no futuro, que algumas potências possam formar "coalitions of the willing", com vista à execução de certos tipos de ações militares fora das suas fronteiras, interpretando, à sua maneira, um direito internacional de ingerência, perante situações tidas como ultrapassando determinados limites. Note-se que a seleção de tais casos competirá livremente a essas mesmas potências, com maior ou menor respaldo do resto da comunidade internacional.
 
Se a resposta se inclinar para a segunda hipótese - o que, à partida, não excluo (fiz parte de um governo que apoiou uma ação militar no Kosovo) -, Portugal tem de estar preparado para ter de aceitar, um dia, uma eventual intervenção militar promovida pela Rússia ou pela China, eventualmente aliadas a outros Estados, num qualquer cenário geopolítico, que aquelas potências considerem que deve merecer idêntico tratamento, mesmo que para tal não haja um mandato do CSNU. É que uma coisa é por demais evidente: o ocidente não pode pretender ter o monopólio da justa indignação, por muito que lhe desagrade a leitura que Moscovo ou Pequim façam das coisas.
 
Conviria pensar bem nisto.   

A praia

 
Conhecem alguma praia portuguesa (pública, bem entendido) onde, mesmo perante a inexistência de qualquer serviço de segurança, se possam deixar toda a noite, sem risco de os ver desaparecer, os nossos guarda-sóis? Onde as cadeiras de todo o tipo fiquem igualmente no areal, de um dia para o outro, bem como os brinquedos das crianças?
 
    Eu conheço, estarei por lá até ao final desta semana, mas não digo qual é, desculpem lá!

terça-feira, agosto 27, 2013

A senhora loira

Era um jantar com umas dezenas de convidados, na residência do embaixador egípcio, na "asa norte" de Brasília. Tínhamos chegado ao Brasil há poucos dias, nesse ano de 2005. O meu colega do Egito quis ter a amabilidade de nos convidar, quase de imediato, dando-nos assim as primeiras boas-vindas.

(Para quem não saiba, a diplomacia egípcia tem uma tradição de grande qualidade, servida por profissionais de alto gabarito, muito bem preparados, quase sempre com uma atividade social intensa, à altura da importância que o seu país foi criando à escala regional e global. Agora, só podemos desejar que esta boa tradição se não perca).

O jantar era um esplêndido "buffet". À entrada, soubemos a mesa que nos competiria mas, mais tarde, quando lá chegados, verificámos que não havia cartões, que era "free seeting", o que não nos permitia conhecer com facilidade o nome dos comparsas da refeição. Uma das exceções era eu. A embaixatriz, delicada, convidou-me para ficar à sua direita. No meu outro lado, sentou-se uma senhora, cujo nome e nacionalidade não entendi bem, na rápida e algo atabalhoada apresentação que fizémos, com outros convidados à mistura. Ouvi que se expressava em inglês. Era uma mulher loira, de uma beleza serena, madura, com pele muito clara e um bonito sorriso.

Durante alguns minutos, conversei com a nossa agradável anfitriã. Depois, na protocolar alternância, voltei-me para a vizinha do outro lado e troquei algumas palavras de circunstância, de elogio sobre a comida, sobre a casa ou qualquer outro tema para "entreter". As conversas seguiam em inglês. Não tinha percebido a sua nacionalidade, mas não lha perguntei, porque não queria dar a ideia de que estivera desatento, quando ela se apresentara. Disse cá para mim: com o tempo, lá "chegarei". E fui-me divertindo com o processo de adivinhação, como por vezes faço. Desde o início, fiquei com a sensação de que devia ser nórdica. Talvez mulher de diplomata (pela idade dela, imaginei que o "partner" já podia ser embaixador), porque tinha um discurso cosmopolita. Não entrou no "talking shop" típico das "chères collègues", pelo não era, ela própria, embaixadora (eu ainda não conhecia a maioria dos meus colegas). Estava muito bem vestida, num estilo clássico, o que excluía que fosse de uma qualquer ONG. Não tinha também a linguagem viciada de algum pessoal de organizações internacionais. Não lhe notei aquelas "inspirações" quase asmáticas, tipicas das interjeições que as norueguesas costumam fazer. E não tinha o toque "viseense" do falar islandês. O seu inglês (que não era o típico americano ou outro "nativo", o que excluía que fosse britânica ou irlandesa) não tinha o "arranhado" dos dinamarqueses, nem a tonalidade algo rural que identifica, "por uma pinta", os finlandeses. Fez um comentário simpático sobre qualquer coisa da Rússia, pelo que, de imediato, deduzi que não podia ser originária de um país báltico. E, claro, também não seria polaca. Aliás, algumas ideias que perpassavam no seu discurso, com alguma "rightousness" um tanto puritana e pouco "free-marketeer", fizeram-me afastar, em definitivo, a hipótese de ser de um antigo país comunista da Europa. É isso, por exclusão de partes, devia ser sueca! Pela certa. Arrisquei:

- How long have you been in Brazil? Did you come straight from Stockholm?

Olhou-me, surpreendida:

- Stockholm? No! I came from Uruguay!

Uruguaia? Não tinha ar disso! No meu melhor castelhano, pedi desculpa pela confusão e disse-lhe do meu equívoco, confessando que tinha achado que ela era sueca. Era o seu ótimo inglês que me tinha levado a essa ideia, disse eu, tentando um "charme" desculpabilizante. Não tinha percebido que era uruguaia, mas, assim, ainda bem!, podíamos continuar a falar em espanhol.

A sua resposta desarmou-me:

- Pero yo no soy uruguaia. Yo soy brasileña!

Aí dei uma gargalhada do tamanho da mesa. Revelei que era português (ela explicou depois que achara que eu era, imagine-se, grego!) e a "loira sueca", nascida em Curitiba, contou-me então que era casada com um diplomata brasileiro, há poucos meses chegado de Montevideu, e que estava sentado noutra mesa.

Convém ter sempre muita atenção nas apresentações...

segunda-feira, agosto 26, 2013

Gilmar


Há semanas, desapareceu Djalma Santos, um dos mais fantásticos defesas laterais direitos da história do futebol mundial.

Ontem, saiu de cena Gilmar, o "goleiro" desse "time" histórico que, (quase) sem Pelé, ganhou a "copa" do Chile em 1962, comigo, deste lado do Atlântico, nos meus 14 anos, a "torcer" pelo "escrete canarinho", que sei de cor-e-salteado, graças a "A Bola", ao "Record" e ao "Mundo Desportivo", que então consumia avidamente (hoje, sei lá porquê!, sou incapaz de pegar num jornal desportivo). Aqui deixo esse "dream team" da minha memória: Gilmar; Djalma Santos, Mauro e Nilton Santos; Zito e Zózimo; Garrincha, Didi, Vává, Amarildo e Zagalo.

Nele, Gilmar, era um génio no "gol", dando imensa confiança à "zaga", com um excecional tempo de saída nos "escanteios" e com uma rapidez fabulosa na reposição da bola em jogo, com "tiros de meta" que atravessavam o terreno. Começou por ser um herói da "baixada santista", para se tornar num herói do Brasil. E, mais tarde, de Vila Real, como se vê... 

Palestras e conferências

Há uns tempos, um amigo dizia-me que quase se "cansava" de ver notícias sobre prestações que eu fazia em público, sobre uma larga variedade de temas. Embora ache isso um exagero (falo, normalmente, apenas sobre temas europeus e internacionais), sou o primeiro a reconhecer que, por vezes, o leque de matérias sobre as quais sou convidado para intervir acaba por ser um tanto lato...
 
Espero que esse meu amigo, que não lê este meu blogue com regularidade, não se aperceba do título do painel que, dentro de dias, me caberá moderar em Yerevan, na Arménia, no âmbito de uma conferência em que participarei: "Avenues for future action within and beyond Europe; youth education and awereness-raising on religion and beliefs, dialogue and co-operation among and with religious and non-religious representatives".
 
Sendo que o tema sai um pouco da minha área normal de preocupações (mas não da área de trabalho do diretor executivo do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa, que atualmente sou), sinto-me nele apesar de tudo, muito mais à vontade do que num painel que tive que coordenar em Coimbra, em 2005, integrado num seminário sobre "Investir nas florestas portuguesas", no qual que me coube sumariar um debate de especialistas internacionais sobre "Abordagem ambiental e gestão dos riscos nas florestas". Graças a essa singular experiência, ainda hoje, quando vejo fogos nas televisões, sinto a tentação de mandar alguns "bitaites", com base no que então aprendi.
 
Enfim, nesta variedade de temáticas, espero não atingir o ponto a que chegou um outro amigo, personalidade de forte notoriedade pública, o qual, perguntado um dia por que razão intervinha sobre um qualquer tema algo "exotérico", comentou: "Eu, nesta fase da vida, tirando algumas ciências exatas, falo praticamente sobre tudo..."  

domingo, agosto 25, 2013

António Borges

Acabo de saber do falecimento de António Borges.

Durante muitos anos, António Borges foi, para mim, a imagem do economista português que, em França, dirigira a prestigiosa escola de gestão INSEAD. Mais tarde, assisti à distância ao seu empenhamento na vida política, que manteve até hoje, num quadro de opções doutrinárias que sempre senti muito distantes das minhas. O que, definitivamente, não vem aqui para o caso.

Só vim a conhecê-lo pessoalmente há poucos anos, no âmbito de uma reunião da Fundação Champalimaud, em Paris. Durante este ano, coincidimos na administração de um grupo empresarial, circunstância em que nos sentávamos lado a lado. Fiz com ele uma longa viagem intercontinental, durante a qual falámos muito e nos fomos conhecendo melhor. A nossa última conversa teve lugar no final do passado mês de julho.

António Borges estava muito doente, como todos os que com ele trabalhavam podiam testemunhar. Isso notava-se de forma progressiva. E isso também tornava mais admirável, aos olhos dos seus interlocutores, a sua imensa coragem, o modo empenhado como continuou a dedicar-se às tarefas profissionais, a agudeza de espírito que revelava, o discurso impecavelmente articulado que desenvolvia. Não obstante a sua notória fragilidade física, nunca perdeu o sorriso. E até o humor.

Deixo uma palavra de respeito à memória de António Borges e sinceros sentimentos à sua Família.

Chiado

Foi uma reação coletiva de choque. A delegação oficial, que se havia deslocado a uma reunião internacional a Oslo, chefiada por um membro do governo português e na qual eu ia integrado, ficou tomada por uma emoção forte, face à informação que o embaixador português na Noruega lhe transmitiu: o Chiado estava a arder, na manhã daquele dia 25 de agosto de 1988.

Nesse tempo, não havia telemóveis, a única televisão portuguesa não era captável fora do país, nenhum de nós tinha, como era óbvio, um aparelho de rádio de ondas curtas. Os pormenores disponíveis eram, assim, muito escassos. Falava-se da possibilidade do incêndio poder atingir o largo do Carmo e mesmo a Bénard e a Brasileira, levando o Grémio e a Bertrand. Telefonou-se para Lisboa, mas as informações continuavam muito imprecisas e incertas. A ideia de que o Chiado - todo o Chiado! - corria o risco de desaparecer fez-me uma imensa impressão, transmitiu-me uma rara sensação de perda irrecuperável.

Não sou lisboeta. A minha memória do Chiado é quase toda adulta, da cidade para onde fui viver em 1968. De criança e do Chiado, lembro-me apenas da excitação de andar nas escadas rolantes do Grandela, nos anos 50. Para um miúdo ido de Vila Real, onde o único elevador da cidade (do edifício da Gomes) nunca até então funcionara, aquelas ruidosas engrenagens eram o "máximo" da modernidade. Depois, as cenas do "Pai Tirano" fizeram o resto. Claro que viria a fixar a memória queiroziana da montra da Férin, onde o Artur Corvelo ia ver se os "Esmaltes e jóias" se vendiam. E visitara com regularidade a Valentim de Carvalho. Fora também cliente do José Alexandre, mas (ironias do destino...) não tenho ideia de alguma vez ter entrado no Jerónimo Martins e, muito provavelmente, no Martins e Costa. A Ferrari também não fazia parte dos meus percursos, nos anos em que trabalhei pelo Calhariz e em que o Chiado entrava no meu quotidiano. E, de certeza segura, nunca fui cliente da Perfumaria da Moda nem na Casa Batalha, que haviam de ser vítimas irrecuperáveis da tragédia.

Tenho a imagem muito nítida da rara angústia que me atravessou nessas horas, ao pressentir, na desaparição do Chiado, a amputação de uma parte do meu próprio património pessoal de memória. Hoje, em perspetiva, acho mesmo um tanto exagerada a reação emocional que então me atravessou. Quem é de Vila Real compreenderá melhor se eu disser que foi como se me tivessem dito que toda a rua Direita estivesse a arder. 

Regressado a Lisboa, no dia seguinte, fui, de imediato, ver os estragos. Depois, com o tempo, tudo se tornou mais natural. Por anos, como toda a gente, convivi e desesperei com as obras. E, à medida que elas se concluíam, fui-me habituando ao "novo" Chiado, embora o resultado final esteja muito longe de ser do meu agrado. Mas isso é uma outra história. O que agora me interessa deixar expresso é que o incêndio do Chiado, em 25 de agosto 1988, há precisamente 25 anos, continua, até hoje e para sempre, a ser uma das mais traumáticas experiências de toda a minha vida.

sábado, agosto 24, 2013

Bartolomeu

Com esta fotografia roubada aqui e com um abraço muito forte à Fernanda, deixo a lembrança de que o Bartolomeu faria hoje 82 verões. Hoje, dia de São Bartolomeu.

Embaixadores políticos

Há dois dias, a propósito de um artigo de José Cutileiro, falou-se neste blogue dos chamados "embaixadores políticos".

Historicamente, todas as carreiras diplomáticas começaram por ser providas por embaixadores que eram personalidades públicas designadas pelo chefe de Estado, oriundas da aristocracia ou de setores poderosos ou influentes da sociedade. Com o tempo, o serviço diplomático profissionalizou-se e os embaixadores passaram, em regra, a ser escolhidos dentre os diplomatas mais credenciados. Alguns países, porém, continuaram a manter a prática de designar, para a chefia de certos postos, figuras exteriores às respetivas carreiras diplomáticas. Em geral, algumas ditaduras e regimes mais ou menos autoritários abusam desta prática. Mas um país democrático como os EUA vai mais longe e coloca, com regularidade, na chefia de muitas das suas embaixadas, figuras ligadas ao financiamento das campanhas que estiveram na base da eleição do presidente. Bem assessoradas, claro está, por competentes profissionais da diplomacia...

Em Portugal, a República e a ditadura escolheram várias personalidades políticas e sociais para a chefia das principais missões diplomáticas, que, aliás, eram então muito poucas. Esta prática não viria a desaparecer com o 25 de abril. Com vários pretextos, diversos governos colocaram o seu pessoal político em algumas embaixadas. Desde a Revolução, a diplomacia portuguesa haveria de albergar cerca de trinta de "embaixadores políticos". A partir de finais de 2010, vive-se um tempo diferente: não existe nenhum "embaixador político" na diplomacia portuguesa. Até quando, não se sabe, porque nenhum governo foi capaz, até hoje, de excluir em definitivo essa prática, por via legislativa.

Como é compreensível, dentro da carreira diplomática profissional existe um profundo e (quase sempre) justificado sentimento contra a indigitação de figuras que, não tendo feito a tarimba da vida diplomática, não tendo subido por mérito, ao longo dos anos, os seus diversos escalões, surgem um dia, de "pára-quedas", num determinado posto, qualificados como "embaixadores", por uma simples decisão política, muitas vezes para acomodar uma figura pública sem função ou que apenas se pretende premiar. Imagine-se o que aconteceria se alguém aparecesse nomeado "general", vindo da vida civil, para chefiar uma Região militar...

Na nossa história democrática recente, alguns desses "embaixadores políticos" serviram num posto e, depois, saíram. Outros acabaram por rodar entre vários postos, usufruindo de uma legislação que lhes permitiu passar a integrar o quadro dos embaixadores profissionais de carreira. Com justiça e julgo que com alguma objetividade, há que dizer que muitas dessas figuras pouco trouxeram à carreira. Outras foram mesmo algo nocivas. Nesses casos, nós costumávamos dizer que, se era para selecionar incompetentes, tínhamos já por lá alguns, não era necessário ir procurá-los fora...

Mas houve sempre algumas boas exceções. A certos "embaixadores políticos", o consenso no Ministério dos Negócios estrangeiros acabou por reconhecer que aportaram um real valor acrescentado ao serviço diplomático. José Cutileiro, que anteontem citei aqui, foi, seguramente, um desses nomes. A sua excecional competência ficou bem provada e o seu trabalho foi muito útil ao serviço externo do Estado. Por isso, na carreira, sempre reconhecemos José Cutileiro, sem qualquer favor, como "one of us". Ele e muito poucos.

Em tempo: aqui deixo a lista dos 30 embaixadores “políticos" nomeados após o 25 de abril, não excluindo poder haver alguma falha, que corrigirei de bom grado:

Albertino Almeida (Maputo)
António Flores de Andrade (Lusaka)
Vitor Alves (itinerante para as comunidades portuguesas)
Manuel Bello (OCDE)
Manuel João da Palma Carlos (Havana)
Manuel Maria Carrilho (UNESCO)
Eugénio Anacoreta Correia (S. Tomé, Praia)
Francisco Ramos da Costa (Belgrado, Copenhague)
Victor Crespo (Unesco)
José Cutileiro (Conselho da Europa, Maputo, Pretória)
José Fernandes Fafe (Havana, México, Praia)
Raquel Ferreira (Estocolmo, Tóquio)
José Silveira Godinho (OCDE)
Henrique Granadeiro (OCDE)
Álvaro Guerra (Belgrado, Kinshasa, Nova Deli, Conselho da Europa, Estocolmo)
Basílio Horta (OCDE)
André Infante (Argel)
Ernani Lopes (CEE, Bona)
António Coimbra Martins (Paris)
Fernando Santos Martins (OCDE)
Pedro Pires de Miranda (itinerante para as questões de petróleo)
Mário Neves (Moscovo)
Maria de Lurdes Pintasilgo (UNESCO)
Vitor Cunha Rego (Madrid)
Eduardo Ferro Rodrigues (OCDE)
Walter Rosa (Paris, Caracas)
Pedro Roseta (OCDE)
José Augusto Seabra (UNESCO, Nova Deli, Bucareste, Buenos Aires)
José Veiga Simão (ONU)
José Manuel Galvão Teles (ONU)

sexta-feira, agosto 23, 2013

Um episódio negocial

Pierre Moscovici é hoje ministro da Economia e Finanças da França, uma das figuras proeminentes do executivo desse país. O primeiro cargo ministerial de Pierre Moscovici foi de ministro para os Assuntos europeus, no governo socialista que iniciou funções em 1999. Moscovici sucedera a Michel Barnier, hoje comissário europeu, de sinal político contrário, com o qual eu tinha excelentes relações, ao tempo em que era secretário de Estado dos Assuntos europeus. Se o entendimento com Barnier fora quase sempre muito bom, de início nem tudo iria correr bem com Moscovici.

Durante o primeiro semestre de 2000, período da presidência portuguesa da União, coube-me a presidência do grupo negocial da Conferência intergovernamental para a revisão do Tratado de Amesterdão. Moscovici convidou-me então a ir a Paris e, desde logo, ficou evidente que a nossa perspetiva se opunha abertamente à posição francesa perante aquela negociação. Foram seis meses muito tensos no debate institucional, reuniões houve em que o "clash" atingiu um tom de rara confrontação e, por mais de uma vez, fui forçado a fazer declarações públicas que chegaram a causar algum mal-estar político entre Lisboa e Paris. Porém, as coisas, para nós, eram muito simples. Não estávamos dispostos a deixar que o período da nossa gestão da negociação (que sempre se soube que só se iria fechar sob a presidência francesa, no segundo semestre do ano) pudesse ser aproveitado pela França (e por outros países que tinham posições idênticas às de Paris) para fixar certas linhas tendenciais que, posteriormente, pudessem colocar em causa o peso futuro dos países de pequena e média dimensão no processo decisório dentro da União. Pierre Moscovici defendia a sua perspetiva, eu defendia a nossa (e a de muitos países que conosco concordavam). Nada de mais natural na vida diplomática internacional, mas, seguramente, algo que contribuiu para manter as nossas relações, durante todo esse ano, num registo algo tenso.

No início da presidência francesa, em julho de 2000, a França viu-se forçada a organizar uma reunião informativa sobre as negociações do novo Tratado, com os países então candidatos ao alargamento. Meses antes, Paris havia colocado reticências a uma iniciativa idêntica tomada por Portugal. Porquê? Porque, tal como alguns dos maiores "poderes" dentro da União, a França entendia que os Estados candidatos não tinham nada a ver com a discussão institucional em curso, que deveria ficar fechada a "quinze" antes da sua adesão. Nós tínhamos uma posição absolutamente oposta: se as decisões a tomar iam ter implicações no peso futuro desses países no contexto comunitário, nada mais justo que ouvi-los, a montante da sua entrada. Também não nos era indiferente, devo confessar, o facto da esmagadora maioria desses Estados ser de pequena e média dimensão, o que "confortava" as posições que Portugal defendia. O modo positivo como os países candidatos haviam acolhido a iniciativa da reunião que promovemos "obrigou" então a França a proceder, embora claramente "à contrecoeur", de uma forma idêntica à nossa.

Pierre Moscovici decidiu organizar essa reunião dos "quinze" com os países candidatos em Sochaux, perto da sua circunscrição eleitoral, Montbéliart, no cenário muito curioso do museu da Peugeot, nessa cidade perto da fronteira com a Suiça.

Depois de uma longa introdução, em que sintetizou à sua maneira a leitura do curso dos debates durante a presidência portuguesa, que acabara uns dias antes, Moscovici, ciente de que eu não deixaria de fazer uma outra interpretação dessa negociação, decidiu provocar-me:

- Esta é a leitura que a presidência francesa faz do modo como as coisas correram durante a presidência portuguesa. Mas, porque tenho a certeza que o nosso amigo Francisco Seixas da Costa, que chefiou as negociações no primeiro semestre, tem uma perspetiva diferente, passo-lhe de imediato a palavra, embora ele ma não tivesse solicitado...

A sala sorriu. Eu, que já estava "picado" com a interpretação "biaisée" feita pelo meu colega francês, decidi ir a jogo de forma ácida:

- Muito obrigado, Pierre. Se não te importas, falarei em inglês (e mudei para essa língua, o que foi a primeira "resposta" à provocação). Devo dizer que fiquei impressionado pelo modo criativo como leste os debates havidos nos últimos seis meses. De facto, tens toda a razão: não vejo as coisas assim. Ao ouvir-te cheguei mesmo a pensar que tínhamos estado em reuniões diferentes. Mas isso pouco importa. Aos nossos amigos dos países candidatos, eu gostaria de dizer que o que se passou, até aqui, na Conferência intergovernamental e que se prolongará nos próximos seis meses, configura essencialmente uma luta pelo poder. Podemos dar-lhe outros nomes, argumentar com questões de eficácia ou legitimidade, mas é basicamente de poder que se trata. Ora o poder, no seio da União, tem diversas expressões. Por isso, convido os nossos amigos a olharem com atenção para esse pequeno aparelho plástico que têm diante de vós e que vos permite mudar a língua em que querem ouvir as várias intervenções. (Todos os olhares convergiram então para os cumutadores de interpretação). Se bem repararem, as opções de línguas possíveis são três: francês, inglês e alemão. Nenhuma outra língua vos é proposta. Percebem agora melhor o que quero dizer quando falo de uma questão de poder dentro dentro da União?

Continuei a minha intervenção num tom duro, confrontacional, expressando a nossa visão da negociação e deixando claro que, ao assumi-la, estávamos, por antecipação, a defender uma posição interessante para a maioria dos futuros membros. Às vezes, olhava de soslaio para Pierre Moscovici, que mostrava um fácies descontente com o rumo que eu estava a dar à reunião. Atrás de mim, Josefina Carvalho, a minha colega portuguesa, a nossa maior especialista em questões institucionais europeias, gargalhava baixo, juntamente com a minha adjunta, Ana Leitão. A maioria dos nossos colegas dos países do alargamento, que eu me esforçara na reunião anterior por "catequisar" para a bondade das nossas soluções, sorria, com alguma ironia, começando a perceber que a União onde iriam entrar podia ter momentos divertidos de discussão.

À saída de Sochaux, as minhas relações com Pierre Moscovici tinham esfriado muito. Até dezembro desse ano, iriam piorar ainda mais. "To make a long story short", a Conferência intergovernamental veio a desembocar no Tratado de Nice, onde os maiores países da União, muito graças à relutante atitude dos Estados de pequena e média dimensão, não viriam a conseguir os objetivos por que haviam lutado (quem quiser saber um pouco mais sobre isto pode ler aqui). Anos depois, esses "grandes" países da União iriam conseguir esse seu desiderato através do Tratado chamado de... Lisboa! Mas isso é outra história...

O meu entendimento com Pierre Moscovici, que entretanto se "queixou" da minha obstinação num livro que publicou, viria a melhorar muito, depois desses tempos bem tensos. No quatro anos em que vivi em Paris, voltámos a encontrar-nos por diversas vezes, da mesa do "Café de Flore" a diversos almoços, antes e depois da sua nomeação como ministro. Conversámos bastante sobre a Europa dos dias que correm. E continuando a não pensar sobre ela rigorosamente o mesmo, convergimos hoje imenso sobre algumas das medidas de política necessárias para fazer face à crise que o projeto atravessa. E também sobre o que não deve e está a ser feito nas instituições europeias. E em alguns países.

quinta-feira, agosto 22, 2013

No amor como na guerra

José Cutileiro é um dos mais argutos comentadores da coisa internacional que regularmente publica na nossa imprensa. Com uma escrita límpida, ponteada de humor e ironia, o seu conhecimento das grandes questões geopolíticas oferece-nos perspetivas muito interessantes, enriquecidas por uma considerável experiência nas lides diplomáticas. Não tendo sido "diplomata de carreira", José Cutileiro foi dos poucos "embaixadores políticos" que a carreira, com gosto e por total mérito, aceitou como um dos seus.
 
Num artigo ontem publicado no "Jornal de Negócios", José Cutileiro aborda o reacender do conflito hispano-britânico sobre Gibraltar. Nele refere a dúvida, existente em muitos meios, sobre se este súbito zelo de Madrid não se ficará a dever à necessidade da criação de um fator de diversão externa que faça esquecer as trapalhadas que envolvem, na política interna, o governo de Rajoy. E, intitulando o texto "No amor como na guerra", José Cutileiro refere a frase algo marialva de um amigo seu, que sempre dizia: "Eu, se não tenho uma coisinha por fora, dou mau viver em casa".
 
Imagino que o feminismo militante salte de fúria perante esta "incorreção política". Mas que tem graça, lá isso tem!

Timor Leste - a infância


Ontem, ao ver o primeiro-ministro Xanana Gusmão numa cerimónia de homenagem a antigos combatentes pela independência de Timor-Leste, recordei um episódio divertido, aquando de uma sua visita privada a Nova Iorque, nos primeiros meses de 2001.

Xanana era um homem livre e, por essa época, fazia declarações segundo as quais não desejava ocupar qualquer lugar de Estado, no novo Timor-Leste, que dentro de um ano seria um país independente e pelo qual tanto tinha lutado. Andava feliz, com a sua mulher e um filho de escassos meses.

Eu era então o representante diplomático português junto das Nações Unidas. Convidei Xanana para almoçar, não só para lhe manifestar a imensa simpatia e admiração que tinha (e tenho) por ele, como grande figura humana e política, mas igualmente porque estava encarregado de o tentar convencer de que a responsabilidade que tinha para com o seu país não acabara ainda e que era importante que aceitasse a ideia de vir a liderar o novo Estado, candidatando-se às eleições presidenciais. Era essa a perspetiva prevalecente em Lisboa e, a mim, como representante diplomático junto das Nações Unidas, fora-me pedido que somasse a minha voz à de quantos assim pensavam, um pouco por todo o mundo.

O almoço iria ter lugar num restaurante, perto da nossa missão junto da ONU. Porque queria falar um pouco a sós com Xanana e com a sua mulher, pedi-lhe que viessem ter ao meu gabinete. As restantes pessoas que eu também tinha convidado para esse almoço com Xanana, entre os quais estava o jornalista do "Expresso" Tony Jenkins, que iria fazer depois um belo texto sobre a conversa à refeição, chegariam meia-hora mais tarde.

Expus a Xanana as razões que víamos como óbvias para a necessidade do seu compromisso com a vida política timorense. Revelei-lhe que, em Portugal, governo e presidente da República coincidiam nesta mesma leitura. Ele mostrava-se ainda muito relutante à ideia da candidatura, com a sua mulher numa atitude que me recordo ser então de apoio às reticências do marido. Argumentava que era mais importante ficar na sociedade civil, ao lado dos seus antigos companheiros de armas, os mesmo que ontem foram homenageados. Ficou-me a convicção de que, à época, era bem genuína essa sua atitude de recusa do regresso à política.

A certa altura, tive de sair, momentaneamente, do gabinete. Quando regressei, encontrei a seguinte cena: a pequena mesa de acrílico que existia entre os sofás tinha-se transformado no lugar de mudança das fraldas do filho de Xanana, o qual observava, divertido e encantado, a operação a que a sua mulher se dedicava.

"Não há problema, pois não?", perguntou-me Xanana, como aquele sorriso são e simples que o carateriza. Claro que não havia. Ou melhor, tavez passasse a haver. É que, concluída a operação, ficou a pairar no meu gabinete um odor bastante forte e difícil de afastar, num edifício onde as janelas não abrem e o ar condicionado é o único meio de circulação de ar.

Tudo estaria bem e se atenuaria com o tempo se, neste entretanto, não tivessem entrado pelo gabinete dentro, trazidos pela minha secretária, os restantes convidados para o almoço. Pelas suas caras, logo depreendi que ficaram com as narinas alerta para aquele peculiar e inconfundível odor, sobre cuja explicação decidi não elaborar. Procurei fazer sair toda a gente, com rapidez, para o restaurante, mas imagino que alguns devam, até hoje, estar intrigados por que diabo o gabinete do embaixador português na ONU cheirava daquela maneira...

Hoje, aqui na Haia

Uma conversa em público com o antigo ministro Jan Pronk, uma grande figura da vida política holandesa, recordando o Portugal de Abril e os a...