terça-feira, maio 07, 2013

Vitória brasileira

É uma boa notícia para a expressão internacional dos países de língua portuguesa a eleição do diplomata brasileiro Roberto Azevedo para o cargo de diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), há pouco anunciada. Mas esta eleição é, em primeiro lugar, uma grande vitória para a diplomacia brasileira e fico muito satisfeito que ele tenha sido titulada pelo seu ministro das Relações Exteriores, António Patriota, um bom amigo pessoal.

O Brasil tem-se revelado, de há muito, um participante ativo e relevante do processo negocial multilateral na área do comércio internacional. Dispondo de uma diplomacia muito capaz e interventiva, que sabe bem o que quer e como o obter, através de uma hábil política de interlocução e de alianças, o Brasil tem vindo a ganhar um estatuto que lhe permite consagrar institucionalmente, de forma progressiva, a sua influência e o seu poder. O modo como soube colocar-se na fase derradeira do "ciclo de Doha" da OMC, não podendo ser considerado culpado pelo seu fracasso e tendo-se mesmo revelado um parceiro construtivo na construção de modelos de compromisso final que não chegaram a vingar, poderá justificar muito do prestígio de que este resultado também é fruto.

Faço notar que este novo cargo internacional vem a somar-se ao que, desde 2012, foi obtido pelo Brasil na Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, com a eleição para seu diretor-geral de José Graziano da Silva, também já sob o consulado diplomático de António Patriota.

Volto a repetir uma ideia que há muito alimento: nenhuma das áreas potenciais de afirmação estratégica do Brasil (como, aliás, de todos os restantes países de expressão portuguesa) é contraditória com interesses portugueses. Pelo contrário, o reforço do papel do Brasil à escala global é positivo para o conjunto dos países de língua portuguesa. E esperamos que, por algum efeito de arrastamento, o possa ser também para a CPLP, enquanto entidade coletiva.

O senhor Matos

Por algumas décadas, a portaria do MNE foi dirigida pelo senhor Jaime Matos. O ministério era então uma "casa" quase "familiar", em que, à entrada, havia mais pessoas com nome e menos rotativos agentes da Securitas.

O senhor Matos era também o mais prestigiado dos "procuradores", essa "instituição" de que já aqui falei, que quase todos os diplomatas eram forçados a contratar e que, na realidade, lhes facilitava a vida e lhes permitia resolver uma imensidão de problemas, em especial quando colocados no quadro externo. Mas ter o senhor Matos como procurador era um verdadeiro "must" de prestígio. Enquanto muitos contínuos e motoristas batalhavam para representar os novos diplomatas chegados à casa, o senhor Matos dava-se ao luxo de selecionar aqueles que aceitava como seus representados. E, não raramente, "cedia" mesmo diplomatas a outros colegas dedicados à mesma tarefa.

Como contei noutro post, o senhor Matos tinha a peculiaridade de informar os seus representados dos rumores que circulavam sobre futuras nomeações para embaixadas ou lugares de chefia superior na casa. A isso chamava, nas cartas que enviava, "o movimento que se diz que vai haver". Raramente se enganava, tal a qualidade e a "reliability" das fontes de que dispunha.

Com os anos, com a experiência e tendo já ouvido muito, o senhor Matos chegou mesmo ao ponto de ousar ter opinião sobre a própria justeza de certas indigitações. Um dia, ficou famoso um comentário que, por carta, deu a alguns dos seus representados: "Dizem que o senhor doutor Fulano de Tal pode vir a ser o próximo diretor político. Seja o que Deus quiser!..." Noutra ocasião, depois de anunciar ua determinada colocação, acrescentou, eloquente na sua apreciação: "enfim!..."

segunda-feira, maio 06, 2013

Ainda o consenso

Os apelos ao consenso político, como por aqui já se notou, têm estado no centro do debate público dos dias que correm. A necessidade de tentar alargar a base de apoio, político e social, para a execução de novas medidas de austeridade levou o executivo a procurar chamar a um novo modelo de consenso o principal partido da oposição e os parceiros sociais. O tempo e o modo de surgimento destes apelos foram bem percebidos por esses destinatários e, naturalmente, não deixaram de determinar a forma como por eles foram recebidos. 

Porém, as últimas horas vieram confirmar que, afinal, continua ainda por obter um outro consenso, a ser feito a montante das próprias declarações do governo. Uma vez mais, ficou claro que a falta de consenso político começa por se verificar, desde logo, no âmbito da maioria que suporta o executivo. E não escapa a ninguém que isso condiciona fortemente a credibilidade do discurso deste último.

Se, como tudo indica, esta coreografia declaratória, aliás desenvolvida por todos os lados do espetro político, é, nos dias de hoje, essencialmente "para alemão ver", imagino a perplexidade que deve existir nas mentes geometricamente formatadas de Berlim quanto ao que por aqui se passa. Por isso, confesso que teria uma imensa curiosidade em ler o teor do telegrama que o embaixador alemão vai, daí a poucas horas, mandar para a sua capital. Pior: temo mesmo poder antecipar o que ele vai dizer. 

domingo, maio 05, 2013

Europa

No dia 9 de maio, dia da Europa, a partir das 21.30 horas, participarei de um debate sobre a Europa do pós-guerra, subsequente à apresentação do filme "Alemanha: ano zero", de Roberto Rossellini, a ter lugar na Cinemateca Nacional, Rua Barata Salgueiro, 39.

A Europa já não está fisicamente em ruinas, mas as ameaças sobre o projeto europeu são hoje muito sérias e obrigam a que reflitamos sobre os caminhos do futuro.

sábado, maio 04, 2013

Jogos de azar

Quando foi lançado, há quase 30 anos, o Totoloto tinha como slogan "é fácil, é barato e dá milhões".

Hoje, o moto aplica-se à Função Pública e aos reformados, enquanto alvos tributários. 

Ainda o Estado

Ontem, em Coimbra, após uma reunião do Conselho Consultivo da Faculdade de Economia da universidade, estrutura de que faço parte há uns anos, pude assistir a uma interessante palestra feita por um colega desse mesmo Conselho, o presidente do Tribunal de Contas, Guilherme de Oliveira Martins.

A intervenção, entre outras interessantes questões, abordou os problemas da responsabilidade financeira no exercício das funções do Estado, um tema que o Guilherme soube desenvolver com uma profundidade não contraditória com a sua perceção, sem ambiguidades, por um auditório interessado e inquisitivo. Uma das pessoas presentes, numa pergunta que apresentou, felicitou-se pelo facto daquela palestra, na agitação dos dias que correm, ter servido para nos fazer parar um pouco e ajudar a refletir, com seriedade e rigor, sobre temáticas que o nosso dia-a-dia tende quase sempre a envolver num sinal de polémica de oportunidade e, por essa via, de alguma demagogia. Fiquei a pensar que tinha toda a razão.

Num registo mais alargado, ao ouvir com atenção Guilherme de Oliveira Martins, que tem desempenhado com um notável equilíbrio e competência as funções de presidente do Tribunal de Contas, dei comigo a refletir sobre se o país o não poderia vir a aproveitar noutro tipo ainda mais elevado de responsabilidades, noutros patamares do Estado. No "baralho" das nossas figuras públicas reconhecidamente impolutas e competentes, ele surge como um dos poucos nomes verdadeira lente incontroversos. Será que o país poderá vir a ter a sabedoria para perceber isto?    

Em tempo: correspondendo a alguns pedidos, esclareço que a fotografia representa uma vista interior do hotel Movich, em Pereira, uma cidade da Colômbia. A figura ao fundo, acreditem ou não, é António Barreto, que fotografava o "panorama" seguinte.

A outra senhora

No tempo da "outra senhora" - isto é, da ditadura, para os leitores mais novos -, o meu pai, servidor público cumpridor e madrugador, costumava deitar-se relativamente cedo. Por ironia, que não por convicção, há muito que me repetia - a mim, que sempre fui um impenitente notívago - que só admitia que o acordasse se, nas notícias televisivas do fim da noite, fossem anunciados aumentos para a Função Pública, coisa que há anos não acontecia e que era muito improvável que ocorresse.

Numa noite de um desses anos cinzentos, comigo um pouco distraído a ler, mas com a televisão ligada, ouvi um comunicado oficial que anunciava, em linguagem oficiosa, típica do "discurso" do Estado Novo, que tinha sido determinado um aumento salarial para os servidores públicos. A internet estava a décadas de existir e, por uma qualquer razão, não consegui "recortar" a suposta informação nos noticiários da Emissora Nacional. Não era ainda muito tarde, mas o facto de eu ter ouvido a notícia sem grande atenção, fazia-me desconfiar de "tanta fruta". Optei por não acordar o meu pai, com receio de ter entendido mal e poder suscitar-lhe falsas esperanças. No dia seguinte, ao almoço, encontrei-o exultante, com a confirmação de um pequeno aumento salarial decidido para os funcionários públicos.

Porque é que me lembrei disto agora? Sei lá! Talvez porque a ditadura acabou em 25 de abril de 1974.

quinta-feira, maio 02, 2013

Jornalismo luso

Um ilustrado diário da nossa praça, traz hoje, na sua primeira página, o seguinte título:

Ex-colega do avô de Vitor Gaspar esteve na manif da UGT

Não li (nem tenciono ler) o texto da notícia, injustamente remetida para duas (!!) páginas interiores, mas posso presumir, sem dificuldade, a relevância informativa da mesma.

Os charutos


O jantar naquela embaixada tinha terminado há pouco. À volta da mesa já se serviam os cafés e as bebidas brancas. A embaixatriz lembrou então ao mordomo a necessidade de trazer a caixa dos charutos. Minutos depois, o homem aproximou-se da dona da casa, informando, em voz baixa, que, infelizmente, os charutos tinham acabado. A senhora estava desolada e desculpou-se junto do convidado principal, um diplomata sentado a seu lado, o qual, com imensa subtileza, logo menorizou a falta:

- Não tem a menor importância, senhora embaixatriz. Aliás, é muito raro eu fumar um charuto. Só às vezes, no final de uma grande refeição...

quarta-feira, maio 01, 2013

Consenso

Agora que o "consenso" anda por aí como expressão retórica de uma atitude política que subliminarmente se insinua como diferente, vale a pena recordar, através de uma fotografia, o que foi o ilusório e fátuo consenso que, no 1º de maio de 1974, alguns julgaram possível entre quantos se haviam oposto à ditadura. 

Há 39 anos, o dia do trabalhador passou-se assim. Uma leitura atenta das expressões faciais das duas principais personagens presentes na imagem pode ajudar a explicar, se bem que apenas com a experiência que adquirimos a posteriori, a divergência de projetos que ditou toda a história subsequente da esquerda em Portugal. No ano seguinte, em 1975, Mário Soares seria impedido de entrar no estádio onde se comemorava a data, com Álvaro Cunhal a conseguir ser a figura central da festa, numa vitória pírrica, como iria ficar claro em novembro.

Precisamente porque se afastaram programaticamente dos comunistas, os socialistas passaram a ter vocação de governo, nas décadas seguintes. Para o PCP, nesse mesmo período, as trincheiras iriam ser a Constituição, a área sindical e algum poder autárquico, único setor onde pontualmente se encontrou com um certo PS.

Muita água passou, entretanto, sob as pontes. Bem mais recentemente, há dois anos, o voto comunista voltou a ser determinante para ajudar a derrubar um governo socialista e abrir caminho ao regresso ao poder de uma maioria de sinal bem oposto. Estas coisas pesam para sempre no historial das relações no seio da esquerda portuguesa. 

PCP e PS seguem assim caminhos diversos na vida política portuguesa. Até hoje e, presumo eu, até aos amanhãs que se podem vislumbrar. De algumas vozes, na área socialista, ouve-se às vezes a opinião de que, com um PCP diferente, seria possível um qualquer entendimento. Mas poderia o PCP ser diferente? Podia, mas não era a mesma coisa...

terça-feira, abril 30, 2013

Tempus fugit

Ó diabo! Já passaram três meses desde que cheguei a Portugal. Tenho de ter mais cuidado, porque, se me distraio, o tempo vai por aí fora...

CNN


O nosso embaixador oferecera um almoço a uma importante personalidade de visita àquela capital. Por várias vezes, durante a conversa, o visitante referiu que a sua filha fazia um estágio na CNN, em Atlanta. O relevo que ele dava a esse simples facto começou a irritar-me. Na boca exagerada do babado pai, a jovem estava já a caminho seguro para um estrelato mediático à escala universal. 

Dei por mim a comentar:

- Também tenho na família uma pessoa que trabalhou na CNN. Mas já foi há muito tempo.

E mais não disse. Mas a conversa mudou de rumo.

Quando ficámos a sós, o embaixador comentou:

- Você nunca me tinha dito que tinha tido um familiar na CNN.

- Foi a minha cunhada. Trabalhou por lá há bastantes anos, na CNN, na Companhia Nacional de Navegação...

segunda-feira, abril 29, 2013

Casas mortas

Ontem decidimos fazer um desvio para tentar visitar, numa aldeia da Beira, um casal amigo, já bem idoso, que não víamos há quatro ou cinco anos. Ele era uma figura muito interessante, com atividade cívica no passado e um pensamento crítico sobre o presente. Com ela eu tinha uma longínqua ligação familiar. Costumava falar-lhes para lhes enviar um abraço pelo Natal. Há três anos, fui por ele informado do estado de doença da senhora. Nos dois Natais passados não havia conseguido contactá-los e, por razões que não vêm para o caso, não tinha outra maneira de saber deles.

Ontem, aproximámo-nos da aldeia, devo dizê-lo, com um mau pressentimento. O facto do portão de acesso à moradia estar aberto deu-nos um minuto de esperança. Mas os estores da casa estavam corridos, a campainha já não soava. O descaso das ervas que cobriam o pátio, bem como outros sinais evidentes, indiciavam que ninguém por ali vivia. Perguntou-se a um vizinho. Informou que o cavalheiro tinha morrido há dois anos, a esposa há já alguns meses. Atenta a respetiva idade, não era algo de surpreendente, mas não deixou de ser um choque forte sentir que, para sempre, deixaríamos de poder contar com o acolhimento, caloroso e amigo, de duas figuras a quem, durante muitos anos, visitávamos com grande prazer, quando passávamos nas imediações. Ontem, acabou a única razão que nos levava àquela aldeia serrana.

Esta experiência lembrou-me outra, com poucos meses.

Várias vezes durante a última década, em passagens por Portugal, teimávamos em tentar contactar um amigo que, por uma razão que nunca apurámos, havia deixado de aparecer, já mesmo nos últimos atarefados anos em que por aqui vivíamos. Era uma pessoa com um mundo muito próprio, alguém que se revelara um bom amigo em diversas ocasiões, e que era simultaneamente uma figura interessante, culta, com "mundo" e personalidade. Mas, de há muito, o seu telefone não atendia, as notas que deixávamos na sua caixa do correio, na casa que ocupava num bairro antigo, nunca tiveram a menor resposta. Por muito estranho que isso possa parecer, não tínhamos outros amigos comuns que nos pudessem dar nota do seu paradeiro, nem lhe conhecíamos uma ocupação que a ele nos pudesse conduzir.

Há uns tempos, ainda antes do nosso regresso definitivo a Portugal, passámos uma última vez pela casa desse amigo, mas o seu nome deixara de figurar na campaínha da porta. Meses mais tarde, surgiu-me a ideia de procurar no Facebook pessoas com o mesmo apelido, que não era muito vulgar. Escrevi a cerca de uma dezena, tentando saber "o que era feito" do nosso amigo. Obtive duas respostas. A de um brasileiro, dizendo não ter qualquer ligação familiar com o nosso amigo e a de um irmão, informando da sua morte, já ocorrida há mais de um ano. Sem mais pormenores. Dos restantes possíveis (e alguns bem prováveis, por várias razões) familiares, recebi apenas um estranho silêncio.

Decidi anotar aqui estes dois momentos tristes. Porventura é prova de alguma ingenuidade pensar que as pessoas ficam à nossa espera eternamente, que o tempo não passa para elas, da mesma forma que passa para nós, que os azares as poupam sempre. Mas nem por isso me choca menos confrontar-me com o silêncio destas casas que, para nós, apareceram de súbito mortas, sem que tivéssemos tido oportunidade de trocar uma última palavra com quantos as ocupavam e também faziam parte do nosso mundo.     

domingo, abril 28, 2013

O governo Letta

Era um homem discreto, bastante jovem, sempre sorridente, de quem emanava "uma boa onda" e uma natural simpatia, como se lembrarão outros que, como eu, com ele partilharam, durante um ano, a mesa do conselho ministerial do "mercado interno" e as presenças nos "assuntos gerais", naquele final dos anos 90. Enrico Letta era o ministro sem pasta que tinha a seu cargo os assuntos europeus, no governo dirigido por Massimo d'Alema. Hoje, com menos de 50 anos, tem a seu cargo a chefia de um governo italiano em tempo de grave crise.

Para os Negócios estrangeiros desse novo governo entra uma figura que alguns, em Portugal, também conhecemos bastante bem, em especial como comissária europeia que teve a seu cargo a política de defesa dos consumidores, a política de pescas e também as questões de ajuda humanitária. É uma mulher de convicções, com quem não é fácil negociar (sei do que falo!). Com ela, com toda a segurança, a palavra da Itália não se deixará capturar, nos tempos que aí vêm.

Talvez não haja hoje por cá a real perceção de que do sucesso ou insucesso deste governo italiano pode depender muito do futuro próximo da Europa. Um " barco" em que nós também estamos. Por essa razão, para além de devermos desejar que um país amigo como é a Itália recupere uma estabilidade "sustentada" (como agora se diz, a propósito de tudo e de nada), esse é também um voto que devemos formular no nosso próprio interesse. 

Viva a ASAE!

A pretexto de uma qualquer revisão da equipa governamentativa, tudo indica estar em preparação uma operação de desativação da função repressiva e policial da ASAE, instituição que alguns novos ventos pretendem qe se dedique agora mais à "formação" e à "educação". Fico preocupado, porque sei bem "do que a casa gasta". Temo mesmo o pior, porque conheço o Portugal retrógrado que se esconde por detrás das medidas de "compreensão" com "os legítimos interesses do pequeno e médio comércio", com que se pretende "humanizar" a ASAE.

A ASAE sempre incomodou bastante. Incomodou os comerciantes desonestos que fazem concorrência àqueles que pagam regularmente os seus impostos, incomodou alguns donos de unidades hoteleiras, restaurantes e cafés que punham no bolso o que deveriam investir em equipamentos e métodos de higiene para salvaguardar a saúde pública dos seus clientes, incomodou certos industriais e armazenistas para quem a validade e salubridade dos produtos eram identificáveis com preciosismos e rigor excessivo, incomodou os taxistas piratas que sonham passar pelo Estoril no caminho entre o aeroporto e a Baixa. E incomodou muita mais gente, em especial, claro, alguma classe política que sobrevive demagogicamente e faz o seu "fond de commerce" do voto dos supracitados e daqueles que deles dependem ou influenciam, às vezes por mera iliteracia cívica.

Eu já vivi no Portugal do comércio "à balda", das cozinhas imundas das tascas e restaurantes com baratas e ratos, do salve-se quem puder e do arranjismo do comércio e indústria que, com a total complacência dis poderes públicos, não tinha o mínimo respeito pelo público pagante. Eu sou do país que assistiu, por décadas, à "guerra" heróica e quase sempre muito solitária da Deco, ao esforço magnífico de homens "chatos" como Beja Santos, à má vontade e ao amiguismo (e, às vezes, à mais comezinha e disfarçada corrupção) que, por muito tempo, bloqueou a defesa do consumidor em Portugal.

Como governante, e com imenso gosto e empenho, representei, por mais de cinco anos, Portugal no conselho de ministros do "mercado interno" da União Europeia, onde ajudei a ligar o nome do nosso país a medidas de modernidade que o procuraram afastar de um mundo de outros tempos, que hoje só quero esquecer e ao qual me recusarei obstinadamente a regressar.

Não me venham com acusações de "fundamentalismos" anti-tabágicos, de excessos de rigor e de falta de flexibilidade na adaptação às medidas que a mera lógica da defesa do consumidor exigia. Não tenho a menor complacência para uma certa brigada snobe, acantonada na trincheira finaça do Ancão ou da Comporta, que defende a venda, sem condições mínimas de higiene, das bolas de Berlim no quente dos Verões sulistas, elitistas e liberais - para utilizar uma máxima consagrada.

Eu também não gosto do tom Dirty Harry que o diretor da ASAE às vezes assumia, detesto aqueles coletes "operacionais" que o seu pessoal usava (usa?), fiquei por vezes incomodado com o espetáculo mediático com que a ASAE envolvia algumas das suas operações, sob o "voyeurisme" das televisões. E aceito, sem dificuldade, que possa ter havido, aqui ou ali, algum excesso, no cumprimento das leis que a ASAE tem por obrigação fazer respeitar. Mas recuso-me a confundir tudo isso com o essencial: a ASAE foi uma benção para o consumidor português.

Por isso, para mim, e para sempre no futuro, nomeadamente na luta política que sobre isto aí virá, viva a ASAE!

Depois de Cristo

Eu tinha feito um comentário conjunturalmente algo ácido a propósito da "performance" de uma certa personagem político-institucional. Acontece-me cada vez mais, confesso. No grupo em que estávamos, um colega, diplomata ainda no ativo, saiu-se com esta:

- Você diz isso porque já está depois de Cristo!

Nesse instante, essa pessoa foi chamada por alguém e abandonou, por momentos, a sala. Perguntei aos circunstantes se tinham percebido o que ele teria querido significar com o que tinha dito. Ninguém tinha entendido o comentário. Por que raio estaria eu "depois de Cristo" e não "antes de Cristo"?

O colega regressou e eu pedi que fosse mais claro. Foi:

- Você já se pode dar ao luxo de dizer essas coisas, de fazer esses comentários, porque já não precisa "deles", porque já recebeu, creio que há quase 10 anos, a grã-cruz da ordem militar de Cristo, a mais alta condecoração a que poderia ambicionar. Ora eu ainda ando a lutar por ela, pelo que comigo "a coisa fia mais fino", tenho de ter muito cuidado, embora - confesso! - partilhe em pleno a sua opinião...

Percebi a prudência desse colega. Mas não pude deixar de pensar que, precisamente nos tempos imediatamente antes de eu receber "o Cristo" (como na carreira, simplificadamente, sempre nos referimos àquela comenda), eu tinha dito publicamente de alguns "deles" o que Maomé não diz do toucinho. Não de todos, reconheço. Não por receio, mas simplesmente porque o não mereciam.

sábado, abril 27, 2013

"Swaps"


Como muito bem lembra hoje Pedro Santos Guerreiro no "Jornal de Negócios", o grande problema que a questão da "negociata" dos "swaps" (aquisição de produtos financeiros para reduzir riscos de variações de preços de fatores não controláveis) suscita pode ser menos a eventual questão dolosa por parte de quem representou o Estado na transação (culpabilidade que, a existir, pressupõe a devida imputação criminal e deveria acabar na prisão dessa gente), mas, muito simplesmente, a discussão da competência de quem tinha por obrigação defender o interesse público. É que poderemos ter de chegar à conclusão de que quem nos (a nós, contribuintes) representou no negócio pura e simplesmente não sabia o que fazia e não tinha habilitação técnica para tal. 

Quem, com regularidade, clama por "menos Estado", e passa os dias a indignar-se pelos gastos do setor público, também deveria interrogar-se sobre se, muitas vezes, tais cortes não afetam já a sustentação da massa crítica mínima, em matéria técnica, para a defesa do interesse público (que é também o seu) e para o funcionamento capaz da máquina oficial. É que fazer omoletes sem ovos é, quase sempre, uma obra difícil. Um destes dias, com a máquina do Estado desativada e desmotivada, começarão, de facto, a ter razão os que proclamam que "o Estado não funciona". Mas esses mesmos deixam de ter a menor legitimidade para protestar sempre que o que "sobrar" desse mesmo Estado, no "estado" em que o deixarem, vier a comportar-se da mesma forma que estes "hábeis" negociadores dos "swaps".

sexta-feira, abril 26, 2013

Abril, ontem

Há vários anos que penso o mesmo: a patética sessão na Assembleia da República, tal como a divisiva descida da avenida da Liberdade, constituem-se num fator de lamentável e reciclada polémica, que apenas contribui para converter o 25 de abril numa data de confrontação, quando deveria ser simplemente uma dia de festa e de celebração da Liberdade.

Este 25 de abril dos "prós e contras" é um péssimo serviço que o país presta à sua melhor memória. Mas também já percebi que esta é uma causa perdida. Das televisões aos jornais, do parlamento aos futebóis, tudo a partidarização leva adiante de si, sem grandes ganhos para uma melhor cidadania. E sem que isso contribua para que as novas gerações sintam a menor gratidão histórica face a uma data cujo significado profundo hoje se podem dar ao luxo de ignorar.

Por razões que a conjuntura ajuda a entender, as coisas tornaram-se ainda bem piores este ano, com protagonistas a justificarem, para eles próprios, as palavras da canção-senha de abril, "E depois do adeus":

Quis saber quem sou
o que faço aqui
quem me abandonou
de quem me esqueci


Ou muito me engano ou já não vão a tempo de obter qualquer resposta.

quinta-feira, abril 25, 2013

Gorjeta patriótica

O hotel está a estrear. Muitas coisas ainda não funcionam. Várias "facilities" de que a publicidade faz alarde ainda não existem. O pessoal esforça-se por ser simpático e prestável, mas não há nada que compense a falta de água na piscina. O mais chocante, porém, é o facto do acesso aos andares superiores se fazer... por escadas, sem que existam elevadores. Será que a circunstância de se tratar de um "hotel rural" justifica estas singulares peculiaridades arquitetónicas?

Nesta pausa abrilista, em que me refugiei por uma noite numa unidade hoteleira a preço razoável no oeste do país, veio-me à memória uma historieta ocorrida comigo há mais de uma década, num hotel de Khujand, bem no norte do Tajiquistão, onde também não havia elevadores no caminho para os quartos. Mas esse era um modesto hotel, ainda tributário da era soviética.

Eu chegara, como sempre (nunca aprendi a viajar "light"), com uma pesada mala. Quando me disseram que tinha de subir dois andares a pé, cansado como estava, depois de um dia de trabalho muito intenso, "passei-me" e reclamei. A rececionista, com pinta de "aparatchik", confrontada com o meu mal-estar, mas sem mais comentários, disse-me para eu ir indo para o quarto, que a mala lá iria ter. Largos minutos volvidos, bateram-me à porta. Ofegante, um homem, cuja idade deveria rondar à vontade os 80 anos, apresentou-se com a minha mala. 

Senti-me incomodado. Então aquele senhor idoso tinha subido as escadas, com quase 25 quilos na mão, para evitar o meu esforço? Para além de articular vários "spasiba", entendi dever dar-lhe uma boa gorjeta, que pudesse compensar o meu complexo de culpabilidade. O homem mirou a nota de cinco dólares, revirou-a bem não fosse estar a ver mal e saiu, às vénias, desta vez sendo ele quem se desfez em coisas que entendi como profundos agradecimentos. 

Sabia que a gorjeta tinha sido boa, mas não tinha ideia do que ela significava, à escala local. Quando, ao jantar, contei o episódio a um diplomata holandês que vivia no país, revelando-lhe o montante da gorjeta, o comentário foi, para mim, surpreendente: "Em moeda local, o que você lhe deu deve representar mais de metade da reforma mensal do homem!"

Na manhã seguinte, ao sair do quarto, deparei com o idoso, especado em frente à porta, já preparado para transportar de novo a minha mala. Deduzi mesmo que devia estar por ali já há algum tempo. Com um imenso sorriso, num tom levemente interrogativo, como que a confirmar apenas o que já sabia, disse-me: "Portugaliya!?" Confirmei e lá descemos as escadas, ele ajoujado com a minha mala, comigo ao lado, descansado, apenas com uma pequena saca de pano ao ombro.

À chegada ao lóbi, recordo, como se fosse hoje, o olhar reprovador e prenhe de "righteousness" das minhas colegas de viagem, embaixadoras da Noruega e do Canadá, que condenavam silenciosamente a minha atitude de vil e eurocêntrica exploração da terceira idade tajique. Como poderia explicar-lhes que estava a fazer um "favor" ao homem? Como reagiriam se lhes falasse dos cinco dólares da véspera?

À entrada para a carrinha, ainda hesitei: como a tarefa da manhã tinha sido "a descer", devia dar uma gorjeta inferior à da véspera? Mas, esmagado pela culpa, logo me decidi: voltei a dar ao homem outra nota de cinco dólares. Sorriram-lhes os olhos e despediu-se com um forte e efusivo cumprimento de mão, sempre repetindo, enfático: "Portugaliya! Portugaliya!". Por 10 dólares, a imagem do nosso país subiu, nesse dia, aos píncaros, nessa remota e pequena cidade da Ásia Central. 

A similitude entre o "hotel rural" do oeste, onde há uma hora me instalei, e o pobre hotel de Khujand fica-se pela falta de elevador. Ao menos, por aqui, há "wifi", o que me permite publicar este post com toda a Liberdade que o dia me consente.

"Notas Verbais"

Começou há muitos anos, creio que há mais de 12, se a memória me não falha. O "Notas Verbais" é um blogue que faz já parte da própria história do Ministério dos negócios estrangeiros, cuja atividade acompanha. Se não me engano, desde que foi criado o blogue, o MNE já teve seis titulares, o que é obra! Para o blogue, claro.

Escrito por Carlos Albino, antigo jornalista do "República" e, posteriormente, correspondente diplomático do "Diário de Notícias", o blogue tem tido longas intermitências na sua publicação. Muitas vezes estive em forte desacordo com opiniões e leituras dos factos que o NV publicou, sobre aspetos da vida interna do MNE. Uma vez, cheguei mesmo a insurgir-me, com uma veemência que surpreendeu o Carlos Albino (mas que claramente lhe não era dirigida), por ele ter publicado uma comunicação interna do MNE, que alguém lhe terá fornecido, à revelia da confidencialidade que é o nosso "código de honra". Mas mesmo não concordando necessariamente com muito daquilo que o NV publica, reconheço o imenso esforço do seu autor para acompanhar a nossa vida diplomática.  

Saúdo aqui o regresso do NV "às lides", que observei há dias. Espero que, como o Toyota, venha "para ficar". Faço-o nesta bela data do 25 de abril, porque nesse mesmo dia, em 1974, o Carlos Albino teve um papel decisivo na difusão da senha musical que deu o mote ao "levantamento" da Revolução.

quarta-feira, abril 24, 2013

Chapeau!

Nunca me tinha lembrado de uma realidade que o "Le Monde", há poucas horas, descortinou: os britânicos têm hoje precisamente um modelo de Europa que sempre quiseram ter. Isto é, uma estrutura basicamente assente no mercado único, cheia de "opt out", alargada ao ponto da diversidade tornar inviável uma cultura comum e um poder coletivo, e cada vez menos federal, dotado de uma representação externa de nível patético, esta última coordenada por uma figura britânica de segunda escolha.

"Chapeau!", como diriam os franceses.

Blogue da semana!

Muito obrigado a Laura Ramos e ao "Delito de Opinião" por terem considerado este "Duas ou três coisas" o seu "blogue da semana".

É bom saber, de viva "voz escrita", que se apreciam estas "escrevivências", bela expressão de David Mourão-Ferreira lembrada por Laura Ramos.

Da coragem em diplomacia

Foi sempre um homem frontal, talvez porque tinha uma competência acima de toda a dúvida e, em vários momentos da sua carreira, em especial nos lugares de chefia que ocupara, dera provas de grande lucidez e capacidade de interpretar, com rápida perceção, aquilo que considerava ser o interesse nacional. Sabia-se que Lisboa temia essa sua forma de estar, que se irritava com a sua independência, pelo que eram raras as ocasiões em que ousava contestá-lo.

Um dia, chegou à embaixada que chefiava uma instrução cujo eventual cumprimento representaria o cometer de um flagrante erro, que iria afetar a imagem de Portugal. Às vezes essas coisas acontecem, por uma má avaliação das circunstâncias, por falta de ponderação das consequências da decisão, no seio de uma administração que vive sob a pressão do tempo. As embaixadas existem precisamente para isso, para fornecerem a perspetiva local, para ajudarem a adequar o processo decisório lisboeta às realidades concretas do posto.

Porém, dessa vez, a instrução vinha de muito "alto", tinha um tom de urgência imperativa, pelo que era difícil contestá-la com uma mera comunicação escrita. O ministro-conselheiro da embaixada foi encarregado pelo embaixador de fazer um contacto telefónico, com vista a chamar "Lisboa" à razão. Confrontou-se com uma total intransigência, que logo reportou ao embaixador. 

Este resolveu, então, tratar a questão pelas suas próprias mãos e telefonou ele mesmo ao colaborador próximo da alta figura em nome de quem a instrução tinha chegado. A conversa não foi longa. O embaixador expôs, com a inteligência e bom-senso que eram os seus, as razões pelas quais não poderia executar o que lhe era pedido. A certo ponto da conversa, que começou a azedar pela obstinação do interlocutor, o embaixador deixou cair:

- Meu caro, você já tem experiência suficiente para perceber que o que me está a pedir para fazer é uma estupidez!

Do outro lado da linha, o colaborador próximo da figura política terá dito, em desespero argumentativo defensivo, que a decisão não era sua, que fora tomada pelo seu chefe. Aí, o embaixador não se conteve:

- Ó homem! Eu não disse que a decisão era sua! Eu apenas disse que ela é estúpida, quem quer que seja que a tenha tomado...

Para a pequena história, diga-se que a instrução não foi cumprida, porque a sua absoluta falta de razoabilidade acabou se tornar evidente. Como evidente ficou a excecional coragem do embaixador.

Ontem, ao final da tarde, o embaixador e o ministro-conselheiro de então deram um forte abraço de amizade, num salão das Necessidades, onde ambos tinham ido ouvir uma palestra de uma amiga comum. Gosto sempre muito de encontrar esse meu antigo embaixador, por quem tenho um imenso respeito e com quem muito aprendi.

Meteorologia

São interessantes as declarações do presidente da Comissão europeia, nas últimas horas abundantemente relatadas pela comunicação social, nas quais afirma a sua convicção de que as políticas de austeridade, se bem que formalmente corretas, não resultam e chegaram ao limite do exigível. 

Estas tomadas de posição do presidente da Comissão europeia contradizem, se bem se lembram, as que foram proferidas, há escassas semanas, por uma "outra" pessoa: o dr. Durão Barroso, que ameaçava os países "do Sul" da Europa, em especial Portugal (o "Expresso" ajudou-o, depois, a adocicar a gaffe), em termos imperativos, em caso de desvios das metas macroeconómicas. 

Felizmente que estes países "do Sul" têm agora quem os defenda. Precisamente a pessoa do presidente da Comissão europeia, o qual, nada menos do que contra o que pensava o dr. Durão Barroso, tece, nas declarações de ontem, largos elogios aos países "do Sul" e coloca em causa o elevado esforço que lhes está a ser pedido.

Dirão alguns que tudo isto tem escassa importância, que estas contradições fazem parte da vida política, em particular europeia. Não estou nada de acordo. Tendo em atenção que certas figuras nos habituaram a "não dar ponto sem nó" e a medirem bem de onde sopra ou vai soprar o vento, talvez possamos presumir que nos esperam dias mais agradáveis, no tocante à pressão constrangente das instituições europeias em matéria de imperativos de aperto macroeconómico. Será assim?

Em tempo: afinal, depois de Berlim o ter chamado "à pedra", o dr. Barroso lá veio dizer que o que o presidente da Comissão europeia disse afinal não era o que todos o ouviram dizer. Aquela frase interrogativa de Juan Carlos a Hugo Chavez cada vez se torna mais atual.

terça-feira, abril 23, 2013

Dinheiro em Caixa

Ouvimos hoje de um governante a indicação de que irão ser dadas ordens muito claras à Caixa Geral de Depósitos no sentido de reforçar as linhas de crédito às pequenas e médias empresas, como forma de favorecer a exportação e fornecer meios financeiros para estimular a economia. E a engrossar a voz para que o resto da banca reduza os seus "spreads".

É tão bom poder ter uma banca ao qual o Estado possa dar ordens, não é? Por uma questão de coerência, espero, com ansiedade, ver sair a terreiro, liberalmente escandalizados como a decência recomenda, todos quantos defenderam a privatização da Caixa, cujos nomes por caso já esqueci.

A mala e o seu conteúdo

Era um posto diplomático longínquo, onde nada se passava de importante. Para ele fora mandado como embaixador um funcionário com um passado pouco distinto e com um futuro a termo certo, dado ser essa a sua última colocação. A sua relação com a "secretaria de Estado", a designação que a carreira se habituou a dar aos serviços centrais em Lisboa, era muito complexa, por virtude de contenciosos antigos que mantinha com setores da hierarquia. Assim, volta e meia, a sua peculiar e errática "performance" era objeto de sérios remoques de Lisboa, fosse por falta de resposta a diligências pedidas, fosse por queixas da inação da embaixada, apresentadas por terceiros. Até notas depreciativas sobre o programa preparado para certas visitas haviam sido recebidas. Mas não havia jeito a dar: um ambiente de tensão com as Necessidades era o seu pão de cada dia. Aliás, tendo perdido já qualquer estímulo profissional, o embaixador apenas "sobrevivia" no posto, no pouco tempo que aí lhe restava. 

Uma vez por semana, chegava à embaixada a mala diplomática. Partir os "selos" e o fios metálicos que fechavam o saco de lona, conferir os envelopes com a "guia" de remessa, abrir a correspondência, que nesses tempos se concentrava nos "ofícios"   - tudo isso constituía um momento de alguma excitação para o único colaborador diplomático do embaixador, um jovem secretário, que vivia a sua primeira experiência no estrangeiro. 

À segunda ou terceira vez em que percebera que a chegada da mala diplomática desencadeava um muito escasso interesse ao seu chefe, teve a coragem de referir-lhe isso mesmo, a sua surpresa por não o ver curioso sobre o que chegava de Lisboa. O embaixador, "batido" e cansado de anos frustrantes de experiência, teve uma frase que ficou nos anais do anedotário da nossa carreira: 

- Meu caro, a mala diplomática só tem três coisas relevantes: os vexames que nos infligem, os cheques com que nos pagam e as autorizações para férias que recebemos. 

Eram embaixadores de outros tempos, agora que os dias da "troika" até já se abateram sobre o ritmo das malas diplomáticas. E nem falo nos cheques...

segunda-feira, abril 22, 2013

O mistério do nó de Francos

- Sabes onde é o nó de Francos?

A pergunta não me apanhou totalmente de surpresa, porque tinha sido antecedida de um comentário do tipo: "Então lá vi, no teu blogue, que és muito "entendido" no Porto!"

Devo dizer, contudo, que estranhei o facto daquela amiga, empedernida lisboeta e que eu achava distante das peculiaridades da "Invicta", me estar a colocar tal questão. Mas lá lhe respondi que sim, que sabia onde era o "nó de Francos".

- Olha! Ele sabe onde é o nó de Francos! disse com um ar de espanto, voltando-se para o marido.

Senti-me o "Vasquinho" no exame de Anatomia, na "Canção de Lisboa", quando revelou conhecer o "esternocleidomastoideo".

- E Bessa Leite, conheces?

Que diabo! Que raio de interrogatório portuense era aquele? É que logo se seguiu uma questão sobre a avenida AEP.

A explicação veio logo:

- Conhecemos muito mal o Porto, mas fartamo-nos de ouvir, todos os dias, aqueles nomes, nas notícias sobre o trânsito. Já nos são familiares. Um dia vamos ao Porto contigo, para nos mostrares esses sítios. Andamos com uma imensa curiosidade...

Se acaso eu vier a levar esses meus amigos para conhecer o Porto, acho que há sítios bem mais interessantes do que pô-los a passear pela avenida AEP...

Esta historieta, passada há dias, lembrou-me uma conversa com um amigo timorense, há muitos anos, em Nova Iorque. Falávamos de Lisboa, cidade que ele só tinha visitado por escassas horas De repente, inquiriu: "Você sabe onde é a segunda ponte do Feijó?" Disse-lhe que sabia que era na margem sul do Tejo, mas não tinha a certeza que localidades ligava. Mas qual era a curiosidade? Riu-se e disse-me que, na rádio portuguesa que chegava a Timor pela onda curta, relativa à manhã lisboeta, ouvia frequentemente que "as filas de trânsito começam na segunda ponte do Feijó"...

Afinal, as notícias do trânsito podem ser bem instrutivas.

domingo, abril 21, 2013

Giorgio Napolitano

          

Ontem, Giorgio Napolitano, com os seus 87 anos, aceitou, bastante contra a sua vontade e apenas para ajudar a resolver a grave crise política que atravessa o seu país, reassumir a chefia do Estado. 

Em 1953, Napolitano foi deputado pela primeira vez, pelo Partido Comunista Italiano. Muitos anos depois, já como membro dos Democratas de Esquerda, foi presidente da Câmara dos Deputados, ministro do Interior, senador vitalício e presidente da República italiana, neste caso por nove anos.

Foi através de Piero Fassino, que foi presidente da Câmara de Turim e ministro da Justiça (grande amigo do antigo secretário de Estado português, Victor Neto, ao tempo do exílio deste em Itália), que conheci Napolitano.

Eu havia criado com Fassino uma forte relação, que se mantem até hoje, desde o tempo em que tivemos responsabilidades similares nos nossos respetivos governos. Napolitano e Fassino, ambos oriundos do Partido Comunista Italiano, tinham colaborado no "aggiornamento" de Berlinguer e faziam parte de quantos, mais tarde, com d'Alema, haviam trazido o velho PCI de Togliatti (e de "Peppone", claro) para o "mainstream" da política italiana, também muito graças ao "compromisso histórico" que pode ter custado a vida a Aldo Moro.

Em inícios de 1997, Fassino telefonou-me para Lisboa, perguntando se eu estaria disponível para ter uma conversa com Giorgio Napolitano, à época ministro do Interior, durante uma deslocação que, na semana seguinte, eu iria fazer a Roma, já não recordo bem para quê. Acedi de imediato.

Em Portugal, por esse tempo, cabia ao secretário de Estado dos Assuntos Europeus a gestão do dossiê do Acordo de Schengen, o que era um expediente para superar a rivalidade entre os ministérios da Administração Interna e da Justiça no tratamento do tema. Assim, no ano de 1997, iria competir-me a titularidade da presidência daquele acordo, que Portugal ia assumir por regra rotativa.

A Itália tinha subscrito o acordo em 1991 (Portugal apenas em 1992), mas só veio a aplicá-lo em fins de 1997 (com Portugal a pô-lo em vigor em inícios de 1995). As principais razões do atraso da Itália prendiam-se com a falta de confiança dos parceiros na sua capacidade de controlo das fronteiras externas.

Napolitano recebeu-me no seu soberbo gabinete do ministério do Interior, em Roma. Tinha 71 anos e já parecia ter muitos mais. Os seus movimentos eram lentos, as palavras também, mas o seu raciocínio era muito ágil. Recordo sempre o comentário do meu então chefe de gabinete, Miguel de Almeida e Sousa, no final da reunião: "O velho é muito vivo!"

A nossa conversa começou em torno dos melhores chás pretos, que ambos apreciávamos e tínhamos pedido, com ele a tomar nota, com um lápis, num pequeno pedaço de papel, de uma marca inglesa que então lhe recomendei. O tempo, naquele ambiente antigo, parecia suspenso. Pelas caras de quem ia comigo, a começar pelo nosso embaixador em Roma, percebi que o ritmo da audiência poderia vir a contaminar outros encontros e reuniões que eu ainda teria nesse dia. Não tenho ideia se isso veio a acontecer.

Napolitano, numa voz cava e pausada, que mantinha num registo baixo, foi direito ao assunto: a Itália precisava de garantir, na reunião ministerial a que eu presidiria, em Lisboa, meses depois, o seu lugar de pleno direito em Schengen. Um país fundador das comunidades europeias não podia ficar fora do sistema.

Eu trazia a lição estudada. Lembrei as medidas técnicas que a Itália se comprometera a aceitar, em matéria de portos e aeroportos - que outros parceiros consideravam ainda muito incompletas, num processo de decisão que funcionava a unanimidade. Ao contrário de Fassino, que fazia esgares e se mexia na cadeira, ao ouvir, com alguma contratiedade, aquilo que eu ia dizendo, Napolitano mantinha uma atitude impassível, mesmo ao explicitar o seu contra-argumentário.

Com toda a simpatia, que era real, pela posição italiana, disse-lhe que faria o meu melhor na ministerial de Lisboa. Mas não prometi nada, a não ser a melhor boa vontade.

A reunião de Lisboa foi muito difícil, e não apenas por causa da Itália. Só consegui fazer vingar um compromisso final... pela fome! Prolonguei a reunião por horas, com sucessivos "drafts", até conseguir o resultado pretendido. O almoço oferecido aos delegados, no CCB, só começou quase às quatro horas da tarde, com alguns a perderem aviões.

Conseguimos, no final, depois de muitas horas em que isso pareceu impossível, que fosse aceite um compromisso que, segundo recordo, consagrava a plena e automática aplicação de Schengen à Itália, desde que esse país fosse ultrapassando, com sucesso, nos meses seguintes, uma lista calendarizada de exigências técnicas ainda em falta. Se assim acontecesse, mas sem necessitar de uma nova e penosa ratificação política pelos governos, o país teria o seu lugar de pleno direito no acordo. Assim sucederia, meses mais tarde. Napolitano pôde então anunciar que os ministros de Schengen tinham dado o seu acordo político para a aplicação do sistema à Itália, que apenas teria de colmatar alguns pontos técnicos residuais.

Nessa tarde no CCB, com todos nós esgotados pela longa jornada, que tivera início num jantar na véspera nas Necessidades, Giorgio Napolitano ficou tão contente com a fórmula que havíamos conseguido, que, no termo da reunião, me pregou dois repenicados beijos na cara.

Passaram, entretanto, mais de dois anos.

Em janeiro de 2000, Portugal defrontava-se com dificuldade em obter o "avis conforme" do Parlamento Europeu para poder arrancar com a Conferência Intergovernamental que iria rever o Tratado de Amesterdão. Tratava-se de superar uma exigência, suscitada por alguns e rejeitada por outros Estados, de incluir na agenda negocial um determinado ponto. Napolitano era o presidente da poderosa Comissão Institucional, por onde tudo teria de passar. Portugal tinha uma fórmula a propor, mas necessitava de ajuda para garantir que ela seria aceite.

Fui ver Giogio Napolitano ao seu gabinete em Estrasburgo. Mal eu tinha acabado de lhe expor as dificuldades com que nos confrontávamos, sempre com aquele seu fácies só aparentemente impassível, retorquiu-me: "Francisco. Nunca esqueci a ajuda preciosa que me deste em Lisboa. Agora, farei tudo o que puder para te ajudar." E fê-lo, com grande empenhamento, auxiliando-nos num momento particularmente delicado. Eu também não esqueci isso.

sábado, abril 20, 2013

Aeronáutica lusófona

Era uma sexta-feira, tal como ontem. Eu saíra de Brasília de manhã, em direção a Salvador. Tive um almoço de trabalho com um grupo de empresários portugueses com quem, a meio da tarde, fui recebido, a meu pedido, pelo governador da Bahia, Jacques Wagner. Tratava-se de desbloquear uma questão pendente há vários meses, por um misto de má vontade de alguém e de atavismo burocrático de outros. Wagner era um homem prático, quis resolver o problema que eu lhe colocara e convocou toda a gente relevante para uma reunião. Uma hora depois, percebi que o assunto já estava encaminhado favoravelmente, Pedi então escusa ao governador, dado que a minha presença passava a não ser essencial, e, porque se aproximava a hora do avião de regresso a Brasília, deixei o João Sabido Costa, cônsul-geral, a representar-me, junto dos já radiantes empresários.

À saída da sede do governo estadual, o Zé Carlos, simpático motorista do consulado, deu-me uma má nova: não ia dar tempo para apanhar o avião! Eu saíra imprudentemente tarde da reunião e o acesso rodoviário para fora de Salvador estava congestionado, nesse início de fim-de-semana. Nem mesmo com a ajuda do Paulo, o disponibilíssimo funcionário da "sala de autoridades" do aeroporto, que já tinha feito o "check-in" e emitido o meu cartão de embarque, havia possibilidade de embarcar.

(Um ano antes, o PT tinha ganho o governo da Bahia. Poucos dias depois dessa vitória, fui a Salvador para uma visita de cumprimentos ao novo governador, Jacques Wagner. Porque a política não apaga a obrigação da gratidão, recordo-me que havia ousado oferecer, nessa mesma noite, um jantar ao grande derrotado desses dias, uma das mais relevantes figuras da política brasileira, o histórico "coronel" da Bahia, António Carlos de Magalhães. ACM, como era conhecido por todo o Brasil, era uma personalidade marcante da direita brasileira, ligado à ditadura militar mas decisivo na democracia, antigo ministro, presidente do parlamento e governador do estado. António Carlos de Magalhães havia sido sempre um grande amigo de Portugal e, nessa hora difícil da sua estrondosa derrota, eu havia entendido dever fazer-lhe um gesto público de apreço. À chegada à "sala de autoridades" do aeroporto de Salvador, notei que o responsável pela mesma, que eu conhecia apenas pelo nome de Paulo, estava um pouco cabisbaixo. Logo me explicou porquê: com a mudança de governo no estado, ia haver uma razia total em muito pessoal dos serviços oficiais, com uma onda de substituições. Ele, que os novos poderes ligavam ao tempo do "outro lado", sabia que estava nessa lista e, muito provavelmente, era aquela a última vez que me recebia, com a sua habitual simpatia e boa vontade. Na política brasileira as coisas são assim mesmo, mas devo dizer que fiquei um pouco chocado. Uma hora depois, na conversa com o recém-empossado governador Jacques Wagner, não pude deixar de dizer-lhe que sentia muita pena que o jovem que tão atencioso era para todos os embaixadores, no aeroporto da cidade, aquando das nossas visitas à Bahia, viesse a ser afastado. Wagner não fazia a mais pequena ideia de quem se tratava mas, logo ali na minha frente, deu instruções para que o Paulo se mantivesse no lugar. E, um ano depois, ele por lá continuava.)

Voltemos ao meu atribulado regresso a Brasília. Constatada a impossibilidade de poder chegar a horas ao aeroporto, pela estrada normal de acesso, vi com surpresa que o motorista, depois de umas crípticas chamadas por "celular", começou a seguir trilhos de terra batida, bem fora do asfalto. Pensei que era a tentativa desesperada de encontrar um qualquer atalho. Minutos depois, percebi finalmente o mistério. Chegámos junto de uma imensa cerca metálica, que tinha um portão. Estávamos do outro lado da pista do aeroporto. Ao fundo, bem ao longe, vislumbrava-se a aerogare. Olhei para o relógio e imaginei que o avião, da TAM ou da GOL, devia ter fechado o embarque para Brasília, já há uns bons minutos. Mas, sendo assim, que diabo fazíamos naquele lugar recôndito, até perigoso, na penumbra da noite que caía rápida? Em princípio, tinha de voltar para a cidade, "arrumar" um hotel e preparar a ida para Brasília na manhã seguinte. Foi então que, dentro do perímetro do aeroporto, numa carrinha que se aproximava velozmente do portão, vi o vulto do Paulo, ao lado do motorista. Com uma chave, abriu o gradeamento e disse-me: "Baixadô! O sinhô tem di corrê! Parei o avião p'ró sinhô embarcá!" E, minutos depois, perante a perplexidade incomodada dos restantes passageiros e a nunca explicada cumplicidade sorridente da tripulação, lá entrei eu no avião, com a ajuda ímpar do imprescindível Paulo, através de uma escada de serviço, sem qualquer revista de segurança, conseguindo regressar, nessa mesma noite, a Brasília.

Porque conto isto hoje? Porque há umas horas, no aeroporto de Orly, chegado atrasado a Paris num voo da Air France proveniente de Estrasburgo, passei ao lado do avião da TAP, cuja ligação para Lisboa perdi, por escassíssimos minutos. Lembrei-me muito do meu amigo Paulo, de Salvador. Com ele, eu não perderia esse avião. Sem ele, estou aboletado pela Air France num sinistro Ibis, ao lado do aeroporto, para só amanhã regressar à pátria. Decididamente, gosto cada vez mais de aeroportos lusófonos.

Boa noite!

quinta-feira, abril 18, 2013

Eduardo Nunes de Carvalho

escaliers du pont sur l'Ourthe, Chênée, bridge stairs, © photo dominique houcmantFolheava o "Público", num avião, quando fui surpreendido com a notícia da morte de um colega mais velho de quem não era íntimo, mas que estimava bastante, Eduardo Nunes de Carvalho. Para além de conversas muito agradáveis em Lisboa, encontrei-o algumas vezes pelo mundo, em Maputo, em Nova Iorque, em Harare ou no Cairo. Ao longo dos anos, estabeleci com ele uma relação de amizade e respeito que muito prezava.

Nunes de Carvalho, conhecido na carreira e entre os amigos pelo "petit nom" de "Iá", era um homem elegante, educado e sereno, corretíssimo com os outros, com um sorriso permanente e um trato impecável. Gostava de ter colaboradores inteligentes, nos quais apreciava o contraditório sólido, como é próprio das pessoas seguras de si mesmas. Era, além disso, um diplomata muito culto (num período em que muito se fala da cultura exigida aos aspirantes à profissão), que refletia de forma elaborada sobre os interesses portugueses, projetando-os numa leitura histórica do país. Era sempre um gosto encontrá-lo, o que me acontecia em espaços tão insólitos como o salão do nosso comum barbeiro, Joaquim Pinto, um bom amigo que sei que vai sentir a sua falta.

Como todos os que o conheceram sabem bem, o "Iá" tinha uma relação muito peculiar com o ritmo do tempo. Era um homem que vivia, pelo menos aparentemente, sem sentir a pressão, não apenas do relógio, mas mesmo do próprio calendário. Já aqui referi um episódio curioso passado com ele. Ficaram históricas as suas idas noturnas ao serviço de Cifra do MNE, antecedidas por telefonemas, com vista a procurar corrigir telegramas que mandara horas antes, num esforço de perfecionismo que tinha muito a ver com o imenso cuidado que dedicava à escrita. Num determinado posto, foi tão detalhado nas obras na residência oficial, introduzindo alterações sucessivas muito ao seu ritmo, que praticamente viveu todo o tempo no hotel. Fazem também parte dos anais das Necessidades os adiamentos, às vezes por dias sucessivos, de viagens que devia fazer a partir dos postos onde estava colocado. O que, curiosamente, nunca afetou a eficácia do essencial do seu trabalho.

Um dia dos anos 80, cheguei ao Zimbabué integrado numa delegação que acompanhava um membro do nosso governo. No aeroporto de Harare, esperava-nos Eduardo Nunes de Carvalho, embaixador naquele país. À saída, notei que ele levava na mão uma pesada mala (esse era um tempo em que ninguém se tinha ainda lembrado de colocar rodas nas malas). Presumindo que se tratava de bagagem de alguém da delegação, lembro-me de ter feito o gesto de o tentar ajudar, porque me parecia menos curial que coubesse ao chefe da missão diplomática, que caminhava lado-a-lado com o governante, ocupar-se dessa tarefa. Para minha estranheza, o "Iá" disse-me: "Deixe estar, não se preocupe. Esta mala é minha". No caminho para o hotel, comentei o episódio com alguém: o "Iá" estava com uma mala dele? Fui então esclarecido, por um colega mais perspicaz ou melhor informado: ele tinha chegado a Harare apenas escassos minutos antes da nossa delegação, num voo com outra origem. Fora atrasando, durante dias, a sua viagem e, por pouco, não perdia a nossa chegada. Mas, no fim de contas, lá estava, no momento certo, no seu posto! Como sempre.

quarta-feira, abril 17, 2013

Zaventem

Passei por lá há poucas horas, coisa que não fazia há uma dúzia de anos. Está muito diferente o aeroporto de Bruxelas. Confesso que não reconheci o espaço.

Ao contrário do que comigo quase sempre sucede, senti alguma nostalgia da antiga aerogare de Zaventem, construída para a exposição universal de 1958 e que, com o tempo, chegou a atingir momentos de lamentável decrepitude, com os pássaros a voar pelos corredores, com redes para travá-los, e os grandes vidros de outro tempo cinzentos de sujidade. Assisti ao nascer do "satélite", no fundo do antigo grande corredor. Vi depois construir, do outro lado, a nova ala, que tornou o aeroporto igual a todos os outros, como hoje acontece com a Portela. E descobri espaços novos, naquilo que já se aparenta mais com um grande centro comercial. Já não me reconheço neste Zaventem. Mas o aeroporto é bem mais agradável.

Por ali passei  os meus primeiros banhos de "cosmopolitismo", na segunda metade dos anos 70, como portador da "mala diplomática", na descoberta do "glamour" das viagens aéreas, quando esse "glamour" ainda existia. À porta, esperáva-nos então, rezingão, o senhor Rézo, um motorista francês, "exilado" na nossa delegação junto da NATO, que nos arranjava uns hotéis manhosos onde tinha comissão.

Mais tarde, depois de 1986, o aeroporto de Bruxelas passou a ser um meu destino habitual, pela TAP ou pela desaparecida Sabena, nas deslocações regulares a "grupos de trabalho" da então CEE - o nome por que era conhecida a atual União Europeia. Um comboio triste levava-nos, pela noite, para o centro da cidade, com os diplomatas e técnicos portugueses a saírem nas estações do Midi ou do Nord, para daí rumarem aos hotéis, como o Métropole e outros bem piores destinos da "moda" que cabia nas nossas ajudas de custo. Hoje recordei esses tempos com uma amiga, que viajou a meu lado desde Lisboa, a qual, por muitos anos, partilhou idênticos tempos e experiências.

Finalmente, o aeroporto ficou-me, na memória eterna, ligado a tempos que acabaram por ser de um imenso cansaço - os anos de governo, a partir de 1995 e até 2001. Chegava a Bruxelas esgotado de dias incessantes em Lisboa ou noutras capitais, ajoujado de papelada, ensonado e esfalfado. No cenário no fim da manga, tentava descortinar a figura amiga do senhor Barreiros, o simpático funcionário da Representação Permanente (Reper, para os iniciados), que me aliviava o peso e me conduzia, por corredores que sempre presumi VIP, até ao parque de estacionamento, onde me aguardava o fiel Wilhelm, um motorista flamengo, tão calado como discreto.

Por aquele aeroporto passei dezenas de horas de atrasos, de conversas, de esperas, de compras. Por lá me deixei adormecer de fadiga, num banco, num final de tarde, perdendo um voo para o Luxemburgo, o que me obrigou a dormir num hotel próximo. Por lá adquiri coisas que ainda hoje estão na memória familiar, num tempo em que, em Portugal, a oferta das lojas era muito diferente das da "estranja". Por lá festejei "vitórias" arrancadas nas lides europeias e me atulhei de livros que comprava para entreter os minutos que antecediam os aviões - minutos que, no meu caso, são sempre mais, porque faço parte dos que, por regra e para desespero dos atrasados crónicos, chegam a tempo e horas.

Lembrei-me disso, ao final da tarde de hoje, na minha breve passagem por Zaventem. Com alguma nostalgia, assumo. Serão saudades doutros tempos ou saudades de mim nesses tempos?  

O governo e a Europa

Tenho por aí ouvido, com crescente frequência, que o atual governo português não tem uma política para a Europa. Não faço ideia se assim é, dado que, por razões seguramente ponderosas, o discurso europeu do executivo tem sido parcimonioso e, na prática, quase que se tem limitado às questões financeiras e, também nesse contexto, tem-se subsumido na gestão nominativa dos efeitos do processo de ajustamento. A entrada para o governo de Miguel Poiares Maduro, uma figura com uma sólida formação em matéria de assuntos europeus, abre assim uma expectativa de que possamos vir futuramente a beneficiar de uma iluminação nessa decisiva dimensão programática da nossa política externa.

Provavelmente por deformação de quem passou mais de cinco anos a coordenar a política europeia do país, devo dizer que sinto falta de ouvir uma explicação cabal sobre a filosofia subjacente àquela que terá sido a posição nacional na recente negociação do quadro financeiro pluri-anual da UE (2014-2020), porque, pelo menos para mim, ela esteve longe de ser explícita. Por exemplo, gostaria de ter percebido um pouco melhor o grau de envolvimento de Portugal na luta pela preservação da política de coesão, de cujo resultado vai depender a grande fatia do investimento público disponível para os próximos sete anos. Também me não foi totalmente percetível a lógica da gestão feita, nessa negociação, quanto ao equilíbrio entre os dois "pilares" da Política Agrícola Comum, nomeadamente tendo em atenção o muito diferenciado interesse que o nosso país tem nessas duas áreas, embora com lóbis internos inversamente proporcionais à dimensão desses interesses. O debate que sobre todos estes assuntos foi feito na sede parlamentar especializada pareceu-me marcado, aliás, por um espantosa superficialidade, com o executivo a não necessitar de desenvolver uma linha argumentativa para além do nível de exigência que a oposição foi capaz de sustentar.

Uma outra grande temática que é urgente abordar publicamente diz respeito às propostas de aprofundamento das políticas económicas e de governação europeias - para uns de natureza para-federal, para outros de mero reforço centralista -, que têm vindo a ser aventadas pelo principal protagonista do teatro continental, até agora perante o considerável silêncio de muitos dos restantes atores, em especial os secundários e os figurantes. Onde está Portugal neste debate? O que pensam os responsáveis políticos, da maioria ou das oposições, sobre o que tais propostas implicam para a capacidade de autodeterminação do país? Tenho uma imensa curiosidade em saber.

A política europeia de um país como Portugal, que nesta fase está refém do ambiente de ajuda externa, deve ser objeto de uma discussão alargada. É que, como nunca no passado, a política europeia é hoje altamente condicionante, não apenas de grande parte da nossa política externa, mas também de muitas das opções de natureza interna, dado que ela sobredetermina um conjunto alargado de políticas públicas. Além disso, se se confirmar que novas partilhas ou cedências de soberania virão a ter lugar, o país necessita de saber, a tempo e horas, o que os responsáveis políticos, de ambos os lados do espetro, nomeadamente os nossos deputados, bem como a chefia do Estado, sobre isso pensam. E é importante que esse debate incorpore uma explicitação muito concreta sobre a margem de manobra que o país passará a ter, nomeadamente em matéria da sua influência no processo decisório, se essas alterações entrarem em vigor. Essa será uma interessante oportunidade, aliás, para revistar as "vantagens" do chamado tratado de Lisboa.

Imagino que este post possa ser algo "árido" para alguns leitores. Lamento se assim foi. Mas tenho alguma dificuldade em ser menos hermético em questões desta natureza. Do que escrevi, resulta a conclusão de que não são hoje para mim muito evidentes aspetos fundamentais da política deste governo para a Europa. Ao invés, conheço bem melhor a política da Europa face a este governo.

terça-feira, abril 16, 2013

Sindicalismo diplomático

Nem sempre os funcionários diplomáticos portugueses foram sindicalizados. Quando entrei para a profissão, em 1975, não havia nenhuma estrutura sindical representativa dos diplomatas. Um dia, creio que dois ou três anos mais tarde, foi criada uma Associação dos Diplomatas Portugueses. Por algum radicalismo que à época partilhava, decidi não entrar como associado dessa estrutura, por não ver a palavra "sindical" incluída no respetivo nome, condição de representatividade que achava indispensável. Cheguei mesmo ao ponto de mobilizar um grupo de jovens colegas como forma de tentar obstruir essa iniciativa, que considerava "recuada" e pouco ousada.

Mais tarde, nos anos 80, as coisas mudaram e foi, finalmente, criada a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses. Dela cheguei a ser vice-presidente, nos anos 90. Alguns colegas mais antigos não apreciaram a mudança registada e reagiram fortemente à dimensão sindical da nova Associação.

Porque o tema dos diplomatas terem um sindicato era verdadeiramente novo e o "Expresso", por discreta sugestão de alguns de nós, tinha trazido uma notícia sobre o assunto, tive a ideia de escrever uma carta ao respetivo diretor, em nome do "ministro plenipotenciário Pedro Leite de Noronha", na falsa qualidade de um dos contestatários do novo sindicato. Nessa carta, escrita num tom snobe, expressava o "desgosto" por ver os diplomatas do MNE "banalizarem-se" e enveredarem "tristemente" pela via sindical, trazendo a público questões que, no passado, eram sempre resolvidas "entre os claustros e a tapada" das Necessidades. O "Pedro Leite de Noronha" ia mais longe e considerava que o facto dos diplomatas andarem a colocar "nas bocas públicas do mundo" as peculiaridades da sua vida profissional refletia, muito simplesmente, "o facto do nível social do seu recrutamento ter baixado", fruto dos "lamentáveis ventos de abril", de terem "deixado, na sua maioria, de possuir fortuna própria", o que os tornava "permeáveis às pulsões materiais da vida".

Nos dias subsequentes à publicação da carta, os comentários sobre a mesma motivaram muitas conversas "entre os claustros e a tapada", muito embora ninguém alimentasse a menor dúvida sobre a autenticidade do texto, tanto mais que não havia, nos quadros do ministério, nenhum "Pedro Leite de Noronha". Deve reconhecer-se que o nome tinha um toque onomástico suficientemente "bem" para poder abrir caminho à sua credibilização em áreas para fora da casa. E todos perceberam que o absurdo do argumentário da carta mais não era de que uma forma de ridicularizar o reacionarismo primário de quantos se opunham à nova associação sindical.

Só tempos depois vim a saber que, por essa altura, numa embaixada portuguesa numa importante capital europeia, por onde curiosamente eu viria a passar alguns anos mais tarde, o embaixador comentara o assunto com uma colega (hoje também já embaixadora) com uma observação do género: "É evidente que este nome é falso: não temos nenhum colega que se chame assim. Mas que ele tem bastante razão, lá isso tem!"

Hoje, aqui na Haia

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