quinta-feira, abril 25, 2013

Gorjeta patriótica

O hotel está a estrear. Muitas coisas ainda não funcionam. Várias "facilities" de que a publicidade faz alarde ainda não existem. O pessoal esforça-se por ser simpático e prestável, mas não há nada que compense a falta de água na piscina. O mais chocante, porém, é o facto do acesso aos andares superiores se fazer... por escadas, sem que existam elevadores. Será que a circunstância de se tratar de um "hotel rural" justifica estas singulares peculiaridades arquitetónicas?

Nesta pausa abrilista, em que me refugiei por uma noite numa unidade hoteleira a preço razoável no oeste do país, veio-me à memória uma historieta ocorrida comigo há mais de uma década, num hotel de Khujand, bem no norte do Tajiquistão, onde também não havia elevadores no caminho para os quartos. Mas esse era um modesto hotel, ainda tributário da era soviética.

Eu chegara, como sempre (nunca aprendi a viajar "light"), com uma pesada mala. Quando me disseram que tinha de subir dois andares a pé, cansado como estava, depois de um dia de trabalho muito intenso, "passei-me" e reclamei. A rececionista, com pinta de "aparatchik", confrontada com o meu mal-estar, mas sem mais comentários, disse-me para eu ir indo para o quarto, que a mala lá iria ter. Largos minutos volvidos, bateram-me à porta. Ofegante, um homem, cuja idade deveria rondar à vontade os 80 anos, apresentou-se com a minha mala. 

Senti-me incomodado. Então aquele senhor idoso tinha subido as escadas, com quase 25 quilos na mão, para evitar o meu esforço? Para além de articular vários "spasiba", entendi dever dar-lhe uma boa gorjeta, que pudesse compensar o meu complexo de culpabilidade. O homem mirou a nota de cinco dólares, revirou-a bem não fosse estar a ver mal e saiu, às vénias, desta vez sendo ele quem se desfez em coisas que entendi como profundos agradecimentos. 

Sabia que a gorjeta tinha sido boa, mas não tinha ideia do que ela significava, à escala local. Quando, ao jantar, contei o episódio a um diplomata holandês que vivia no país, revelando-lhe o montante da gorjeta, o comentário foi, para mim, surpreendente: "Em moeda local, o que você lhe deu deve representar mais de metade da reforma mensal do homem!"

Na manhã seguinte, ao sair do quarto, deparei com o idoso, especado em frente à porta, já preparado para transportar de novo a minha mala. Deduzi mesmo que devia estar por ali já há algum tempo. Com um imenso sorriso, num tom levemente interrogativo, como que a confirmar apenas o que já sabia, disse-me: "Portugaliya!?" Confirmei e lá descemos as escadas, ele ajoujado com a minha mala, comigo ao lado, descansado, apenas com uma pequena saca de pano ao ombro.

À chegada ao lóbi, recordo, como se fosse hoje, o olhar reprovador e prenhe de "righteousness" das minhas colegas de viagem, embaixadoras da Noruega e do Canadá, que condenavam silenciosamente a minha atitude de vil e eurocêntrica exploração da terceira idade tajique. Como poderia explicar-lhes que estava a fazer um "favor" ao homem? Como reagiriam se lhes falasse dos cinco dólares da véspera?

À entrada para a carrinha, ainda hesitei: como a tarefa da manhã tinha sido "a descer", devia dar uma gorjeta inferior à da véspera? Mas, esmagado pela culpa, logo me decidi: voltei a dar ao homem outra nota de cinco dólares. Sorriram-lhes os olhos e despediu-se com um forte e efusivo cumprimento de mão, sempre repetindo, enfático: "Portugaliya! Portugaliya!". Por 10 dólares, a imagem do nosso país subiu, nesse dia, aos píncaros, nessa remota e pequena cidade da Ásia Central. 

A similitude entre o "hotel rural" do oeste, onde há uma hora me instalei, e o pobre hotel de Khujand fica-se pela falta de elevador. Ao menos, por aqui, há "wifi", o que me permite publicar este post com toda a Liberdade que o dia me consente.

16 comentários:

Anónimo disse...

"É mais feliz quem dá do que quem recebe"! E, o país ainda ficou a ganhar porque o Senhor Embaixador nem sequer foi confundido por nenhum europeu do Norte...

Fernando B. disse...

Em rodapé ao discurso desta manhã...



Excerto da canção "E Depois do Adeus"

"Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
Perguntei por mim
Quis saber de nós
Mas o mar
Não me traz
Tua voz
Em silêncio, amor
Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em mim
Eu te lembro, assim
Partir é morrer
Como amar
É ganhar e perder..."

Isabel Seixas disse...

Boa.
Agora, se o Sr. em causa fosse confrontado com as notícias da nossa crise, decerto também a atribuiria por perigosa generalização à sua atitude de mãos largas...
Mas fez bem, aliás muito bem...

Já agora sr. Embaixador se me permite

Viva o 25 de Abril
Portugal Ressuscitado
José Carlos Ary dos Santos
(Caxias, 26 de Abril de 1974)

Depois da fome, da guerra
da prisão e da tortura
vi abrir-se a minha terra
como um cravo de ternura.
Vi nas ruas da cidade
o coração do meu povo
gaivota da liberdade
voando num Tejo novo.
Agora o povo unido
nunca mais será vencido
nunca mais será vencido
Vi nas bocas vi nos olhos
nos braços nas mãos acesas
cravos vermelhos aos molhos
rosas livres portuguesas.
Vi as portas da prisão
abertas de par em par
vi passar a procissão
do meu país a cantar.
Agora o povo unido
nunca mais será vencido
nunca mais será vencido
Nunca mais nos curvaremos
às armas da repressão
somos a força que temos
a pulsar no coração.
Enquanto nos mantivermos
todos juntos lado a lado
somos a glória de sermos
Portugal ressuscitado.

Agora o povo unido
nunca mais será vencido
nunca mais será vencido.

Anónimo disse...

Também faltou às cerimónias?

Anónimo disse...

Na década de 90, passei por um episódio semelhante num país africano e o que para mim eram uns trocosn representava um mês e meio de salário, de acordo com uma portuguesa aí residente.

Ainda, hoje, recordo o brilho nos olhos da camareira de meia-idade enquanto agradecia.

Por vezes, o nosso pouco é muito para alguns!

Isabel BP

Mônica disse...

Sr Francisco
Como smepre nao sabia que hoje era um dia importante em Portugal.

Aqui no Brasil voces sabem que o dia 22 de abril é o dia do descobrimento do Brasil. E dia 21 dia de Tiradentes.
Gostei da História. A mamae tambem quando viaja leva uma enorme mala. ja fez minha irma subir muitos degraus em casa de parentes. Mas em hotel graças a Deus nao.
com amizade Monica

Anónimo disse...

Mais vale esta linda estória, do que ouvir a cerimónia desta manhã na Assembleia...

Portugalredecouvertes disse...

Lembrei-me de um casal jovem que estive no ano passado num país do norte de Africa,
então num souk, quando tentaram regatear preços como sendo de tradição por lá, um vendedor perguntou de onde eles eram, e quando disseram que eram portugueses, o outro disse logo,
"português bancarrota!!"

Anónimo disse...

Portugaliya! Portugaliya! Portugaliya!

patricio branco disse...

optima e simpatica, humana historia.
permito-me pois copiá-la para a minha pg do fbk, indicando a proveniencia.

Manuel Poppe disse...

Uma história comovente, narrada com sinceridade.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Anónimo das 21.06: e não é que estava convidado?!

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Mônica: oi, Mônica. Que bom lê-la! Escrevo-lhe de Belmonte, terra de Pedro Álvares Cabral, o vosso "seu Cabral". Um abraço

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Anónimo das 23.02: mas não é sempre enternecedor ouvir personagens da pequena História?

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Patrício Branco: à vontade! Estes retalhos da minha memória são propriedade de quem os ler.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Manuel Poppe: vindo de si, este comentário tem muito valor. Como uma vez lhe disse no aeroporto de Roma, nunca lhe agradecerei suficientemente ter despertado, no seu programa de televisão, a minha atenção para o Robertt Musil. Ontem, sei lá porquê, apeteceu-me oferecer "O homem sem qualidades" a alguém.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...