segunda-feira, outubro 22, 2012

Aniversário

É um amigo que conheço há muito. Faz anos hoje. Há minutos, telefonei, a felicitá-lo.

Agradeceu, comentando: "Meu caro, só damos conta de que envelhecemos quando o preço das velas começa a ser superior ao do bolo de aniversário".

Boa "malha"!

domingo, outubro 21, 2012

Fazer das fraquezas forças?

"A União Europeia suscita interesse como ator de paz para além das suas fronteiras, precisamente porque é tecnocrática, a-nacional, a-estatal, uma "coisa". Como uma mini-ONU. Ninguém suspeita que tenha apetites de dominação ou de captação de recursos. A UE nunca foi, enquanto tal, uma potência colonial. Não há uma "Europáfrica" como houve uma "Françafrique". A UE não invadiu o Iraque. Não tem pretensão de ser "polícia do mundo". A sua força reside na pedagogia de si própria, no modelo de valores que oferece. No fim de contas, são os próprios "defeitos" da UE, a sua ausência de encarnação, o seu fácies anónimo, a sua burocracia que lhe confere as vantagens de um ator quase desinteressado e, por isso, com legitimidade para se imiscuir nos assuntos dos outros. Ela deveria assumir isso, clamá-lo, gabar-se disso. Aquando da entrega do prémio?"

 Natalie Nougayrède, "Le Monde"

Quatro notas

1. Por definição, a situação interna que se vive em países próximos e aliados deve merecer, da nossa parte, um tratamento muito prudente. E, por maioria de razão, quando se trata do nosso único vizinho terrestre, essa delicadeza aumenta. Mas maior é também, por esse mesmo motivo, a importância de que a Espanha se reveste para nós. Por isso, e ainda a montante do resultado das eleições que hoje têm lugar no País Basco e na Galiza, apenas gostava de deixar aqui expresso que a questão da "pulsão" independentista na Catalunha é um tema que, sendo espanhol, não nos pode ser indiferente. E quero afirmar aqui, como cidadão português e como amigo da Espanha, o meu desejo pessoal de que qualquer futuro do Estado espanhol passe pela preservação da unidade do país. É que julgo ser esse o interesse da Espanha e, muito em especial, tenho a certeza que esse é o interesse de Portugal.

2. Na Grécia, uma deputada do partido neo-nazi (curiosamente anti-alemão), com representação parlamentar, tratou os imigrantes no seu país como "sub-homens". Essa formação partidária defende, entre outras barbaridades, a expulsão dos hospitais gregos dos doentes imigrados estrangeiros, bem como os seus filhos das escolas. Nesta temática da xenofobia e do racismo, Portugal pode apresentar-se ao mundo como detentor de uma representação parlamentar onde, sem a menor exceção, os princípios da tolerância e do respeito pela diferença sempre foram observados com todo rigor. É um orgulho para a nossa diplomacia poder representar um país em que tais fenómenos não têm a menor expressão política organizada, sabendo-se, além do mais, que há um implícito e saudável consenso nacional no sentido de combater qualquer afloramento desse tipo de derivas.

3. O mortífero atentado que ontem teve lugar no Líbano veio demonstrar que o regime sírio, depois de ter conseguido "empatar" o jogo político-militar interno até às eleições americanas, demonstra que tem ainda força para poder ativar a influência de que sempre dispôs no xadrez político libanês, tentando assim aumentar a sua moeda de troca para o processo político que se vai seguir.  Diretamente ou através do Hezbollah, Damasco tenta agora sacudir do seu território a pressão militar de uma oposição interna cuja segmentação não facilita o apoio do mundo ocidental. As bombas de ontem são a prova de que a Síria não vai permitir que as fronteiras libanesas possam servir de apoio aos insurgentes. E é bom que o mundo comece a preparar-se para enfrentar a possibilidade de que uma nova guerra civil no Líbano esteja aí de novo, ao voltar da esquina.

4. Por razões óbvias, sobre temáticas europeias, tenho vindo a ser muito parco nas palavras que por aqui escrevo. Apenas gostava de notar que o último Conselho europeu, que sempre foi considerado como de natureza transitória, teve a virtualidade de acabar por não infirmar as orientações do anterior e, embora com visível entusiasmo diferenciado na vontade expressa pelos "major players" (que se reflete de forma interessante nas respetivas Conclusões), manteve uma linguagem que não fragiliza, no essencial, o calendário previsto para a "união bancária". Há que reconhecer que alguma maior serenidade que a vida europeia começa a mostrar - talvez pelo termo das ridículas cimeiras "históricas" a que uma certa coreografia nos vinha habituando - fica muito a dever à sabedoria do Banco Central Europeu, cuja firmeza e determinação terão sido responsáveis por uma relativa confiança que foi induzida nos mercados, como a evolução dos "spreads" obrigacionistas no mercado secundário bem demonstra. Só pode desejar-se que, ao invés do que vulgarmente tem sucedido, do lado de alguns governos europeus não haja a tentação, num tropismo de expressão mediática para consumo político interno, de "sair-se" com declarações incendiárias, que prejudiquem os delicados consensos já obtidos.

sábado, outubro 20, 2012

Estratégias

Há meses, o governo nomeou uma comissão para a preparação de um novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional. Para esse grupo, com uma composição mais do que heterogénea, foi convidada uma vintena de pessoas, com nomes publicamente tão conhecidos como Adriano Moreira, Jaime Gama, Loureiro dos Santos, António Vitorino, Fátima Bonifácio, Ângelo Correia, Francisco Pinto Balsemão, Leonor Beleza, Luís Amado, João Salgueiro, Gomes Canotilho ou Eduardo Lourenço. Durante alguns meses, sacrificando as férias de muitos, sob a coordenação do professor Luis Fontoura, o grupo preparou um trabalho que agora será entregue ao ministro da Defesa Nacional. Tive o prazer de integrar esse grupo, acompanhando, pela diplomacia, o meu colega embaixador Leonardo Matias e a dra. Maria Regina Flor e Almeida.

Leio agora, na "Sábado", que um conjunto de militares e alguns civis se reuniram no Instituto Geográfico do Exército, para contestar a necessidade de um novo Conceito. A liberdade de abril permite e estimula o aberto contraditório, que é sempre desejável, aguardando-se agora a produção de um contra-texto que permita abrir um debate enriquecedor. E noto, sem surpresas, que uma certa diplomacia de outrora não deixou de "cunhar" a sua presença nesse outro lado do espelho do pensamento estratégico nacional.

sexta-feira, outubro 19, 2012

Manuel António Pina (1943-2012)

Foto António Sabler
É aí vamos nós, neste ritual de obituários. As mortes não se programam. Agora foi a vez de Manuel António Pina, uma das mais lúcidas e desassombradas vozes deste país, senhor de uma escrita que, até quando era agreste, era poética. E com um humor subtil, muito raro entre nós. 

Conheci-o no Porto, em meados dos anos 6o do século passado, onde ambos frequentávamos o "Piolho". Nessa altura, a diferença de idades não nos aproximou. Também por isso, embora nos conhecêssemos, nunca fomos íntimos. Iamo-nos encontrando, em contextos muito diversos, de anos a anos. Lia-o com regularidade e recordo-me de, um dia, lhe ter dito, aqui em Paris, em 2000, ano em que Portugal foi o país convidado para o Salão do Livro: "Às vezes tenho raiva de si, por você escrever aquilo que penso de uma forma que eu não sou capaz fazer". Dele recebi, de volta, um sorriso sereno e uma palavra amável. Foi sempre muito portuense, até na constante cerimónia nos nossos contactos breves. 

No último ano, encontrávamo-nos no Conselho geral de Guimarães - capital da Cultura, a que ambos acedemos no mesmo dia, com António Mega Ferreira, a convite de Jorge Sampaio. 

Nesta hora da despedida, são muito tocantes as palavras que Francisco José Viegas lhe dedicou: "Neste dia, plantemos uma árvore em seu nome. Uma árvore que transporte a sua poesia para dentro dos nossos dias. Este é um dos dias mais tristes da minha vida. Nenhuma lágrima conseguirá redimir essa tristeza, infelizmente". Um abraço também para si, Francisco. 

Da noite para o dia

1. Um grupo angolano estará prestes a adquirir a empresa proprietária do "Diário de Notícias", "Jornal de Notícias" e a rádio TSF. Depois do semanário "Sol", fica agora uma imensa curiosidade sobre um eventual futuro angolano para uma RTP privatizada.

2. Recém-sexagenária, morreu ontem a holandesa Sylvia Kristel, que o mundo recordará para sempre em pose prometedora numa cadeira entrançada de desenho oriental. O imaginário em torno das viagens aéreas de longo curso, apoiadas numa música dengosa, nunca mais foi a mesmo depois do "Emmanuelle", não obstante a mediocridade do filme e de todas as suas sequelas.

3. A "Newsweek" vai passar a não ter versão em papel. No género, fica apenas no mercado a "Time", sua grande rival. Só desejo que o "The New Yorker" não venha a ter um destino idêntico.

4. Anuncia-se que os supermercados gregos vão poder passar a vender produtos fora de prazo de validade, a preços mais baratos. Em Portugal, espero, não iremos por aí. Entre nós, embora com elevado preço, apenas algumas ideias, que já ultrapassaram o seu tempo razoável de vida útil, continuam a ser tidas como boas e consumíveis.

5. O presidente do Conselho europeu, Von Rompuy, que devia ir a Oslo no dia 10 de dezembro, acompanhado do presidente do Parlamento europeu e do presidente da Comissão Europeia, para receberem o prémio Nobel da Paz atribuído à União Europeia, sugeriu que todos os 27 chefes de Estado e de governo se juntem a eles. Admiro-me que os presidentes do Banco central europeu, do Comité económico e social, do Tribunal de justiça, do Comité das regiões, do Tribunal de contas, do Banco europeu de investimentos não tenham ainda protestado: ou há moralidade ou comem todos. E, de caminho, seria justo levarem também a senhora Catherine Ashton, chefe do Serviço europeu de ação externa - a cara que a Europa tem para mostrar ao mundo.
 
6. Começa em Lisboa o Congresso Europeu das Ciências e Práticas do Riso. Finalmente!

quinta-feira, outubro 18, 2012

Augusto de Carvalho

A consciência do tropismo para registos necrológicos, em que este blogue tende vulgarmente a cair, terá sido subliminarmente responsável pela omissão que aqui fiz, há cerca de dois meses, quando desapareceu a figura de Augusto de Carvalho, um jornalista sui generis que, há duas décadas, decidiu ir para Moçambique, a grande afeição da sua vida.

Augusto de Carvalho desempenhou um papel muito interessante, e pontualmente muito importante, na imprensa portuguesa. A história do "Expresso" não seria a mesma sem ele, jornal de que chegou a ser diretor. Mas por outras aventuras de imprensa, como a curiosa fase da "Vida Mundial" depois de 1966, ele deixou também o seu nome. 

Conheci-o brevemente, numas almoçaradas, através de um amigo comum, no final dos anos 70. Recordo o sotaque e o ritmo de voz, que não iludia o seu percurso religioso anterior: Augusto de Carvalho chegou a ser padre.

Ontem, em conversa com um amigo à distância, este lembrou, a propósito de uma historieta africana que por aqui contei há dias, um episódio curioso que lhe fora relatado por Augusto de Carvalho, referente a uma sua anterior estada em Moçambique, já depois da independência do país.

Um dia, ao sair da praia, no Maputo, um grupo de jovens pediu-lhe boleia. Na conversa, a caminho da cidade, interrogaram-no sobre a sua profissão. Ele esclareceu que era jornalista e disse o seu nome. A reação de uma das jovens ficou-lhe para sempre gravada:

- Ah! Você é o Augusto de Carvalho do nº    (e disse o número do telefone do jornalista)? Eu trabalho nas escutas dos telefones. Você fala tão depressa e diz coisas tão estranhas! Já desisti de acompanhar as suas conversas...

PS - Deixo uma fotografia bem antiga do Augusto de Carvalho onde, se me não engano, figura também o meu amigo José Mário Costa, quando ambos coincidiram no "Expresso". 

Hopper

Um dia, numa deslocação que com ele fiz a Madrid, ao tempo em que iniciávamos a revisão do tratado de Maastricht, o professor André Gonçalves Pereira dizia-me que, sempre que ia à capital espanhola, aproveitava para ir "lavar os olhos" ao museu do Prado. Guardei a simbologia da expressão.

Aqui por Paris, tenho às vezes usado esse colírio artístico, em algumas das diversas oportunidades que por aqui surgem. Fi-lo de novo há dias. Mas, desta vez, devo dizer que fui assaltado por um sentimento contraditório. 

Por um lado, deslumbrou-me visualmente a grande retrospetiva de Edward Hopper que está no Grand Palais. Para quem, como eu, levou uma vida adulta "à procura" dos Hopper espalhados pelos museus do mundo, ter o privilégio de apreciar este excelente "compacto" (faltam lá meia-dúzia de grandes peças, algumas que já "apanhei" noutros locais, mas há coisas "novas" magníficas) foi uma experiência muito interessante. Há alguma gente que desvaloriza Hopper, que acha o seu figurativo mais digno de ilustração de revistas que da grande pintura. Eu não. Gosto imenso de Hopper. Cada vez mais. 

Porém, com esta exposição, tive o ensejo de estudar melhor a contextualização da arte de Hopper em certos tempos de uma América do século XX, marcada pelo o desalento da depressão, pela expressão trágica da solidão urbana, projetando o desencanto de existências que perderam sentido, num quotidiano em défice de esperança. E, por alguma razão, não saí do Grand Palais no melhor dos espíritos.

quarta-feira, outubro 17, 2012

Lusofonias

Hotel numa antiga colónia portuguesa, no início dos anos 80. Telemóveis era uma coisa, à época, inexistente.

Tinha chegado de Lisboa, lá para as 10 horas da noite. Do quarto, liguei para a telefonista e pedi uma chamada para Portugal.

- O camarada necessita de vir aqui preencher boletim de "registro" de chamada, para a mesma se poder "efetivar".

Lá desci os quatro andares a pé, porque o elevador estava em dia não, e preenchi o boletim, que tinha a curiosidade de ser em triplicado, com papel químico pelo meio, herança burocrática do colono. Perguntei se demorava muito. "Vai ser verificado", foi-me dito.

Como a "verificação" não chegava, lá para a meia-noite, liguei de novo, a insistir. 

- O camarada aqui tem que ter paciência. Não tem linha. Aqui há muita falta de linha.

- Então, esqueça! Já não quero chamada nenhuma. Muito obrigado.

- O camarada tem de vir anular boletim.

- Faça isso por mim, por favor, rasgue o boletim.

E desliguei. 

Lá para as quatro da manhã:

- Foi o camarada que pediu uma chamada para Lisboa?

- Fui!!! Mas eu tinha-lhe pedido para cancelar a chamada! 

- Tinha, mas não efetivou cancelamento. O camarada não veio cá destruir pessoalmente o boletim.

- Ó minha senhora! Mas então eu não lhe tinha pedido para rasgar o boletim?

- O camarada devia saber que, depois de "registrado", um boletim só pode ser anulado pelo próprio.

- Pronto, esqueça! Não quero a chamada...

- Mas já tem gente na linha! É voz de senhora. Parece que a acordei e, pela fala, não está nada contente, camarada!

A língua portuguesa é falada por 240 milhões de pessoas, não é? Mas isso não significa que todos nos entendamos.

terça-feira, outubro 16, 2012

Claude Cheysson

Quando François Mitterrand chegou ao poder, em 1981, muitos foram surpreendidos pelo facto do Quai d'Orsay ter passado a chamar-se "Ministère des relations extérieures", rompendo com o seu nome clássico de "Ministère des affaires étrangères". A tradição não deixou sobreviver a ousadia, pelo que o nome antigo regressaria, anos mais tarde (agora com o acrescento de "et européennes"). O autor da proeza, que assim procurava romper formalmente com o passado, foi o novo ministro escolhido por Mitterrand, Claude Cheysson, que dizia: "il n'y a pas d'affaires étrangères, la politique extérieure fait intégralement partie de la politique nationale". Uma verdade como punhos! 

A nomeação de Cheysson trouxe para a frente da política externa "un diplomate hors norme", como Laurent Fabius ontem disse. Antigo chefe de gabinete de Pierre Mendès-France, e por duas vezes comissário europeu, Cheysson era um convicto "tiers-mondiste", grande defensor da causa palestiniana e com uma vocação rara para abrir a França ao mundo árabe, muito em particular à Argélia, suscitando sérios anti-corpos em Israel. Pessoalmente, tinha um feitio complicado, era uma "gaffeur" desinibido ou, como disse o próprio Mitterrand, "il est extraordinaire de voir un spécialiste de la diplomatie aussi peu diplomate". Mas era um homem de princípios e convicções, coisa que, às vezes, alguns acham que os diplomatas não devem ser.

Claude Cheysson morreu esta semana.

A teoria e a prática

Veio hoje ver-me o meu amigo Patrick Wajsman, que aqui dirige a prestigiada revista "Politique Internationale". Ofereceu-me um livro onde recolheu algumas graças históricas, intitulado "Vous n'auriez pas le dernier mot!".

Nele descobri um dito de Einstein, no qual o cientista explicou a diferença entre a teoria e a prática: "A teoria é quando se sabe tudo e nada funciona. A prática é quando tudo funciona e ninguém sabe porquê. Nós reunimos a teoria e a prática: nada funciona e ninguém sabe porquê".

Livro obrigatório

segunda-feira, outubro 15, 2012

Companhias

As viagens aéreas são, para mim, momentos "sagrados", em que, quando não passo "pelas brasas", aproveito para ler papelada que tenho em atraso. Com esta última finalidade, levo sempre comigo quilos de jornais e revistas, telegramas de informação do MNE que não tive oportunidade de estudar (eu sei que é "quase" ilegal andar com isso na pasta, mas já falta pouco tempo), dois ou três livros dentre a dezena que ando simultaneamente a ler. O que carrego para uma viagem, se acaso chegasse ao fim da respetiva leitura completa, equivaleria, no mínimo, ao tempo de três percursos. Mas é assim mesmo: sou um otimista da leitura.

Porque as viagens são isso - um incomparável tempo descansado para ler, sem ser interrompido por telemóveis ou conversas -, detesto diálogos com os parceiros do lado, a menos que, por uma qualquer razão, seja eu a ter a iniciativa de os encetar. Mal me sento (e luto pelos locais de janela, para poder "blindar-me"), evito reagir a qualquer casual comentário do viajante próximo, do tipo "está muito calor, não acha?" ou "cada vez há menos espaço entre as cadeiras" ou "será que ainda nos vamos atrasar muito?" ou outras vetustas "alavancas" análogas, usadas para iniciar uma troca de palavras. É que, se a minha resposta ultrapassar um seco monossílabo, a possibilidade de vir a ter de entabular uma conversa que afeta o meu tempo de leitura torna-se imensa. O período da refeição é, de longe, o mais perigoso, porque geralmente estamos desmunidos de peças de escrita, razão pela qual cuido sempre em deixar um pedaço de jornal a espreitar por debaixo do tabuleiro, fingindo que nele me concentro (assim evitando elaborar na resposta ao "que tal achou o tinto?"). Devo dizer que, com as "horas de voo" que tenho no currículo, considero-me já um "profissional" batido nesta matéria, conheço "de ginjeira" os truques todos e, quase sempre, tenho garantido sucesso neste meu (por vezes, artificialmente pouco simpático, reconheço) procedimento, conseguindo escapar aos palradores aéreos. 

Historicamente, tive um dia um azar que para sempre me ficou gravado na memória. Ia de Lisboa para Nova Iorque e tinha preparado tudo para as minhas cinco horas e tal de viagem (ah! porque não durmo bem em aviões, eu também sou "aquele" passageiro incomodativo que leva sempre a luz de leitura aberta, mesmo no bréu coletivo da cabine, durante as noites, para grande raiva dos restantes viajantes): jornais, livros de vária espécie (recordo que havia poesia pelo meio) e até banda desenhada. Tinha também um "laptop" para escrever um artigo e havia prometido a mim mesmo aproveitar para nele arrumar algumas centenas de fotografias. Tudo estava preparado para uma bela viagem, no incomparável prazer da solidão aérea.

Acrescia a constatação feliz de que o lugar ao lado do meu iria ficar vago, o que me permitiria, desde logo, fazer nele um estendal da parafernália de leitura que transportava. Nessas ocasiões, devo confessar, passo minutos de angústia até confirmar o fecho da porta do avião, momento de alívio a partir do qual sei que ninguém mais virá ocupar esse espaço. E assim aconteceu, nessa ocasião. Como nesses tempos a classe executiva era de regra (eu sei, o défice...), até aceitei uma taça de champanhe, mais para brindar ao lugar vazio ao meu lado do que por devoção ao dito.

O avião descolou, recostei-me e comecei a sessão de leitura, saltitando entre o muito que trazia. De súbito, ouvi: "Meu caro, vi que você estava sentado aqui. Eu ia ali atrás. Importa-se que eu ocupe este lugar vago ao seu lado?". O que é que se responde a isto? "Importo, claro, desampare-me a loja, não me chateie"? Não é possível. Era um político português, um homem simpático mas um falador endémico, aquilo a que os brasileiros chamam "um chato de galocha", o qual, começou por me explicar que também ia para Nova Iorque (como se eu suspeitasse que fosse para Ulan Bator...) e que, praticamente durante as cinco horas da viagem, me atazanou os ouvidos com historietas, perguntas e comentários. De rastos ficou todo o plano de leituras que, com imenso critério, eu tinha premeditado para esse voo. Ainda hoje, uma década depois, não me recompus do trauma, como se vê.

Lembrei-me disto, há dias, entre Frankfurt e Baku. Pelo "body language" (com a experiência, a gente topa este pessoal à légua) percebi que o meu vizinho do lado era dos que aproveitam o menor pretexto para meter conversa. Já não sei a propósito de quê, perguntou-me: "Vous parlez français?". Fiz um "carão" e disse, com sotaque de Alcains: "Très mal". E puxei da recém-publicada obra do assessor especial de Sarkozy, Henri Guaino, "La nuit et le jour", até terminar as suas cerca de 300 páginas, duas horas depois. De seguida, acabei de ler o "L'Express", o "Le Nouvel Observateur" e o "Le Point", que sucessivamente tirei da pasta, concluindo com o "Le Monde" do dia. No final da viagem, o homem quase me matava com o oblíquo olhar. Mas li o que queria. Tudo em francês, claro. Bela viagem!

domingo, outubro 14, 2012

Um belo jantar

Não fora fácil desenvencilhar-se da meia dúzia de conhecidos, oriundos de outros tantos países que, presentes como ele na reunião que estava a ter lugar naquela bela cidade costeira italiana, haviam tido a ideia de organizar um jantar em homenagem a um colega da Comissão, que se ia reformar e se despedia, na ocasião, dessas andanças europeias. A pessoa em causa nunca fora uma figura que tivesse por muito simpática e além do mais, cansava-o a ideia de ir estar presente em mais um jantar de grupo, cheio de conversa "bruxelense", depois de dois dias de refeições coletivas, oferecidas pela presidência italiana, que tinham entremeado os trabalhos. O que mais lhe apetecia, nessa noite, seria jantar num ambiente agradável, em frente ao mar, aproveitando o belo verão que esse mês de setembro prolongava. E sozinho, que era uma companhia com quem sempre se dera bastante bem.

Em face da insistência dos colegas, e não querendo assumir uma aberta dessolidarização do evento,  que tinham previsto para um restaurante da moda, lembrou-se de engendrar, durante a tarde, o aparecimento de uma súbita indisposição gástrica. Aliás, fez com que ela se fosse progressivamente "agravando" o que, a certo ponto, o "obrigou" mesmo a abandonar os trabalhos um pouco mais mais cedo... para ir recostar-se, com um copo de vinho branco, na varanda do seu pequeno hotel onde, por milagre, ninguém do grupo jantante estava alojado. O alibi era perfeito.

Deixou passar largamente a hora prevista para o jantar, para não correr o risco de encontrar alguém que nele participasse. De t-shirt e jeans, avançou depois discretamente, já com a penumbra a protegê-lo, para uma área junto ao porto, mas bastante distante da zona dos restaurantes mais "trendy". Tinha notado que havia por ali três ou quatro esplanadas que pareciam com graça. Hesitou um minuto entre elas, observou as diferentes cartas expostas no exterior e resistiu aos irritantes convites dos empregados que tentavam caçar clientes. Ainda se tentou a ficar numa dessas mesas junto à rua, que o tempo ameno tornava um lugar agradável para comer, mas teve receio de acabar por ser visto por alguém. Notou que um dos restaurantes tinha um terraço, no andar superior. Disseram-lhe que havia lá lugares. Achou que esse podia ser a sua escolha para uma refeição serena, com um livro que estava a terminar. 

Subiu a escada. Pelo caminho, foi pensando, lembrando-se das opções do menu que estava à entrada, numa bela e cremosa "satimbocca alla romana", que vira servir numa mesa por que passara, talvez acompanhada por um "Villa Antinori" tinto. Teriam 1998? Antes, talvez pedisse uma "mozarella di bufala", com tomate. Antecipou acabar a refeição com um "tiramisu" (ou arriscaria uma "panna cotta", cuja consistência ideal era sempre difícil de atingir?), regada com uma bela "grappa". No conjunto, era tudo um pouco pesado (até porque não dispensaria um "limoncello", a abrir), mas uma noite não são dias e, afinal, a "indisposição" já ia longe. Ia ser um belo jantar.

Chegou ao terraço, em busca do lugar. Foi então que ouviu, ao fundo da varanda, alguém pronunciar o seu nome. Afinou o olhar e deu de caras com uma mesa onde se processava o tal jantar de homenagem, que ali acabara por ter lugar, por impossibilidade de reserva no tal sítio da moda. Não teve como evitar sentar-se num topo da mesa, acedendo ao insistente pedido de todos. Foi explicando, embrulhado nas palavras, algumas melhoras que entretanto começara a sentir, pelo que ousara arriscar comer "alguma coisa grelhada, muito leve". Deu conta, desconfortável, que o seu traje era bem mais "light" do que o de todos os restantes, onde imperava um adequado "esporte fino", como dizem os brasileiros. Os colegas olhavam-no, num visível misto de sentimentos que ia desde o sincero ar compungido pelo seu "mal-estar" a incomodativos olhares irónicos, onde lia alguma incredulidade com a situação. O homenageado, à distância, fitou-o com um sorriso estranho e lançou-lhe um "ainda bem que pôde juntar-se a nós. É pena estar de dieta, porque esta comida e este vinho estão divinos". Pois era, e sorriu, amarelo, servindo-se de uma "San Pellegrino", a "fazer boca" para um inevitável peixe grelhado, porque, como alguém logo sugeriu, cuidadoso, com estas coisas do aparelho digestivo não se brinca... 

sábado, outubro 13, 2012

Ribeiro Santos


Passam hoje 40 anos sobre a data do funeral de José António Ribeiro Santos, um militante das estruturas de juventude do MRPP, força política de que já aqui se falou. Ribeiro Santos foi morto por um agente da PIDE/DGS, que, na ocasião, também feriu o então estudante e hoje advogado José Lamego, durante uma escaramuça gerada numa reunião universitária, em Lisboa.

Não conhecia nem nunca tinha ouvido falar de Ribeiro Santos, como não tinha nada a ver com o MRPP. Porém, tal como muitas centenas de pessoas, desloquei-me ao seu funeral, numa homenagem a alguém que tinha sido assassinado pela polícia política e também porque queria integrar o que se sabia que iria transformar-se numa ação pública anti-regime. Sabíamos nós e sabia a polícia, que recheou de agentes, fardados e à paisana, o largo de Santos, em frente à igreja, junto à casa de onde sairia o corpo. Fui com um colega da Caixa Geral de Depósitos e que, mais tarde, seria ministro das Finanças de Moçambique, Abdul Majid Osman. Era um sábado e trabalhava-se nas manhãs dos sábados de então.

Colocámo-nos no hoje ainda existente "triângulo" de passeio do largo, em frente à casa. Depois de alguns tensos minutos de espera, a multidão, que estava bastante silenciosa e apenas murmurante, agitou-se com o surgimento do caixão na porta da casa. Porque estava bastante perto, notei que se gerou uma curta discussão entre pessoas que pretendiam que ele fosse deslocado para um carro funerário e um outro grupo que acabou por afastá-lo da viatura e colocá-lo aos ombros (uma das pessoas era o atual deputado João Soares, que se vê na imagem, à frente, do lado esquerdo), logo se encaminhando para a rua das Janelas Verdes. Nesse instante, a multidão, à frente da qual acabei imprudentemente por encontrar-me, procurou avançar atrás do caixão, tentando criar um cortejo, na direção do cemitério da Ajuda.

A ideia da polícia era, porém, muito diferente. O cortejo não devia ainda ter avançado mais de 50 metros quando um cordão de agentes se interpôs, entre nós e as pessoas que transportavam o caixão, quase provocando a queda deste e forçando, à bastonada, o nosso recuo. Os manifestantes começaram a gritar "assassinos" e o habitual "abaixo o fascismo", o que teve óbvio condão de atiçar a violência policial. Por um azar, vi-me de repente encurralado junto a um automóvel e, ao voltar-me, só tive tempo de afastar a cabeça do bastão de um polícia, que se abateu fortemente sobre um dos meus ombros. Tombei ligeiramente e foi graças à ajuda do Abdul Majid Osman que consegui afastar-me, correndo em direção à zona da embaixada de França. A polícia perseguiu-nos ainda pela rua das Trinas acima. Uma hora mais tarde, ainda fomos ao cemitério da Ajuda, onde houve mais correrias e palavras de ordem.

É esta a minha recordação do funeral de Ribeiro Santos, figura que o MRPP, a partir de então, converteu num seu símbolo. Eram assim esses últimos tempos da ditadura portuguesa. Um ano e meio depois, iria ter um grande gosto em ajudar a acabar com ela.

sexta-feira, outubro 12, 2012

Relendo os clássicos

"Os diplomatas portugueses passam por agradar no estrangeiro pela sua palidez! Mas não se sabe que a sua palidez vem, não da beleza da raça peninsular, mas da fraqueza de legação mal alimentada. Onde um embaixador português mais se demora, não é diante das instituições estrangeiras com respeito, é diante das lojas de mercearia com inveja! E se eles não podem alcançar bons tratados para o país – é porque andam ocupados em arranjar mais rosbife para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição do diplomata português era insustentável. E ainda veremos os jornais estrangeiros, noticiarem: 

"Ontem, na Rua de… caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado. Conduzido para uma botica próxima o infeliz revelou toda a verdade – era o embaixador português. Deram-lhe logo bifes. O desgraçado sorria, com as lágrimas nos olhos.”

Que o país atenda a esta desgraçada situação! Que tenha um movimento generoso e franco! Dê aos seus embaixadores menos títulos e mais bifes! Embora lhes diminua as atribuições, aumente-lhes ao menos a hortaliça. Eles pedem ao seu país uma coisa bem simples: não é um palácio para viver, nem um landau para passear, nem fardas, nem comendas! É carne! Que o país, no número do pessoal diplomático, diminua os adidos e aumente os bois.”

Eça de Queiroz, em "As Farpas", nº 6, Outubro de 1871

(Em tempo: a transcrição aqui feita, por pura graça, deste clássico texto humorístico de Eça de Queiróz suscitou logo reações, em notas de grave "escândalo" por uma imaginária reivindicação salarial, tudo mobilizado pela psicologia da inveja, que por aí policia os nossos dias. Caramba!, até o humor a "troika" tirou aos portugueses.)

quinta-feira, outubro 11, 2012

O livro

Não recordo o seu nome e, mesmo se dele me lembrasse, não o diria aqui. Era um homem muito simples, na casa dos 50 anos, que me contava belas histórias da sua infância em João Pessoa, na Paraíba, terra de que sentia saudades que a melhor vida que tinha em São Paulo não conseguia atenuar. Era o meu motorista habitual quando tinha de me deslocar a São Paulo, ido de Brasília, o que ocorria com alguma frequência, nesses quatro anos em que vivi no Brasil. 

Entre o aeroporto e os compromissos, ou nos intervalos entre eles, eu tinha por invariável hábito passar pela fabulosa Livraria Cultura, na avenida Paulista, de longe o mais completo e bem arrumado lugar de venda de livros em língua portuguesa, em todo o mundo. Por necessidade, por tentação ou por simples vício, nunca de lá saía sem um saco, mais ou menos recheado, de edições brasileiras.

Numa das muitas vezes em que eu acomodava no carro as novas aquisições, esse meu motorista inquiriu:

- O senhor consegue ler todos esses livros que compra?

Expliquei-lhe que não, longe disso!, mas que eu fazia parte de um grupo de pessoas, bastante vulgar, que compra sempre muitos mais livros do que aqueles que alguma vez conseguiria ler, mas que, nem pelo facto de disso ter plena consciência, era capaz de deixar de o fazer. Era uma espécie de "doença", algo dispendiosa mas incurável. Sem surpresa, fiquei com a impressão de não foi sensível a esta minha irónica explicação.

Segundos volvidos, disse-me: 

- Eu também já li um livro.

Aceitei com discreta delicadeza a sua singular revelação e inquiri que livro era.

- Era um livro sobre religião, escrito por um americano, um livro muito bom. Gostava de lê-lo outra vez. Mas emprestei-o a um conhecido que foi para João Pessoa e nunca mais consegui voltar a lê-lo. Já falei com gente de lá, para lho pedirem, mas não mo devolve. Para o ano, quando fôr à Paraíba, vou ter com ele e vai ter de mo devolver. A bem ou a mal.

- Mas há tantos livros! Porque é que não lê outro livro? Por exemplo, a pessoa que escreveu o livro que leu até pode ter escrito outros, tão bons ou melhores do que esse. Sabe o nome da pessoa que escreveu o livro?

- Não sei, não me lembro, mas também não me interessa. Eu só quero voltar a ler esse livro. Não quero ler outros livros.

E calou-se, numa tristeza evidente.

Nunca cheguei a saber como se chamava o livro que o meu simpático motorista tinha lido, nem quem era o americano que o tinha escrito. E para sempre senti imensa pena daquele homem, não pelo facto de não querer ler mais livros, mas porque percebo muito bem a angústia de alguém perder aquela que era toda a sua biblioteca. 

A crise do "Público"

É uma triste notícia para o país a crise que parece afetar o jornal "Público" e seria trágico para o panorama jornalístico nacional se ela viesse a significar o encerramento do jornal - ou a sua transformação num produto de natureza diversa, do qual apenas sobrevivesse o nome.

Em tempos, já aqui se disse algo sobre o jornal "Público" e sobre o que ele representou para Portugal. Porém, esta crise leva-me a duas novas questões.

A primeira é a necessidade de ponderarmos se, no mercado de leitura de jornais atual em Portugal continua a haver ainda espaço para um diário com as caraterísticas do "Público", isto é, com um jornalismo que, como há décadas dizia o "L'Express", "va plus loin...". Se tivermos de chegar à conclusão negativa, então o "défice" português vai muito para além das contas públicas.

A segunda reflexão é no sentido de tentar perceber se algumas opções em matéria de jornalismo, que o "Público" optou por seguir nos últimos anos, serão, no todo ou em parte, a razão da crise que o jornal atravessa

quarta-feira, outubro 10, 2012

A barragem do Tua

O início da construção de uma barragem na foz do rio Tua, perto da sua confluência com o Douro, suscitou preocupações em diversos setores portugueses e internacionais. Embora a barragem, em si mesma, fosse edificada fora da "zona protegida" do chamado Alto Douro Vinhateiro, com efeitos mínimos sobre esta, ela incide fortemente na respetiva "zona de proteção". Por essa razão, o Estado português deveria ter feito uma notificação prévia à UNESCO, antes do início dos trabalhos. Erradamente, isso não foi feito. Porque reconhecemos os erros, quando praticados, Portugal já o disse, publicamente.

Em 2011, a UNESCO decidiu enviar a Portugal uma missão encarregada de verificar a compatibilidade do empreendimento com a manutenção do estatuto da região do Alto Douro Vinhateiro como "património mundial" reconhecido pela UNESCO.

Essa missão produziu um relatório que evidenciava diversos pontos que necessitariam uma resposta muito concreta por parte de Portugal. Essa resposta foi dada, em devido tempo. Porque a realidade no terreno mudara e importantes medidas, tidas por essenciais no relatório da missão de 2011, tinham, entretanto, sido implementadas, foi por nós solicitada a realização de uma nova missão técnica à região.

Entretanto, e ainda na sequência do relatório da missão de 2011, e não obstante as respostas entretanto avançadas por Portugal, foi apresentada ao Comité do Património Mundial da UNESCO, a ser avaliada na reunião que teve lugar em S. Petersburgo, em fins de junho, uma proposta de decisão no sentido da suspensão imediata dos trabalhos de construção da barragem.

Portugal considerou que a paragem das obras era injustificada. Pessoalmente, durante o mês de junho, mantive reuniões em Paris com cada um dos 21 membros do Comité, oriundos de 21 diferentes países, a quem expliquei, em pormenor, o que tínhamos entretanto feito e, muito em especial, que nos parecia sem sentido estar a suspender os trabalhos, na pendência da realização de uma nova missão. 

A nossa posição foi escutada. Por unanimidade, na sessão de S. Petersburgo, esses 21 membros rejeitaram o projeto de decisão apresentado pelo Centro do Património Mundial e aceitaram a proposta que submeti, em nome de Portugal, no sentido de haver uma "redução significativa" do ritmo dos trabalhos até à publicitação do relatório da nova missão.

Tive oportunidade de acompanhar essa nova missão, que teve lugar em finais de junho e inícios de agosto. O seu relatório foi ontem conhecido.

No essencial, o relatório diz: "A missão concluiu, de acordo com informações oriundas de diferentes fontes, que a construção da barragem parece ter um impacto global limitado no valor excecional universal do bem patrimonial e na sua integridade e autenticidade em termos de impactos na paisagem que reflete os processos de vinicultura". Em linguagem mais clara, fica evidente que o empreendimento não é incompatível com a preservação do estatuto de "património mundial" do Alto Douro Vinhateiro.

Porém, nem tudo está ainda concluído. Embora do  relatório da missão, que - diga-se, porque é relevante - integrou a técnica responsável pela missão de 2011, resulte uma implícita autorização de prosseguimento das obras de construção da barragem, se bem que a um ritmo limitado (mas já não uma "redução significativa" desse ritmo), Portugal tem de dar resposta, até 1 de fevereiro de 2013, a algumas questões que são colocadas pelo relatório ora divulgado. Para nós, esse trabalho essencial começa já hoje, com abertura e transparência, na plena cooperação que desejamos manter com a UNESCO e, muito em particular, com o Comité do Património Mundial.

A questão da barragem do Tua é um tema que suscita muitas preocupações em diversos setores em Portugal, as quais, aliás, a missão técnica da UNESCO teve oportunidade de ouvir e avaliar. Não tenho a menor dúvida que esses setores vão continuar a contestar a construção da barragem. Porém, um argumento importante deixam, a partir de agora, de poder esgrimir: a eventual incompatibilidade da construção da barragem com o estatuto do Alto Douro Vinhateiro como "património mundial" da UNESCO. 


Em tempo: aquilo a que eu costumo chamar o "jornalismo adversativo" (isto é, aquele que não consegue dar uma notícia tida como "positiva" sem a fazer seguir de um redutor "mas"), lá procurou descortinar, no seu tradicional esforço de reduzir o impacto daquilo que constitui a verdadeira novidade - a barragem do Tua pode construir-se, sem que isso ponha em causa o estatuto do Alto Douro Vinhateiro como "património mundial" -, nas respostas que terão de ser dadas a algumas recomendações do relatório dos peritos da UNESCO, uma espécie de "compensação" face ao sentido inequívoco da decisão, favorável aos interesses que o Estado português entendeu dever defender. Era só o que faltava que uma "boa notícia" saísse a público sem algumas reticenciazinhas!...) 

Alemanha

Ontem, ao observar o modo como a chanceler alemã foi recebida em Atenas, dei comigo a pensar no constante peso da História no modo como os países mutuamente se olham.

Um dia há-de fazer-se um historial da germanofilia em Portugal, não necessariamente numa perspetiva caricatural, ligada ao tempo da 2ª Guerra mundial, mas numa dimensão temporalmente bem mais alargada. 

No que me toca, e embora seja pouco dado a tropismos por pátrias alheias, sempre me senti um pouco "germanófilo", pela grande admiração que tenho pelo esforço notável de reconstrução e reconciliação interna daquele país, pela forma correta como nele foram e continuam a ser acolhidos os migrantes portugueses, pela constante seriedade colocada pela Alemanha nas relações económicas com Portugal. Nunca esqueço também o modo amigo como o antigo chanceler Helmut Kohl tratou o caso português nas instituições comunitárias e, já posteriormente, outras atitudes que muito nos ajudaram naquele contexto, de que fui testemunha próxima. No futuro imediato, espero poder sustentar razões para, à minha maneira, continuar a ser "germanófilo".

Na carreira diplomática portuguesa, a germanofilia foi sempre uma corrente minoritária, sendo superada, à evidência, pela anglofilia, pela francofilia e, um pouco mais tarde, pela americanofilia.

Nesse particular afeto por Berlim (e, temporariamente, por Bona), alguns mostraram sempre um zelo fora do vulgar. Um dia dos anos 90, um desses colegas foi "premiado" - reconheça-se, com algum exagero - com o aparecimento na porta do seu gabinete de um cartaz com dizeres que copiavam os modelos existentes nas fronteiras que, em Berlim, delimitavam o setor americano. Nesse cartaz podia ler-se: "Achtung! You are leaving the Portuguese sector".

Os anais das Necessidades, onde esta historieta é bem conhecida, não registam o nome do autor da brincadeira. Ainda bem. 

Hoje, aqui na Haia

Uma conversa em público com o antigo ministro Jan Pronk, uma grande figura da vida política holandesa, recordando o Portugal de Abril e os a...