segunda-feira, outubro 15, 2012

Companhias

As viagens aéreas são, para mim, momentos "sagrados", em que, quando não passo "pelas brasas", aproveito para ler papelada que tenho em atraso. Com esta última finalidade, levo sempre comigo quilos de jornais e revistas, telegramas de informação do MNE que não tive oportunidade de estudar (eu sei que é "quase" ilegal andar com isso na pasta, mas já falta pouco tempo), dois ou três livros dentre a dezena que ando simultaneamente a ler. O que carrego para uma viagem, se acaso chegasse ao fim da respetiva leitura completa, equivaleria, no mínimo, ao tempo de três percursos. Mas é assim mesmo: sou um otimista da leitura.

Porque as viagens são isso - um incomparável tempo descansado para ler, sem ser interrompido por telemóveis ou conversas -, detesto diálogos com os parceiros do lado, a menos que, por uma qualquer razão, seja eu a ter a iniciativa de os encetar. Mal me sento (e luto pelos locais de janela, para poder "blindar-me"), evito reagir a qualquer casual comentário do viajante próximo, do tipo "está muito calor, não acha?" ou "cada vez há menos espaço entre as cadeiras" ou "será que ainda nos vamos atrasar muito?" ou outras vetustas "alavancas" análogas, usadas para iniciar uma troca de palavras. É que, se a minha resposta ultrapassar um seco monossílabo, a possibilidade de vir a ter de entabular uma conversa que afeta o meu tempo de leitura torna-se imensa. O período da refeição é, de longe, o mais perigoso, porque geralmente estamos desmunidos de peças de escrita, razão pela qual cuido sempre em deixar um pedaço de jornal a espreitar por debaixo do tabuleiro, fingindo que nele me concentro (assim evitando elaborar na resposta ao "que tal achou o tinto?"). Devo dizer que, com as "horas de voo" que tenho no currículo, considero-me já um "profissional" batido nesta matéria, conheço "de ginjeira" os truques todos e, quase sempre, tenho garantido sucesso neste meu (por vezes, artificialmente pouco simpático, reconheço) procedimento, conseguindo escapar aos palradores aéreos. 

Historicamente, tive um dia um azar que para sempre me ficou gravado na memória. Ia de Lisboa para Nova Iorque e tinha preparado tudo para as minhas cinco horas e tal de viagem (ah! porque não durmo bem em aviões, eu também sou "aquele" passageiro incomodativo que leva sempre a luz de leitura aberta, mesmo no bréu coletivo da cabine, durante as noites, para grande raiva dos restantes viajantes): jornais, livros de vária espécie (recordo que havia poesia pelo meio) e até banda desenhada. Tinha também um "laptop" para escrever um artigo e havia prometido a mim mesmo aproveitar para nele arrumar algumas centenas de fotografias. Tudo estava preparado para uma bela viagem, no incomparável prazer da solidão aérea.

Acrescia a constatação feliz de que o lugar ao lado do meu iria ficar vago, o que me permitiria, desde logo, fazer nele um estendal da parafernália de leitura que transportava. Nessas ocasiões, devo confessar, passo minutos de angústia até confirmar o fecho da porta do avião, momento de alívio a partir do qual sei que ninguém mais virá ocupar esse espaço. E assim aconteceu, nessa ocasião. Como nesses tempos a classe executiva era de regra (eu sei, o défice...), até aceitei uma taça de champanhe, mais para brindar ao lugar vazio ao meu lado do que por devoção ao dito.

O avião descolou, recostei-me e comecei a sessão de leitura, saltitando entre o muito que trazia. De súbito, ouvi: "Meu caro, vi que você estava sentado aqui. Eu ia ali atrás. Importa-se que eu ocupe este lugar vago ao seu lado?". O que é que se responde a isto? "Importo, claro, desampare-me a loja, não me chateie"? Não é possível. Era um político português, um homem simpático mas um falador endémico, aquilo a que os brasileiros chamam "um chato de galocha", o qual, começou por me explicar que também ia para Nova Iorque (como se eu suspeitasse que fosse para Ulan Bator...) e que, praticamente durante as cinco horas da viagem, me atazanou os ouvidos com historietas, perguntas e comentários. De rastos ficou todo o plano de leituras que, com imenso critério, eu tinha premeditado para esse voo. Ainda hoje, uma década depois, não me recompus do trauma, como se vê.

Lembrei-me disto, há dias, entre Frankfurt e Baku. Pelo "body language" (com a experiência, a gente topa este pessoal à légua) percebi que o meu vizinho do lado era dos que aproveitam o menor pretexto para meter conversa. Já não sei a propósito de quê, perguntou-me: "Vous parlez français?". Fiz um "carão" e disse, com sotaque de Alcains: "Très mal". E puxei da recém-publicada obra do assessor especial de Sarkozy, Henri Guaino, "La nuit et le jour", até terminar as suas cerca de 300 páginas, duas horas depois. De seguida, acabei de ler o "L'Express", o "Le Nouvel Observateur" e o "Le Point", que sucessivamente tirei da pasta, concluindo com o "Le Monde" do dia. No final da viagem, o homem quase me matava com o oblíquo olhar. Mas li o que queria. Tudo em francês, claro. Bela viagem!

19 comentários:

Rui Franco disse...

Conselho de viajante: apontar para os ouvidos sem dizer nada. Julgam-nos surdos, pedem desculpa e já não chateiam.

omapadomundo.blogspot.pt/2011/12/o-respeito-pelos-deficientes.html

Isabel Seixas disse...

Pode sempre fazer-se acompanhar de um biombo que aberto ostente a frase universal"please do not disturb"...

domingos disse...

Normalmente, também evito conversa durante os voos. Mas num impulso talvez de caridade cristã aproveito muitas vezes os últimos 10 minutos de voo para dar alguma trela ao parceiro do lado. Claro que isto também depende muito de quem for o/a parceiro/a do lado...

Anónimo disse...

Um sotaque de Alcains que eu conhci era sisudo. Mas aqui permitiu, imagino, 
um duplo prazer de leitura em francês e uma forma diplomática de responder à pergunta sem ir ao cerne da questão.
José Barros 

Anónimo disse...

E se sentar uma bela, belissima e efusiva viajante ao lado e... Quem mete conversa?

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Anónimo das 9.52: isso já é outra conversa...

Rubi disse...

Excelente!

Anónimo disse...

Bem me parecia...as excepções que confirmam a regra.

Anónimo disse...

Há muitos anos, no México, entre Palenque e San Cristóbal de las Casas, num autocarro velhíssimo que parava onde houvesse indígenas na berma da estrada, calhou-me ao lado uma indígena que transportava na mão duas galinhas. Eis senão quando uma se escapou para cima das minhas pernas e ali mesmo depositou um ovo.Limitei-me a rir com o incidente e nem sequer podia falar com a indígena, que não falava castelhano. Nunca mais esqueci tal evento. Antes esta indígena que deixa a sua galinha pôr ovos em colo alheio do que os chatos que pululam nos aviões.

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Senhor Embaixador

Leve um ipod e mesmo que não esteja a ouvir musica coloque os auscultadores nos ouvidos. Simples mas sobretudo eficaz

Helena Sacadura Cabral disse...

Caro Embaixador, siga o conselho de Mello Breyner. É o que faço sempre. E resulta!

Anónimo disse...

Historieta quase tão bem caçada como a do jantar do post anterior.

Eu não sei se este comentário é publicável, mas é delicioso.
Durante alguns dos anos 80, eu vivia no Porto e trabalhava em Lisboa, fazendo semanalmente as viagens de ida e regresso.
Como ainda não havia autoestrada e a empresa me facilitava esta opção, viajava normalmente de comboio, despachando o carro num comboio precedente.
Ao domingo, quando chegava a Lisboa no "foguete" da noite, era só pegar a viatura e ir para Oeiras, onde tinha o apartamento.
Nas viagens aproveitava também para ler e pôr umas coisas em dia, e dois dedos de conversa com o passageiro do lado, se parecia ser daqueles que poderia amenizar as três horas de viagem.
Numa dessas viagens, a conversa com a interessante passageira do lado começou tarde, mas suficientemente cedo para ganhar a confiança de lhe poder oferecer boleia até ao hotel, "que até ficava a caminho".
Aceitou.
Chegados ao hotel, "como ainda era cedo", sugeri, timidamente, se aceitava ir beber um copo a qualquer lado.
Olhou para o relógio, e confirmou:
-sim, ainda não é tarde, podemos ir, mas é mesmo só para beber um copo. É que hoje estou num daqueles dias...
A.R.

Helena Oneto disse...

Mais uma pérola que tem muitas similitudes com o post anterior o que me leva a crer que o diplomata do primeiro tem muito a ver com o viajante "sisudo" deste:)...

Pode ser que seja pura coincidência, mas, desde ontem, dia em que foi tornado publico o OE 2013, o Senhor tem-se (du)aplicado a fazer-nos rir! e resulta:)!
MERCI!
Bien à vous, cher ami!

patricio branco disse...

boa cronica da ocupação do tempo durante os voos,dormir, ler, conversar, ficar impaciente, levantar-se, ver os filmes que passam....fantastico os que aproveitam e são organizados e aproveitam,e parece que fsc é um desses.

Helena Oneto disse...

Acabo de 'enviar' o meu comentario e, de volta aqui, dou de caras com o de A.R.(confirmo não sou so eu a pensar o mesmo:)!!)

Vivi situações analogas à que nos conta, com muita piada, o seu leitor A.R... houve viagens em "que ainda era cedo" e "tudo ficava em caminho" em dias sim e dias não:))... algumas acabaram bem outras mal...

Anónimo disse...

e de subito, a confiante facis do jovem embaixador toda se cambia, quando, a vistosa jovem a seu lado, lhe devolve as tao gentis palavras que dissera com um bruto e inaudito sotaque da fajã de vila real, ali para os lados de sao miguel...



bem haja

Betorama disse...

Caro embaixador. É com imenso prazer que o encontro aqui neste blog. Explico: estava querendo de alguma forma agradecer os momentos agradáveis e emocionantes que, sem saber, o senhor me proporcionou. Estive em Portugal entre dezembro do ano passado e janeiro deste ano e perguntei ao meu amigo tramontano Antonio Duarte, se poderia me aconselhar bons locais para almoçar. E ele gentilmente me ofertou uma cópia de uma relação feita pelo senhor ("Uma escolha muito pessoal") quando embaixador no Brasil. Consegui ir a pelo menos 10 das muitas indicações, uma melhor que a outra. Lugares que um turista eventual jamais entraria, sequer passaria na porta. Lugares como a Tasqinha dÁdelaide (que manda-lhe recomendações) ou o incrível Snob, maior índice de poluição de fumaça de cigarro do mundo, onde provei o delcioso bife tardio da D.Maria que já se aposentou. E quando procurei o Pedro Quinto, no nº 14 da Rua de mesmo nome, só encontrei um residência. Perguntei para uma senhorita que trbalhava numa Parrella Argentina, vizinha, e ela perguntou do dito restaurante para um utro funcionário, este de mais idade, que gentilmente veio me dizer que havia fechado. Quando eu lhe mostrei as suas anotações, pasme, ele se emocionou demais. Era o próprio Juvenal, que era dono do Pedro Quinto. Pediu para tirar uma fotocópia, e lá foi ele lá para dentro, mostrando a todos, com muito orgulho, ter sido lembrado pelo senhor. Enfim, já me alongo demais, como um chato de galochas, mas gostaria de mandar um abraço carinhoso. E se um dia estiver de volta a Brasilia, faço questão de levá-lo a algum lugar que só os locais conheçam. Um grande abraço deste seu fã. Beto Ramazzina

Helena Sacadura Cabral disse...

É preciso ter muito cuidado com os dias sim...porque às vezes acabam em não.
As histórias de viagens para quem as faz com frequência são um manancial.
Talvez, um dia, quando for velhinha conte algumas bem engraçadas. Pena que na altura fosse ainda muito "tacanha".

Anónimo disse...

Um texto de antologia.

Manuel Antunes da Cunha

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...