sábado, novembro 06, 2010

Sá Carneiro

Há quase um ano, falou-se aqui da figura de Francisco de Sá Carneiro. Dentro de dias, em 4 de Dezembro, passarão 30 anos sobre a sua trágica morte, uma daquelas escassas datas em que todos nos lembramos onde estávamos no momento da notícia.

Há dias, ouvi dizer que tinha saído uma biografia de Sá Carneiro, da autoria de Miguel Pinheiro. Consegui comprá-la no aeroporto, antes do regresso a Paris. Em 48 horas, devorei as suas quase 800 páginas, escritas num estilo quase "fílmico", com um ritmo jornalístico e um excecional rigor investigativo. Ao que parece, Miguel Pinheiro demorou cinco anos a recolher os dados para este trabalho. Mas valeu a pena.

Com algumas escassas, embora valiosas, exceções, o género biográfico não tem, entre nós, grandes cultores. A tendência para a hagiografia das personagens sobrepõe-se. muitas vezes, à desejável independência na avaliação dos factos e das interpretações. Noutros casos, a vaidade intelectual dos autores torna o tratamento das figuras escolhidas um mero pretexto para a defesa de uma tese pessoal. Finalmente, numa terceira categoria, aparecem obras de uma qualidade de investigação e/ou escrita lamentável.

Este trabalho de Miguel Pinheiro revela-o um autor de mérito e traz-nos dados novos sobre uma das personalidades mais marcantes do imaginário político da democracia portuguesa. Para quem, como eu, tem o "vício" de procurar ler tudo quanto pode sobre a contemporaneidade política doméstica, este livro revelou muitas coisas novas, confirmando também muitas outras.

O mais interessante neste trabalho - para além de dados curiosíssimos sobre a génese da "ala liberal" do marcelismo e sobre as tensões no seio do então PPD - é talvez a luz nova que se projeta sobre a personalidade de Francisco de Sá Carneiro, vista à lupa naquilo que são as suas fraquezas, a sua determinação, o seu carisma e a sua propensão para a rutura, no plano político mas também pessoal. 

O autor privilegia a "cedência" dos factos ao leitor em detrimento de uma versão predominantemente interpretativa - o que pode desagradar a alguns críticos -, concedendo-nos uma maior liberdade na leitura. Esta pode, aliás, levar a duas conclusões contraditórias, o que não deixa de ser uma grande qualidade, abonatória da honestidade do trabalho executado.

Para os que admiram Sá Carneiro, o livro confirmará os traços de inconformismo que o tornaram popular e que conduziram à saudade de um certo tipo de liderança, frontal e arrojada, sem receio de colocar na ação executiva medidas corajosas, ao serviço de um ideário de denúncia aberta do que entendia serem as distorções que um radicalismo esquerdista introduzira no Portugal pós-abril.

Quem não aprecia a personagem encontrará no livro argumentos para reforçar a sua visão de um político egocêntrico e vaidoso, com tiques autoritários e populistas, com uma agenda de confronto feita de teorias conspirativas, que induziram tensões eventualmente gratuitas, por ausência de um espírito de compromisso e por uma dificuldade de relacionamento pessoal com os adversários..

Este é um livro que, francamente, recomendo e que deve ser lido por quem tem interesse em perceber melhor o Portugal contemporâneo.

Sucesso português

Ontem, numa conversa a propósito da nomeação de António Horta Osório para a chefia do Lloyds Bank, depois do sucesso que teve no Santander britânico, alguém me dizia: "Não percebo por que é que, só pelo facto de alguém ser português, temos necessariamente de ficar contentes com a subida desse alguém na cena internacional".

Eu não conheço pessoalmente Horta Osório mas, devo confessar, sinto sempre uma grande satisfação quando o adjetivo "português" se liga ao nome de alguém com sucesso, à escala mundial. Portugal é um país conhecido pela sua história (somos um dos países mais antigos do mundo), mas não somos reconhecidos pelos outros como um país "produtor" de vencedores. E o prestígio subliminar de um país no imaginário coletivo constrói-se também, para além de muitos outros fatores, pela visibilidade positiva das personalidades que dele emergem. Seja Horta Osório, seja Oliveira, seja Saramago, seja Siza Vieira, seja Mourinho...

Church's

Um anúncio no "Le Figaro" de ontem trazia uma fotografia de uns sapatos "Church's", aquela clássica marca inglesa que tem a fama de ser eterna (não é, posso garanti-lo). Em Paris, há três lojas da marca. Hoje, investiguei o preço do produto anunciado: proibitivo! Não pude, assim, levar à prática aquela asserção do precetor austríaco do rei dom Manuel, que andava sempre equipado com os mais caros produtos de vestuário e calçado, explicando: "Não sou suficientemente rico para poder comprar coisas baratas".

Um dia, nos anos 90, em Londres, tive a jantar em casa uma colega - hoje embaixadora - e o seu pai, uma figura encantadora que, como a muitos aconteceu, recorreu aos médicos britânicos como última esperança para uma doença cancerígena que o minava. Infelizmente com razão a curto prazo, o parecer médico não deixou espaço para nenhumas ilusões. Ficou-me na memória afetiva, para sempre, a ironia triste, mas com admirável "panache", com que o pai dessa minha amiga, no final do jantar, me disse que, nessa tarde, comprara uns Church's: "Sabe, dizem-me que duram 20 anos. É tempo suficiente..."

Informação

Neste mundo de informação instantânea - onde o mais difícil é "vermo-nos livres" da informação a mais e ter acesso apenas àquela que nos é essencial - esta fotografia da delegação do jornal "O Século", no Rossio de Lisboa, nos anos 40, dá-nos uma imagem curiosa do que era a avidez pelas notícias, naquele tempo de guerra europeia. Os "takes" das agências noticiosas eram então sintetizados em notas à mão, que os passantes liam. 

Bem mais tarde, como muitos se recordarão, o sistema passou para as fitas noticiosas luminosas que eram exibidas em paredes (por exemplo, no Rossio, em Lisboa, e na Praça da Liberdade, no Porto) e que nos davam "as últimas", num estilo um pouco ao modo dos atuais rodapés dos telejornais (embora, nesse tempo, sem erros ortográficos).

Ao comparar as épocas, e, no caso português, descontadas as limitações da censura, devo dizer que fico na dúvida sobre se as pessoas desse tempo eram, de facto, menos informadas do que nós, relativamente ao que era essencial para a sua vida.

quinta-feira, novembro 04, 2010

De Lisboa a Pandora

A ideia, aprovada no último Conselho Europeu, de reabrir o Tratado de Lisboa por forma a poder consagrar, em linguagem formal, os novos mecanismos para apoio aos Estados Membros em dificuldades económico-financeiras, parece derivar de um indiscutível bom-senso. Ninguém, que conheça um mínimo da coisa europeia, negará a importância de ver vertido, em termos de tratado, um modelo funcional que teve algo de "ad hoc", que foi feito sob a pressão da conjuntura.

E, no entanto... Pode ser da idade, pode ser uma desconfiança tonta, pode ser de uma deriva injusta para as teorias conspirativas, podem ser muitas outras razões, embora todas por ora tenham de ser diplomaticamente implícitas, mas, devo confessar, esta proposta traz-me alguma inquietação. 

Fiz parte do "grupo de reflexão" europeu que preparou a revisão do Tratado de Maastricht. Negociei, por Portugal, o Tratado de Amesterdão. Anos depois, ainda estava "morna" a ratificação parlamentar deste tratado e já estávamos na negociação daquilo que viria a ser o Tratado de Nice, que também tive a meu cargo. Passaram dois anos, e o governo português de então formulou-me o convite para o assessorar na fase final do defunto "Tratado Constitucional", o qual, com alguns arranjos de forma, foi a base real do Tratado de Lisboa que está em vigor - cuja negociação final se sabe ter sido de grande complexidade e no qual Portugal brilhou, durante a sua Presidência da União Europeia, em 2007. Por essas razões, julgo saber alguma coisa do que falo.

Reabrir um tratado, à luz de um motivo de conjuntura, vai contra uma regra que sempre ouvi aos meus amigos juristas: nunca se muda um lei debaixo da pressão de acontecimentos de circunstância. E isso, neste caso, ainda se processa em condições piores, porque as circunstâncias desta crise estão a mudar de minuto a minuto - e muito mais mudarão, ao longo dos muitos meses que esta revisão vai levar. Sabe-se como começa uma revisão de um tratado, nunca se sabe como se concluirá.

Temo que esta revisão do Tratado de Lisboa possa acabar por ser uma má notícia para a Europa. E, nesta fase do "campeonato", receio que venha a ser uma péssima notícia para Portugal. Mas, com total sinceridade, não posso excluir que esteja completamente enganado.

quarta-feira, novembro 03, 2010

Partidas

Há uns tempos, uma amiga perguntou-me: "Não escreveste nada por ocasião da morte do Mário Bettencourt Resendes. Porquê?". Nesse momento, dei-me conta de que pode haver quem espere que este blogue "funcione" com o ritmo de um jornal, onde seja quase obrigatório notar a desaparição das figuras proeminentes. Não é nem pode ser assim.

A essa amiga, expliquei que, embora conhecendo pessoalmente Mário Bettencourt Resendes e tendo dele uma imagem, pessoal e profissional, muito positiva, não terei encontrado, naquele momento, um motivo de oportunidade para fazer uma nota. Porquê? Sei lá! Porque não tinha tempo, porque estava cansado, porque me não ocorreu nada que pudesse justificar uma escrita para posterior leitura, por um monte de outras razões conjunturais.

As evocações por aqui de figuras que desaparecem não têm nenhuma lógica entre si. Porquê falar de Laurent Fignon e não de António Feio? E de Pina Martins e não de Hugo dos Santos? Ou de Mercedes Sosa e não de Mariana Rey Monteiro? Ou de tantos outros?

Este blogue é e será sempre um livre exercício do acaso. Essencialmente, do tempo disponível, que não é muito. Há posts que são feitos em segundos (o que, às vezes, se reflete na respetiva escrita), outros podem derivar de uma maior elaboração. Não há regras. A única coerência que pretendo expectável diz respeito às ideias que possam transparecer do que aqui se escreve. E nem isso está, em absoluto, garantido...

Esperança

A esperada "débacle" que se abateu sobre a administração Obama, nestas eleições "midterm", culmina um período de forte erosão política, fruto dos efeitos da crise económico-financeira, da não concretização prática de grande parte do programa presidencial e do natural ressurgir da América conservadora.

Não é novidade os presidentes americanos verem a sua base parlamentar de apoio ser reduzida nestes sufrágios a meio do percurso. Aliás, se refletirmos um pouco, facilmente chegaremos à conclusão que este método de renovação parcial dos legisladores, típico de regimes presidencialistas, é uma sábia "válvula de escape" constitucional que permite atenuar o poder das maiorias e dar voz pública aos descontentes com os anos anteriores de mandato. O sistema americano pode ter muitos defeitos, mas a sua sobrevivência, num país tão complexo, prova a sabedoria de quem o desenhou.

Cada presidente é um caso, mas Obama não é um presidente "normal". A eleição de um presidente negro - ou melhor, de um negro como presidente -, ligada a uma agenda de esperança quase regeneradora, representou uma mudança de uma gigantesca dimensão. Se a gestão Obama vier a revelar-se um fracasso, que efeito poderá ter esse fragoroso ruir da esperança? E que América lhe sucederá?

terça-feira, novembro 02, 2010

"Tour de table"

Desde o início que pressenti algo de estranho na atitude daquele técnico, que Lisboa tinha enviado a uma reunião especializada, numa certa capital europeia onde eu estava colocado. Era uma pessoa oriunda de um determinado departamento ministerial português. A sua deslocação justificava-se, essencialmente, para a abordagem de um ponto particular da agenda de trabalhos, supostamente importante para os nossos interesses.

A minha estranheza prendia-se com o facto de, ao ter-lhe formulado algumas perguntas sobre aquele assunto, ter dele recebido respostas muito vagas e inconclusivas. Como era a ele que competia intervir, levei essa atitude à conta de estar a "guardar o jogo". Não insisti.

A reunião tinha lugar durante todo o dia. A mim competia-me apenas acompanhar os trabalhos. No período em que estive presente, a agenda fluiu, sem grandes intervenções. Portugal, por intermédio do nosso técnico, não teve necessidade de se pronunciar. Na parte da tarde, porque fui chamado à Embaixada, deixei o homem sozinho na delegação portuguesa. Esse era o período em que ele tinha necessariamente de intervir, para expressar a nossa posição, naquele ponto específico, que motivara a sua deslocação.

A meio da tarde, quando regressei à sala da reunião, vi o nosso técnico nervoso. Fumava imenso e parecia algo agitado. Perguntei-lhe que tal tinham corrido os debates, no tal ponto da agenda. Seco, respondeu-me: "Juntámo-nos ao consenso". E perguntou-me: "Pode assegurar o resto da reunião? Tenho de ir andando". E lá foi, de regresso a Lisboa.

No final da reunião, um colega da delegação de outro país perguntou-me: "Então vocês não tomaram posição?" Referia-se ao tal tema. Foi então que eu soube que a presidência da sessão havia, a certo passo, decidido fazer um "tour de table" (uma volta à mesa, na qual cada delegação toma a palavra). Nesse instante, o técnico português ter-se-á escapulido da sala, deixando vazio o lugar do nosso país. Claro que, ao chegar à ausente delegação portuguesa, o "tour de table" passou à frente, para a delegação seguinte. O homem terá voltado à sala depois de encerrado o debate sobre o tema. A tempo, pelos vistos, de se informar que havia sido adotado um consenso, proposto pela presidência. Estava explicada a razão pela qual Portugal "se juntara" ao consenso... 

Nunca percebi a razão desta singular atitude de "chaise vide". Seria receio de intervir? Estaria pouco preparado sobre o assunto? A verdade é que, como dizem os ingleses, aquela não terá sido "our finest hour" diplomática.

Contraditório

Uma das constatações mais positivas que faço, ao ler alguns comentários a posts publicados neste blogue, é a saudável circunstância de que muitas das pessoas que simpaticamente o continuam a consultar não estão necessariamente de acordo comigo, não se revêem em algumas das ideias que por aqui vou deixando ou que por aqui se intuem.

segunda-feira, novembro 01, 2010

Livros e bibliotecas

É impressionante a qualidade dos equipamentos públicos que, nas últimas décadas, surgiram um pouco por todo o país. A minha terra de origem, Vila Real, dispõe hoje de um conjunto invejável de estruturas, que já mudaram, por completo, a face da cidade.

No passado sábado, pude experimentar a funcionalidade da nova Biblioteca Municipal. A convite do economista Jaime Quesado, fiz nela a apresentação do seu livro "O Novo Capital", um evento que contou com significativas presenças, desde responsáveis locais até ao próprio líder da Oposição nacional.

O pretexto do livro proporcionou intervenções sobre algumas das temáticas nele desenvolvidas, em certos pontos questionando opções feitas em matéria de políticas públicas e educativas. Uma sessão que poderia ter tido um cariz meramente formal acabou por motivar reflexões que lhe conferiram um  particular interesse. 

Promoção comercial

A noite de sábado estava feroz, lá por Vila Real. Decidimos, mesmo assim, ir jantar, em grupo familiar, a um restaurante. Sob chuva e vento, saímos dos carros. Perguntámos ao empregado que nos abriu a porta:

- Há lugares?

A resposta foi um "must" de promoção comercial:

- Montes deles! Com uma noite destas, só os malucos saem de casa...

Para a história: comeu-se bem.

domingo, outubro 31, 2010

Dilma

Quando cheguei ao Brasil, em 2005, Dilma Rousseff era ministra de Minas e Energia, uma área decisiva dentro do executivo brasileiro. Dos mais de trinta ministros que o Governo brasileiro então possuia, Dilma Rousseff era talvez a única personalidade que combinava uma comprovada capacidade técnica com uma história política pessoal significativa, da qual fazia parte a prisão e a tortura, de que fora vítima durante a ditadura militar.

Embora não pertencesse ao centro do poder dentro do Partido dos Trabalhadores (PT), a sua eficácia técnico-política e a crescente confiança que o presidente Lula nela claramente depositava foram-lhe garantindo o prestígio que lhe permitiu, na crise que envolveu a saída de José Dirceu da chefia da Casa Civil, o estatuto necessário para ascender ao lugar que é como que o de um "primeiro-ministro" -  embora, neste caso, no sentido de um "primus inter pares". Ironicamente, pode dizer-se que terá sido o facto de não fazer então parte do "hard core" do PT, que o processo do chamado "mensalão" tinha fortemente debilitado, que lhe deu a vantagem comparativa para assumir o cargo que, como se veio a provar, seria a rampa de lançamento para o processo que iria culminar na sua eleição.

De maio a outubro

Há dias, alguém me perguntava - nessa ilusão de que um embaixador tem um ponto de vista privilegiado - como avaliava a natureza da mobilização estudantil das recentes manifestações sociais em França, comparadas com as de maio de 1968.

As observações diplomáticas valem o que valem, até porque, ao sermos obrigados a fazê-las com incessante regularidade, por dever de ofício, acabamos por multiplicar as oportunidades para nos enganarmos. Ou, pelo menos, quero viver nessa ilusão quanto à razão dos meus próprio erros.

A sensação com que fico é que, no meio do niilismo meio anarca do maio de 1968, caricaturado no simplismo imaginativo dos slogans e "affiches" nas paredes, havia ainda um sentido de alguma esperança e de algum otimismo, mesmo que este fosse produto virtual de ideologias redentoras.

Nos jovens estudantes que hoje saem às ruas francesas julgo notar, para além de uma difusa preocupação sobre o amanhã que os espera, a assunção de um pragmatismo que me parece demasiado frio para a sua idade, como se já se tivessem conformado a não terem direito ao usufruto das grandes ilusões. Nas declarações de muitos, por entre os sorrisos da idade, revela-se já alguma consciência de que não poderão ter garantias de virem a usufruir de um bem-estar idêntico ao dos seus pais.

Ora isto é uma novidade, embora não seja uma boa notícia. Até muito recentemente, os ciclos geracionais sucediam-se num registo de melhoria progressiva de condições de vida ou, pelo menos, de uma expectativa maioritária de que isso viesse a acontecer.

Alguns comentadores devem achar, com toda a certeza, que este meu tipo de observação é titulado por quem se habituou a viver num mundo mais seguro, não sendo legítimo pensar que as novas gerações vão ficar necessariamente marcadas por uma endémica inquietação, apenas porque o seu dia de amanhã pode ser mais incerto. Espero que tenham razão, porque, como alguém já disse, eu também tenho a sensação de que, no passado, o futuro era bem melhor.

sábado, outubro 30, 2010

De joelhos

Um amigo parisiense telefonou-me para Portugal, para saber da evolução do meu joelho, cujo destino repousa ainda, por estes dias, nas insuperáveis mãos de um "craque" da fisioterapia nortenha. 

E, de  passagem, convidou-me para, no meu regresso, jantarmos lá por casa um "jarret de porc" e revermos essa obra mítica de Eric Rohmer que é o "Le genou de Claire" (na imagem). Brincalhão...

sexta-feira, outubro 29, 2010

Gonçalo Ribeiro Telles

Se  houvesse um mínimo de memória pública, as inundações que hoje afetaram, de forma quase dramática, a Baixa de Lisboa, deveriam levar-nos a recordar a figura do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles.

Aquele que foi o pioneiro da consciência ambiental em Portugal, e a quem ainda não foi prestada a grande homenagem nacional que também por isso lhe é devida, alertou, em devido tempo e de forma enfática, para as consequências que o tipo de construção que então se promovia na Avenida da Liberdade, em Lisboa, iriam ter em termos de limitação do escoamento subterrâneo das águas, quer em caso de intempéries quer no tocante à necessidade de contínua humidificação da estacaria em que assenta a Baixa pombalina. O arquiteto Ribeiro Telles não foi ouvido, as obras continuaram a fazer-se da mesma forma e o resultado aí está, à vista de todos. Sem culpados, claro. Era o que faltava!

quinta-feira, outubro 28, 2010

Tarek Aziz

Reconheço que pode haver algo de "corporativo" na forte impressão que me faz a condenação à morte de Tarek Aziz, o antigo chefe da diplomacia de Saddam Hussein. Para além de ser, por princípio e como é óbvio, adversário feroz da pena de morte, em qualquer circunstância.

Aziz foi, durante muitos meses, uma das caras mais "apresentáveis" da ditadura iraquiana. Circulava nos meios diplomáticos, jogava todas as manobras dilatórias possíveis face às pressões da comunidade internacional, e assegurava, perante a incredulidade de muitos, que o Iraque não tinha armas de destruição maciça. E não tinha, como se veio a provar... 

Não sei se Aziz tem todas as responsabilidade que se lhe assacam. Algumas terá. Mas nenhuma delas justifica que venha a passar por essa prova de medievalismo judicial que é a forca.

A União Europeia vai inaugurar, daqui a um mês, com pompa, circunstância e ambição o seu Serviço Europeu de Ação Externa. Sobre ele falaremos em breve. Gostava de dizer que seria um gesto de grande dignidade - e de mostra clara de princípios - se a nova cúpula diplomática bruxelense fosse capaz de obter autoridade para dizer aos iraquianos, alto e bom som, que a Europa irá retirar todas as necessárias consequências, no relacionamento bilateral com Bagdad, se o seu regime prosseguir com bárbaras execuções, nesta lenta "révanche" política em que se está a transformar o processo condenatório dos antigos líderes do país.  Muitos europeus morreram em solo iraquiano para ajudar a implantar o seu atual regime. Alguma autoridade a Europa tem para se pronunciar sobre as práticas bárbaras que o mesmo regime leva a cabo.

Vale a pena recordar que, se acaso se tratasse de um pobre país da Convenção de Cotonou e não do Iraque, a "voz grossa" de Bruxelas há muito que já estaria no ar. Mas como o Iraque atual é, para a Europa, fonte de petróleo e negócios, o caso muda de figura. Além disso, os eurodiplomatas sabem que Bagdad tem, na matéria em causa, as "costas quentes" de Washington, onde a pena de morte se mantém, sem vergonha nem escândalo, apenas sob a tibieza de umas burocráticas declarações bruxelenses em "caixa baixa".

Um diplomata é a última pessoa que deve mostrar-se surpreendido pelo exercício da realpolitik, eu sei! Mas, às vezes, também devemos poder exprimir o nosso direito à indignação. Ele aqui fica.

Periferia?

Entrar numa tabacaria em Vila Real, antes de almoço, e poder comprar o "Le Monde" com data "Jeudi 28 octobre 2010" (sim, eu sei que o "Monde" sai na véspera, a meio do dia, com a data do dia seguinte, mas mesmo assim...) é a prova provada de que a periferia já não é o que era.

Sem nostalgia (antes pelo contrário...), recordo-me dos tempos - final dos anos 60 e durante os anos 70 - em que disputávamos, da parte da tarde, os muito escassos "Diário de Lisboa" da véspera, que eram destinados à venda na cidade.  Os mais atentos sentávamo-nos então no café "Pompeia", de olho na tabacaria do "Bragança", logo em frente, à espera de ouvir o barulho da motocicleta do Fernando "Choco", em cuja caixa traseira chegavam os rolos com os "Lisboas", trazidos da estação. O Neves da "Pompeia" ficava furibundo quando via abalar, de sopetão, esses clientes oportunistas, motivados apenas pela geografia citadina, em direção à pastelaria "Gomes", onde um mais generoso consumo, a leitura e a conversa de tertúlia dos universitários em férias iria prosseguir.

Alguns anos antes, muitos de nós tínhamos um ritual em tudo idêntico. Só que a moto era do Albertino "dos jornais", o local de espera eram as escadas do Banco de Portugal,  no "Cabo da Bila*", a publicação por que se ansiava era, uma vez por semana, o "Cavaleiro Andante". Outras idades e outras letras.

*Com "b", claro

quarta-feira, outubro 27, 2010

Portugal em obras

Uma rua essencial para o acesso da cidade de Vila Real ao seu hospital encontra-se bloqueada, desde há semanas, por obras de ligação da rede de águas.

Durante vários dias, nenhum operário apareceu nessas obras. Seria uma greve? Uma crise laboral? Não, parece que o empreiteiro tinha levado os trabalhadores para as suas vindimas...

País bizarro, este!

Inquietação

Das caras e dos comentários das pessoas que vou encontrando ao longo do dia ressalta um sentimento difuso de inquietação. A crise política, que se soma à crise económico-financeira, tem agora uma expressão mais concreta. O dia de hoje está a ser visto, por muitos, como uma data que inaugura uma viagem para o desconhecido, para um mundo onde já nada é seguro, a não ser as dificuldades da vida - que ninguém, contudo, sabe ou pode medir em toda a sua plenitude. Para quem tem compromissos, para quem tem pessoas a cargo, para quem não tem emprego ou o vê já precário, para quem estuda não se sabe bem para fazer o quê  - estes dias devem ser angustiantes. Não se diga que a crise é para todos, porque os seus efeitos são assimétricos, pelo que diferentes são os graus de inquietação de quem a sente. E de quem a comenta, claro.

Pode parecer um sentimento estapafúrdio, mas acho que, se todas as coisas más têm um lado bom, talvez o dia de hoje tenha a virtualidade de levar muitos portugueses a refletirem um pouco mais no país, deixando, por uma vez, a ideia de que essas coisas da política são para os outros, de que há um "jogo" em S. Bento e em Belém para o qual somos convocados, de tempos a tempos, para dar uma opinião cruzada num papel branco.

E, contudo, somos um país feliz - e alguns leitores devem achar isto uma heresia. Somos felizes por sermos uma sociedade democrática, com instituições que, por mais de uma vez, deram provas de serem capazes de enquadrar fortes tensões económico-sociais. Somos felizes porque temos liberdade, porque podemos exprimir as nossas opiniões, porque temos o direito de escolher quem queremos que nos governe. Somos felizes porque, não obstante todas as suas inesperadas limitações, estamos inseridos na União Europeia, que nos trouxe muita prosperidade e nos fornece ainda algumas das chaves essenciais para abrir as portas do nosso futuro.

A inquietação e o desespero não são bons conselheiros. Pelo contrário: são o pasto dos demagogos e dos paladinos do finis patriae, dos promotores das soluções que radicam fora do sistema, como se um salto para o desconhecido nos pudesse trazer qualquer súbita panaceia salvadora.

Os tempos estão tensos, as pessoas tendem a radicalizar posições, os antagonismos podem aumentar. É nestas alturas que temos de ser mais vigilantes sobre nós mesmos, em que devemos parar para pensar, para decidir, para optar. É nos tempos difíceis que se mede a serenidade de um país, a sua maturidade como nação. Temos quase nove séculos, passámos por crises muito mais graves e, com esforço, fomos capazes de as superar. Este é talvez um dos momentos em que se pode aplicar a frase de John Kennedy: "não perguntes o que o teu país pode fazer por ti, pergunta o que tu podes fazer pelo teu país".

Isabel Meyrelles

Há quase um ano, tive o prazer de entregar uma condecoração a Isabel Meyrelles, uma personalidade da cultura, ligada ao movimento surrealista português, há muito residente em Paris.

Em Lisboa, a exposição "Cadavre-Trop-Exquis", na Perve Galeria - na Rua das Escolas Gerais, 17/23, até ao final deste mês - apresenta trabalhos de Isabel Mayrelles, dessa grande figura do Surrealismo português que é Cruzeiro Seixas (e de quem não sou parente) e de Benjamin Marques, outro artista português também residente em Paris. 

O jornal "Público" traz hoje uma interessante peça sobre Isabel Meyrelles que pode ser lida aqui.

O nosso jornalismo

Há dias em que não há pachorra, desculpem lá.

Portugal sobe de 35º para 32º país em matéria de transparência em corrupção. O título? "Portugal em 32ª posição entre 178 países".

No mesmo jornal, no mesmo dia, a notícia de que Portugal baixou de 25º para 26º no índice de prosperidade. O título? "Portugal desce para o 26º lugar no índice de prosperidade".

Como se chama a isto, em termos de decência deontológica? São jornalistas quem escreve este género de textos? O SNI era mais sofisticado...

terça-feira, outubro 26, 2010

José Cardoso Pires

Conheci pessoalmente José Cardoso Pires no final dos anos 60, em noites em casa do Carlos Eurico da Costa. Tinha-o lido bastante, mas desconhecia o conversador delicioso que ele era, com um humor cáustico e uma patente frontalidade, arredondada por inesperadas ternuras por coisas comuns. Durante muito tempo, via-o apenas a espaços, em momentos ocasionais. E continuava a lê-lo, claro.

Bastantes anos mais tarde, voltámos a encontrar-nos, já com alguma regularidade, na tertúlia do "Procópio", onde se conserva um grande retrato seu, como se deve a quem nos faz falta. A propósito do chafariz à entrada, José Cardoso Pires escreveu, um dia, esta pérola: "Um chafariz à porta de um bar é cá uma saudação que enternece o maior malvado".

José Cardoso Pires morreu, precisamente, há 12 anos. A melhor homenagem que lhe podemos prestar é lê-lo. Foi um dos grandes escritores da língua portuguesa e um homem que sabia o que queria da vida e o que queria para a vida de nós todos. 

Língua portuguesa

Termina hoje, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, um encontro internacional realizado sob a égide da União Latina, sobre o lema "Língua portuguesa e culturas lusófonas num universo globalizado". Uma excelente iniciativa, com participações muito interessantes.

Ontem, tive o privilégio de acompanhar os professores Eduardo Lourenço, Hélder Macedo e Onésimo Teotónio de Almeida num debate sobre Diáspora e Emigração.

Para quem se possa interessar, deixo os tópicos da minha intervenção:
  • Um leigo num painel de académicos
  • O português na globalização linguística. Riscos e oportunidades
  • A importância de não perder tempo na institucionalização multilateral da língua
  • CPLP. Ação desenvolvida nas instituições internacionais
  • Promoção cultural lusófona - uma necessidade. Trabalhar mais o conceito de literaturas de expressão portuguesa
  • Ultrapassar a querela do Acordo Ortográfico
  • Língua, cultura e Comunidades na diplomacia portuguesa
  • Políticas para as Comunidades: do complexo de culpa ao seguidismo imobilista?
  • Política da língua nas Comunidades: coragem para não fugir ao debate "língua materna"/"língua estrangeira"
  • Situação do português em França. Números. Esforço português. Necessidade de avaliação rigorosa da qualidade do ensino ministrado. Acompanhamento pedagógico deficiente. Reavaliação urgente
  • Vitalidade das "secções internacionais" de português nos liceus franceses
  • Ensino superior de português em França. Instabilidade. Desigualdade de situações. A batalha "semântica" pelo reconhecimento da identidade do ensino do português
  • Edição de literaturas de expressão portuguesa em França. Notas positivas
  • Gulbenkian e Instituto Camões em Paris: o "milagre" da cooperação lusa
  • Nota final: necessidade de melhor trabalho entre Embaixadas CPLP

Quando?

O anúncio dos cortes orçamentais trouxe-me à memória a reação de uma pessoa conhecida, há já uns bons anos, quando o governo que ele então apoiava (outros, na busca de procurada ambiguidade, diziam então "that I support"...) decidiu impor alguma austeridade:

- Já estou a começar a ficar farto disto! Quando são os "nossos" que estão no poder, vêm-nos dizer que temos de apertar o cinto; quando chegam os "outros", somos logo os primeiros a sofrer. Mas, afinal, será que algum dia "isto" vai correr bem para nós?

Não lhes digo quem estava no poder, ao tempo dessa frase.

Bocas

Alinhavando tópicos para uma intervenção na Gulbenkian, fui ontem almoçar numa ignota tasquinha próxima (se tivesse ido ao "Polícia", à "Gôndola", ao "Lacerda" ou ao "De Castro Elias," apareceriam, pela certa, alguns conhecidos e não conseguiria concentrar-me).

De saída, ouvi um cliente perguntar para o outro:

- E vocês, vão aderir à greve geral?

A resposta foi "portuguesmente" lapidar:

- Se for geral, lá terá que ser...

Mais pela similitude do ritmo discursivo do que por qualquer outra razão, veio-me à memória uma clássica, mas "benévola", graça anti-comunista dos anos 90. Nela, um cidadão pergunta para outro:

- Foste à última reunião do Comité Central?

- Não, mas se soubesse que era a última tinha ido...

Facebook

Hoje, acordei "no" Facebook. Sem que nada tivesse feito para tal, sem nunca me ter passado pela cabeça entrar na "rede social", alguém me "colocou" no Facebook, com fotografia (retirada da Wikipedia e tudo).

E, logo, alguns conhecidos, simpaticamente, já se "ligaram" à minha página... 

Alguém me pode dizer como conseguir "desarriscar-me" (como se diz no "argot" de Vila Real)?

segunda-feira, outubro 25, 2010

Pelé

Quando fui viver para o Brasil, em 2005, levava comigo o projeto de conhecer três  figuras - Pelé, Oscar Niemeyer e Chico Buarque. Também queria conhecer Lula, mas "that would come with the job".

Conheci e falei bastante com Niemeyer. Não conheci Chico Buarque, embora, de facto, nunca me tivesse esforçado muito para isso. Mas conheci Pelé, uma das figuras que, desde sempre, mais me fascinaram no mundo do futebol - com Beckenbauer, Cruyff, Platini e Di Stefano. 

Falei com ele pouco tempo, no intervalo de um famigerado Brasil-Portugal, onde uma seleção desenhada pelo senhor Queirós foi batida por uns humilhantes 6-2. 

Pelé acaba de fazer 70 anos. Nunca pensei que, depois daquela noite em Brasília, se voltasse a lembrar de mim. Mas lembrou. Semanas mais tarde, num restaurante de Nova Iorque, o meu sucessor viu Pelé e decidiu apresentar-se, revelando que seria o novo embaixador português no Brasil, para onde partiria dentro em pouco. Pelé foi simpático e, na conversa, perguntou-lhe: "vai substituir aquele embaixador de cabelos brancos, que eu conheci, muito triste!, em Brasília, na noite em que Portugal perdeu por 6-2 conosco?". O meu colega confirmou. Eu estava, de facto, bastante triste e isso não deve ter escapado a Pelé. O que ele não sabia é que tê-lo conhecido terá sido a minha única alegria daquela noite.

domingo, outubro 24, 2010

Estupidez

Há dias, num debate público, alguém disse: "Se a estupidez pagasse imposto, éramos um país rico".

Não me contive e lancei para o microfone: "Lá chegaremos! Mas, nesta conjuntura, convém não dar novas ideias..."

sábado, outubro 23, 2010

Moratinos

Estávamos num jantar de trabalho, no Luxemburgo, no fim do primeiro dia de um Conselho de ministros Assuntos Gerais da União Europeia, em 1996.

Abel Matutes, ministro espanhol de "Exteriores", revelou-me que a Espanha tinha um candidato para o importante lugar que o Conselho Europeu iria criar, dentro de dois dias, de enviado especial da UE para o Médio Oriente. Tratava-se de garantir à Europa uma maior visibilidade política no processo de paz, à altura do apoio que a ele já prestava no domínio económico. Matutes hesitava, contudo, em avançar, desde já, com o seu nome, porque tinha indicações de que os britânicos se lhe oporiam, pelo interesse que se dizia poderem ter no cargo. Porém, não tendo aparecido outros candidatos, a imediata colocação em liça de um nome colocaria a Espanha na dianteira, com todos os eventuais futuros nomes já a surgir como seus "challengers". Estas eram as razões que fundamentavam a hesitação.

Matutes explicou-me também que a figura espanhola pensada para o cargo era o seu recém-nomeado embaixador em Tel-Aviv, Miguel Ángel Moratinos. Perguntou-me se acaso eu poderia vir a obter o apoio de Lisboa para o candidato espanhol. Expliquei-lhe que não precisava de consultar Lisboa e ele que podia contar, a 100% e desde logo, com o pleno apoio do governo português. (Esta é, na prática, uma regra não escrita nas relações luso-espanholas contemporâneas: apoiamos mutuamente os nossos candidatos, a menos que tenhamos interesses próprios a salvaguardar ou compromissos com terceiros a respeitar).

Animado com a minha reação, e após discretas aproximações positivas a mais dois colegas, Matutes acabou por lançar para a mesa a proposta do nome de Moratinos. Como era de esperar, o britânico David Davies, "minister for Europe", pediu mais tempo para refletir. Para grande satisfação de Matutes, fui o primeiro a "sair à carga", argumentando que o desenvolvimento rápido da situação na região impunha que a Europa mostrasse, de imediato, uma "cara" no processo de paz que tomava então formas crescentemente positivas e que Portugal propunha formalmente que, daquele jantar, saísse já uma aprovação "de princípio" do nome espanhol (que elogiei sem sequer conhecer...). Por uma daquelas dinâmicas que, às vezes, ocorre neste tipo de encontros, e um tanto pelo efeito surpresa provocado pela proposta de Matutes, acabou por gerar-se um sentimento alargado de apoio ao candidato espanhol. O nome de Moratinos foi anunciado formalmente, logo nessa noite, como a proposta unânime dos chefes da diplomacia ao Conselho Europeu (isto é, aos primeiros-ministros). David Davies, à saída do jantar, estava agastado comigo e com a "pressão ibérica" que eu tinha ajudado a transformar em decisão...

Miguel Ángel ("Curro", para os amigos) Moratinos permaneceu no cargo de enviado especial da UE para o Médio Oriente de 1996 a 2003, tendo sempre mantido conosco um excelente relacionamento, nomeadamente durante a nossa presidência da UE, em 2000. Com um trato pessoal de grande afabilidade, que esconde uma forte determinação, Moratinos ajudou a credibilizar a voz europeia num processo onde, por uma culpa que não é sua, a Europa tem sempre e apenas o "óscar" para o "melhor ator secundário".

(Para a "petite histoire", posso revelar que, num jantar idêntico ao de 1996, que teve lugar na Grécia em Junho de 2003, os chefes da diplomacia europeia abordaram a questão da substituição de Moratinos, o qual pretendia abandonar o cargo de representante especial da UE para o Médio Oriente. Um único nome foi então discutido e a aprovação dos ministros em torno dele ficou praticamente garantida. O nome era... o meu! Porém, o governo português de então não havia tido nem o cuidado nem a elegância de me consultar previamente, tendo optado por "testar" a aceitabilidade do meu nome sem querer saber da minha eventual disponibilidade, contando que eu aceitaria o facto consumado. Por essa e por outras razões, recusei a possibilidade de indigitação. O Conselho Europeu ficou então sem um candidato que nunca o fora e Moratinos acabou, muito contra a sua vontade, por ter de prolongar-se por mais alguns meses nas funções. Esta historieta surgiu em vária imprensa da época, como, por exemplo, aqui. Na altura, sobre o assunto, escrevi isto.)

Moratinos seria chamado, anos mais tarde, a dirigir a diplomacia do seu país. O seu relacionamento com Portugal manteve-se excelente. Saiu anteontem do governo espanhol, numa remodelação surpresa efetuada pelo presidente Zapatero. 

A diplomacia espanhola e a diplomacia portuguesa têm, nos dias que correm,  fortes pontos de contacto e de convergência. Isso deve-se muito a homens como "Curro" Moratinos.

República

Bela (e imperdível, para quem puder) exposição sobre a (primeira) República, a que está na Cordoaria de Lisboa. 

Rigorosa e historicamente não demagógica, como seria de esperar de um académico do nível de Luis Farinha - que há meses tive o gosto de ter, como meu convidado, em Paris, para o colóquio realizado na Embaixada sobre a "Liga de Paris". E com um grafismo de grande força e elegância, na tradição a que o Henrique Cayatte nos habituou, desde há muito.

Três notas críticas, uma de fundo, duas de forma.

A exposição assenta, basicamente, nos eventos entre 1910 e 1926, isto é, sobre 16 anos de uma República que tem mais 84 de existência. Pena é que a mostra passe "a correr" sobre todo o cultivo da ideia republicana que a coragem de alguns fez sobreviver durante toda a ditadura salazaro-marcelista. E que o 25 de Abril, e o fantástico salto de modernidade e de aculturação democrática a ele subsequente, não sejam sublinhados como um orgulhoso património da nossa República.

Agora, as reticências de forma.

Presumo que 90% dos visitantes que chegam à Cordoaria se dirigem à sua entrada habitual. Hoje, eu e a totalidade das pessoas que queriam visitar a exposição lá fomos "ao engano", pela falta de indicação de que o início da mostra é, afinal, no torreão norte.

Posso ter sido iludido pela amostragem, mas a qualidade profissional das apresentadoras que explicam a exposição aos grupos pareceu-me fraca, com um discurso muito "papagueado". Uma delas relatava - aliás, perante o gramatical silêncio do auditório - que "houveram muitas revoltas" em certo período. Eu, que ia de passagem, não resisti e perguntei alto: "houveram?". E a menina, convicta de que eu estava a pôr em causa os factos, lá confirmou: "houveram, houveram, sim senhor!". Desisti...

Dito isto, acho importantíssimo que, quem puder, visite esta magnífica exposição, infelizmente só disponível até ao início de Dezembro. Despachem-se!

sexta-feira, outubro 22, 2010

América Latina

Ontem, ao intervir na Fundação Gulbenkian, a convite da Casa da América Latina e do Instituto Diplomático, dando uma visão portuguesa sobre aquele sub-continente americano, recordei uma obra histórica de Marcel Niedergang, um livro que li no final dos anos 60: "Les vingt Amériques Latines". 

Ao ouvir vários dos intervenientes, dei-me conta de como pode ser redutor o conceito "América Latina", da imensa variedade de realidades que ele esconde, sob a capa federadora da língua e de alguma cultura comum.

Organizei o que disse na minha intervenção em tópicos, a que talvez algum leitor pode achar interesse:

  • Há uma política de Portugal para a AL?
  • O Brasil. A América hispânica. As "Américas Latinas". A retórica e a realidade.
  • O tempo das ditaduras (na Europa e na AL). Portugal: uma política bilateral errática e de oportunidade. O Brasil e a AL no esforço internacional de defesa colonial de Portugal. Migrações e culturas.
  • A integração europeia e o início de um novo "olhar europeu" sobre a AL. Portugal e a Espanha na política exterior europeia. Papel da França e Itália.
  • Integração latino e sul-americana. Limites, frustrações e dúvidas.
  • Crescente comunidade de valores euro-latinoamericana. Ação comum nos fóruns multilaterais. Problemas: Cuba e outros. Haverá um agravamento futuro das divergências? Desenvolvimento e comércio. Protecionismo. A conflitualidade intra-AL como possível problema.
  • Processo íbero-americano: as dificuldades e os equívocos. O "gigantismo" do Brasil. A "tutela" espanhola. Os limites realistas do exercício. Portugal e Espanha no exercício.
  • O Brasil e a sua vizinhança hispânica. Bom gigante ou "big brother"? Conceito de "América Latina" não existe para o Brasil: só "América do Sul".
  • Brasil e EUA: manter a "América do Norte"...a Norte - questões Colômbia, Amazónia e IV Frota.
  • Para fazer em comum: reforma da ONU? Agenda do Milénio? Multilateralismo comercial e ambiental? Defesa e segurança? Atlântico Sul, droga e terrorismo numa possível agenda renovada.
  • Portugal e a AL: sempre velhos amigos mas não amigos velhos.

Taxi

Foi mais para ser simpático do que por qualquer outra razão que perguntei:

- Há muitas senhoras a dirigir táxis, cá em Lisboa?

O seco "algumas", saído da boca da motorista, logo me fez ver que estávamos longe de um ambiente distendido, passível da sociologia de pacotilha que o tema poderia, despretenciosamente, ajudar a cultivar, nos minutos da viagem.

Logo na primeira rotunda, tudo se confirmou:

- Saiu-te a carta na farinha Amparo, ó palerma! - gritou, abrindo o vidro, para um outro automobilista.

- Cada vez há mais bestas por aí - teve a confidência de me esclarecer, não fosse eu não ter percebido.

Afundei-me no banco, por detrás do meu "Notícias", lamentando não estar a ler outra literatura mais consonante com a matriz da minha condutora, como "O Crime" ou quejandos. Estou certo que isso trar-me-ia outro nível potencial de cumplicidade. 

Até a feminilidade é afetada pela crise. Ou será só a educação?

"Ágora"

Um convite da Junta de Extremadura levou-me, há dias, a Espanha, onde, de 18 a 24 de outubro, tem lugar a 10ª edição do "Ágora - el debate peninsular". Devo dizer que foi para mim uma agradável surpresa confrontar-me com este magnífico projeto, que mobiliza algumas centenas de pessoas, sob a direção competente de Ignácio Sanchez Amor.

Fiz parte de uma mesa sob o lema "Geometria Variable - los nacionalismos en la península ibérica", moderada pelo professor de Ciência Política da universidade de Madrid, Carlos Taibo, por Maria do Carmo Dalmau, ligada às questões da Catalunha, por Xosé Manuel Beiras, fundador do Bloque Nacionalista Gallego e pelo próprio diretor do Ágora, Sanchez Amor. 

Foi um excelente e muito vivo debate, de que deixo apenas uns escassos tópicos da minha intervenção inicial:
  • a Espanha no imaginário diplomático português. Os "demónios ibéricos" da História. Ditadura e democracia.
  • os "três D" da antiga relação luso-espanhola: desconfiança, desconhecimento, dissimetria.
  • Espanha e Portugal: as realidades por detrás da retórica.
  • dissídios do passado recente: os rios, as pescas, os comandos NATO, os bancos, etc.
  • problemas do presente: o proteccionismo espanhol, PT/Telefónica.
  • a relevância do fenómeno nacionalista espanhol na atual relação bilateral Lisboa-Madrid.
  • cooperação transfonteiriça: dois Estados e várias nações. Soberanias e cooperação. Realismo e respeito.
Confesso que foi um grande prazer participar neste exercício. Por lá estiveram muitos portugueses, desde Jaime Nogueira Pinto a Joaquim Pina Moura, de Manuela Ferreira Leite a Ricardo Araújo Pereira (esse mesmo! falando "de que se ríen los vecinos?").

Como me dizia, depois de uma saudável e solta jantarada, um (novo) amigo, Josep Sanchéz Cervelló, este tipo de encontros fazem mais pela amizade luso-espanhola que anos de discursos oficiais.

Saiba mais sobre Ágora aqui.

quinta-feira, outubro 21, 2010

A cadeira

A noite já ia longa. O embaixador português esmerara-se no acolhimento dado ao seu ministro, visitante daquela capital onde, há já alguns anos, exercia as suas funções, nesse que era o seu último posto  diplomático, depois de um percurso profissional interessante. Obstinado e frontal, o diplomata tinha consciência de que não projetava, entre os seus pares, uma imagem consensual. O seu caráter truculento grangeara-lhe vários inimigos e apenas uma escassa mão-cheia de amigos. Mas isso, dizia-se, era-lhe irrelevante. Olhava para as reticências com que os outros o viam como a expressão da fragilidade alheia, como um fator desafiante para a sua conhecida postura na Carreira.

Pessoalmente, não tinha do homem uma ideia precisa. Nunca trabalhara com ele, nem nos havíamos cruzado profissionalmente. Era a primeira vez que com ele convivia. O facto de ser uma pessoa frontal, que se "borrifava" para os poderes, era um ponto positivo. Falado, contudo, revelara-se um insuportável pedante. Em suma e em saldo: era-me indiferente.

Essa não parecia ser, contudo, a atitude de um diretor-geral que fazia parte da delegação que acompanhava o ministro. Homem despretencioso e relativamente são, nele pressenti, desde cedo, uma acrimónia contra o embaixador, talvez fruto de histórias antigas, em que a nossa profissão é fértil. Se havia uma "corrente" que passava entre ambos, ela era de "alta tensão"...

O jantar na residência do embaixador fora normal. Acabado o respasto, recolhemo-nos à adjacente sala de estar. O ministro escolheu uma estratégica poltrona. Eu, acompanhado pelo diretor-geral e por um jovem colaborador do embaixador, sentámo-nos num sofá, degustando cafés e as aguardentes de função. Outros se espalhavam pela sala. O embaixador, que sofria do ouvido, alapou numa cadeira próxima do ministro, cuja atenção mobilizou, alimentando conversas nas quais - acontece-nos a todos! - procurava mostrar o seu indisputável domínio da situação política local, que dissecava, aliás, com visível inteligência.

O tempo passou e a conversa fluiu. A certo passo, vi o jovem colaborador do embaixador manifestar o que me pareceu ser alguma inquietude, por uma coreografia movediça do corpo. Em tom baixo, comentou, para mim e para o diretor-geral: "É um perigo! A cadeira em que o meu embaixador está sentado tem uma perna fortemente inclinada. A qualquer momento, pode cair". O jovem estava, sinceramente, preocupado com a sorte potencial do seu chefe.

Num segundo, e tal como o jovem colaborador do embaixador, também eu visualizei o risco: de facto, se a cadeira cedesse, ele cairia desamparado e tudo poderia acontecer, até um grave traumatismo craniano, fruto do embate com a tijoleira da sala.

O jovem secretário, na indecisão provocada pela sua dependência hierárquica, hesitava em interromper o seu chefe, talvez temeroso que um seu alerta pudesse ser interpretado como bajulador. Para mobilizar a sua própria coragem, consultou, em tom baixo, o diretor-geral, que estava a seu lado: "Acha que eu diga ao embaixador que a cadeira em que ele está sentado é perigosa, que uma das pernas pode ceder e conduzir a um acidente grave?"

O diretor-geral olhou-o de viés, sacou uma baforada mais do seu cachimbo e, em tom igualmente com poucos decibéis, aconselhou: "Se você for culpado pelo facto desse estupor não se "esbardalhar" com as fuças no chão, a Carreira não lhe perdoará nunca..."

Resisti a dar uma gargalhada. O secretário de embaixada percebeu a mensagem, manteve-se calado, porque a opinião de um diretor-geral seria indispensável à sua futura promoção e à definição do seu próximo posto. E, vá lá!, o seu embaixador não se "esbardalhou", até ao fim da noite. Aliás, há semanas, vi-o, reformado, numa pastelaria do Estoril, com o  seu eterno e irónico sorriso, prova da qualidade das cadeiras lá de casa.

Uma questão de justiça

Um esforçado colega de serviço público, de seu nome António Martins, expoente sindical de um "órgão de soberania", por via da profissão que, nomeadamente, decretou, há pouco, a imaculada pureza de intenções do senhor Domingos Névoa, um estimável cidadão de Braga vilmente acusado pelos irmãos Sá Fernandes, houve por bem afirmar que as medidas de restrição salarial, que injustamente acabaram por ferir a sua nobre casta, mais não configuram do que uma objetiva intenção de coartar a eficácia da máquina judicial, a qual tem mobilizado, com uma coerência que o país testemunha com diária admiração, sangue, suor, férias especiais e ajudas de muito custo.

Que as mãos lhe não doam nunca, companheiro Martins! 

quarta-feira, outubro 20, 2010

Obituários

Esta história passou-se em Inglaterra, claro está.

Uma das mais antigas tradições da boa imprensa britânica é a publicação de obituários, essas biografias mais ou menos sintéticas, quase sempre benevolentes, de figuras que partem desta vida. Alguns grandes jornais britânicos (o "Financial Times" não o faz), do "The Times" ao "The Independent", do "The Guardian" ao "The Daily Telegraph", trazem diariamente notas sobre personalidades falecidas, algumas das quais são, por vezes, peças soberbas de bela escrita. Certos jornais chegam a editar em livro, no final do ano, alguns desses textos. Já cheguei à triste conclusão de que é por ocasião da morte das pessoas que acabo por aprender mais sobre a sua vida.

Um dia, uma figura britânica de menor destaque, mas com suficiente importância para poder merecer uma pequena nota necrológica, foi surpreendida pela embaraçada informação de que um jornal tinha inserido, nesse dia, o seu obituário. A família começara já a receber condolências... Uma troca de nomes terá estado na origem desse lamentável erro. 

O nosso homem, que se encontrava longe de Londres, no campo, sem jornais acessíveis, mal soube do sucedido ligou a um amigo na capital, alguém que o puderia ajudar a desmentir imediatamente o facto, junto dos círculos sociais conhecidos. Mas eram outros os tempos tecnológicos. A cobertura telefónica na zona rural onde vivia tinha grandes fragilidades, havia imensos os ruídos na linha, o som geral das comunicações interurbanas era muito débil. Depois de várias tentativas, o amigo londrino lá acabou por atender. O infeliz biografado, para se identificar, gritou, por entre a confusão das várias sonoridades que se projetavam na linha telefónica, o seu próprio nome. Do outro lado, houve uma pausa, por alguns segundos. Até que, finalmente, o amigo de Londres, numa entoação que soava a perplexa, perguntou: "where are you calling from?..." 

terça-feira, outubro 19, 2010

Os chatos da plateia

São temíveis! Raramente escolhem a primeira fila dos auditórios, embora isso aconteça com alguns mais vaidosos. Pela minha experiência, a terceira fila costuma ser o seu lugar de eleição, de preferência junto às coxias, por forma a facilmente poderem obter o microfone das mãos dos ajudantes volantes que circulam pela sala. Falo, naturalmente, dos chatos interventores, dos falsos perguntadores, sempre presentes em colóquios, palestras e conferências, que aproveitam o momento da abertura do debate à audiência para fazerem longas dissertações, para as quais ninguém os convidou.

Em Portugal, durante anos, pressentia-os, mal me sentava numa mesa, com um simples olhar pela sala. Conheci alguns de ginjeira, sabia que estavam à coca do momento oportuno, de dedo imediatamente esticado para pedirem o microfone (chegam a fazer sinal prévio aos ajudantes de sala, quando prevêem próximo o período de perguntas). Mas o seu objetivo quase nunca é colocar uma questão aos oradores ou, se o fazem, trata-se de um mero gesto formal, no fim de uma imensa exposição pessoal. Aliás, e pela minha experiência, o que é dito pelos interventores é-lhes praticamente indiferente. Trazem a lição estudada de casa, uma ideia fisgada, as mais das vezes embrulhada em fórmulas confusas, quase sempre com tonalidades radicais. A sua grande finalidade é intervir, opinar, dizer o que pensam, por mais indiferente que isso seja a quem foi ali para ouvir outros. Os mais hábeis, quando pressentem que o moderador da mesa se prepara para os interromper, têm duas técnicas: uma delas é citar, a meio da fala, ainda que obliquamente, um dos oradores oficiais, para dar a falsa perceção de que se encaminham para a formulação de uma pergunta; outra é recorrerem à vetusta figura do "só gostaria agora de acrescentar, para terminar..." ou coisa do género - o que lhe faz ganhar uns minutos mais.

Há dias, num cenário de um qualquer colóquio, ao ver atuar uma dessas personagens, lembrei-me que poderia ser interessante organizar uma sessão onde se pudesse colocar na mesa, como oradores, precisamente um grupo selecionado desses chatos  mais conhecidos, dando-lhe, finalmente, o palco que tanto procuram. A dificuldade residiria apenas em encontrar, para o debate, um tema que lhes fosse comum... E plateia para os aturar, claro.

segunda-feira, outubro 18, 2010

CCB

Fui daqueles que, ao tempo da sua construção, diabolizaram o Centro Cultural de Belém (CCB). Não só achava a obra uma megalomania tonta como desprezava a vontade de quantos haviam ousado estragar o equilíbrio dos Jerónimos com a proximidade "modernaça" de um mostrengo arquitetónico de duvidoso recorte neo-egípcio, que  iria impedir o "diálogo" sereno com a Torre de Belém. Além do mais, pensava eu, o CCB ia ser uma "catedral no deserto", condenada ao vazio e ao fracasso como projeto.

Enganei-me redondamente: o CCB tem uma dimensão não conflitual com a monumentalidade vizinha (100 metros de distância mais dos Jerónimos não teriam, porém, ficado mal) e constitui hoje um polo da maior importância na modernidade portuguesa. Os lisboetas "apropriaram-se" dele e afeiçoaram-se por completo a esta nova centralidade.

Às vezes, temos de ter a coragem - e a decência - de "dar o braço a torcer". Faço-o hoje, com gosto, a propósito do CCB.

Eduardo

Falar de alguém insuportavelmente ausente pode ser uma tortura. Não o foi - antes pelo contrário - a conversa que ontem o António Mega Ferreira organizou no Centro Cultural de Belém, sobre a figura e a obra de Eduardo Prado Coelho. Que bem que nos fez a todos recordar o Eduardo, ouvir contar as suas histórias, revisitar a lucidez impressionante das suas palavras! 

Alexandra Prado Coelho, Fernando Pinto do Amaral, Margarida Lage e Nuno Júdice evocaram escritos e deram notas pessoais sobre Eduardo Prado Coelho. Para as dezenas de presentes, amigos ou admiradores do Eduardo, foi muito bom rever alguns dos seus mais belos textos, cuja densidade o tempo e a distância parecem sublinhar ainda mais.

A Eduardo Prado Coelho, como aqui já disse noutras ocasiões, Portugal deve um sopro de modernidade e um choque cultural que talvez não tenhamos, até hoje, medido em pleno.

domingo, outubro 17, 2010

Azul

Não sei se é da idade, mas o azul do céu de Lisboa perturba-me cada vez mais. Pela positiva, claro. Hoje, Lisboa estava com um céu de um azul imbatível. Não sou muito dado a reflexões poético-emocionais sobre cores, mas tenho vindo a dar conta que frequentar o azul me faz imenso bem. E o azul é, para mim, definitivamente, a cor de Lisboa, sendo falsa a ideia fílmica da "cidade branca", que equivocou Tanner. Optar pelo azul é uma banalidade? Claro que é, mas cada vez acho mais que assumir a banalidade genuina é a mais saudável forma de snobeira.

E as outras cores? Também as há, claro. Gosto do verde por irracionalidade afetiva e do vermelho (não do encarnado) pelas razões da razão. Do amarelo, só aprecio os sorrisos de alguns e deixo o roxo pascal para o fígado dos colunistas e blogueiros da desgraça. E o resto para os restantes.

sábado, outubro 16, 2010

Artur Santos Silva

Há dias, numa conversa em Paris, uma amiga com fortes ligações ao nosso país disse-me, de forma apreciativa, que este blogue a tem ajudado a conhecer melhor Portugal e, mesmo, a "descobrir"  alguns portugueses. Fiquei satisfeito, porque esse é também um dos objetivos do que por aqui vou deixando.

Hoje, ao abrir o "Público", num avião da TAP, deparei com uma longa entrevista de Artur Santos Silva, presidente do BPI e da comissão para as comemorações do centenário da República. E lembrei-me que este é um nome que as pessoas ganhariam  muito em conhecer melhor. Para quem possa fazê-lo, recomendo a leitura daquele texto. As respostas são um manancial de bom-senso e de sentido cívico, sem deixarem, simultaneamente, de refletir um espírito lúcido e crítico. Dei por mim a pensar que Portugal se permite, com grande frequência, não utilizar, em funções determinantes para a condução ou orientação do país, algumas figuras cuja estatura seriam uma mais-valia para o serviço público. 

Artur Santos Silva passou apenas brevemente pela política, optou pelo usufruto da independência, prestigiou-se profissionalmente e criou uma instituição bancária de referência. Ao longo dos anos que levo da observação da vida do país, ele continua a ser uma das vozes que mais me têm marcado pela sua retidão e exemplaridade, pelas úteis lições de vida que nos transmite.

Oriundo de uma família liberal do Porto, é um homem formado num tempo e num ambiente em que a cultura e o respeito atravessavam a formação da juventude. Dessa rica vivência soube decantar uma forma de estar na vida da qual emana uma imensa serenidade. O meu pai, que daqui a dias teria a idade da nossa República, educou-me a respeitar figuras que qualificava como "pessoas de bem". Artur Santos Silva é uma delas.

Escrevo este post com muito à-vontade. Não sou íntimo de Artur Santos Silva. Vivemos em mundos diferentes, não temos laços políticos ou profissionais, conheço-o apenas por contactos esporádicos, embora feitos de cordialidade e, estou certo, de mútua estima. Devo confessar, porém, que criei uma sincera admiração por esta figura ética que - e aqui regresso ao início deste texto - o nosso país não terá aproveitado como devia. 

Digo-o a propósito da entrevista que hoje li e, claro, de muitas outras coisas que os tempos correntes me suscitam. Mas por aqui me fico.

Arras

Ontem, dei por muito bem empregue o longo tempo de viagem de automóvel, para uma deslocação de um dia completo a Arras, para contactar as autoridades locais, para falar de Portugal a cerca de 400 estudantes da Université d'Artois e para estar presente na inauguração da "Saison Portugaise", no "Le Quai de la Batterie".

No primeiro caso, foi muito interessante poder discutir, com uma audiência madura, a posição de Portugal perante as grandes questões internacionais, mas igualmente o futuro das línguas portuguesa e francesa à escala global, para além de um conjunto vasto de outros temas. Uma hora de palestra e outra de debate confirmaram-me a crescente curiosidade em torno da imagem de Portugal que se regista aqui em França.

Depois, foi revigorante ver como um atelier como "Le Quai de la Batterie", com o apoio da "Mairie" local, conseguiu trazer a Arras quatro excelente criadores artísticos da contemporaneidade portuguesa: Francisco Tropa, Maria Loura Estêvão, Isabel Baraona e Joana Travisco. Trata-se apenas da primeira parte de um extenso programa que se prolongará por 2011, no qual a cultura portuguesa será abordada em muitas dimensões - artes plásticas, fotografia, teatro, literatura, música, cinema, etc.

Portugal deve estar reconhecido a quem, no estrangeiro, se interessa pela sua cultura e se organiza de forma a, generosamente, a dar a conhecer. Foi essa uma das mensagens que deixei em Arras.

quinta-feira, outubro 14, 2010

Chile

A propósito do salvamento dos mineiros chilenos, alguém me dizia ontem, num jantar, que é muito bom para o mundo que haja uma história famosa que acabe bem.

De facto, fartos andamos nós de desgraças e tragédias, como alimento do nosso quotidiano mediático.

Reformas

Um dos fenómenos mais curiosos, no âmbito dos movimentos sociais que têm vindo a contestar a legislação para o alargamento da idade da reforma em França, foi o aparecimento, nesse contexto, dos estudantes liceais.

Independentemente das questões de fundo deste debate, confesso que não pude deixar de dar uma gargalhada ao ver uma jovem de 16 anos, inquirida sobre a razão pela qual aderia aos protestos, dizer na televisão: "eu, quando chegar aos 60 anos, quero ter o direito de não trabalhar mais!". 

Para alguém ainda longe de entrar no mercado de emprego, não está mal!

quarta-feira, outubro 13, 2010

Solana

Javier Solana é um amigo de Portugal. E, por coincidência, meu amigo pessoal. Ontem, o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Luis Amado, fez-lhe entrega da Grã-Cruz da Ordem de Cristo, uma alta condecoração portuguesa. Nada de mais merecido.

Solana teve um percurso brilhante, depois de uma juventude de ativismo político pela liberdade em Espanha. Ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país, secretário-geral da NATO e figura cimeira da Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia, em todos esses lugares soube afirmar uma atitude de grande equilíbrio, de sentido de compromisso, com uma simpatia e uma cordialidade que fizeram escola. Num mundo de "realpolitik", Javier Solana nunca esqueceu um sólido referencial de princípios em que assentou toda a sua ação.

Para Portugal, como referi, Solana foi sempre um amigo. Recordo-me, em especial, do modo colaborante como se articulou conosco durante a presidência da União Europeia em 2000, jogando "com as cartas em cima da mesa" e ajudando-nos, não raramente, a ultrapassar sérias dificuldades surgidas na tecitura das posições que nos competia desenhar no quadro da ação externa da União. 

No que me toca, devo-lhe gestos de grande simpatia, o maior dos quais foi um convite pessoal - que não pude aceitar - para ocupar um interessante lugar na estrutura de representação externa da União Europeia.

Un abrazo fuerte, Javier!

Alfredo Margarido (1928-2010)

O Daniel Ribeiro, correspondente do "Expresso" em Paris, acaba de dar-me conta da morte, ontem, em Lisboa, de Alfredo Margarido.

Margarido foi uma espécie de figura mítica para a minha geração. Oriundo das artes, viria a revelar-se como uma personalidade de recorte cultural eclético - da ficção à sociologia, da pintura à antropologia, da história das ideias às questões africanas. Viveu em vários lugares, que sempre marcaram o seu percurso intelectual. Paris foi, a partir de 1964, o seu "porto de abrigo". Aqui dirigiu os "Cadernos de Circunstância", uma revista policopiada, de edição irregular, que marcou um tempo importante nos meios portugueses no exilio em França (e de que,  por sorte, tenho todos os exemplares das muito raras edições originais, embora os seus textos tenham sido editados  em Portugal depois do 25 de abril, creio que pela "Afrontamento", não sei se em versão completa).

Presumo que datará da sua estada em S. Tomé, nos anos 50, o encontro com aquela que iria ser sua mulher, Manuela, uma figura muito interessante, também já falecida, de que já aqui falei um dia.

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