quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Marcello Mathias

A propósito de uma troca de comentários sobre os diplomatas e a escrita, suscitado pelo anterior post sobre Eça de Queirós, lembrei-me de anotar aqui hoje a figura de um meu predecessor neste posto, o embaixador Marcello Mathias (1903-1999).

Em 1973, surgiu nas livrarias de Lisboa um romance, editado pela Bertrand, com o título "Lusco Fusco", assinado por Pablo la Noche. A obra tinha uma real qualidade literária, apoiada numa escrita culta, um tanto nostálgica, mas com passagens de uma vivacidade inesperada. Foi bem acolhida pela crítica e viria a obter um prémio literário. Veio então a saber-se que o autor era, nem mais nem menos, o embaixador Marcello Mathias, o que suscitou grande curiosidade. Mais tarde, o romance veria a ser editado em França pela Robert Laffont, onde ganhou também um prémio literário, já com o nome verdadeiro do autor e tendo por título o pseudónimo utilizado na edição portuguesa: "Pablo la Nuit". Em Portugal, foi recentemente reeditado pela Quetzal.

Marcello Mathias é uma das grandes figuras da diplomacia do Estado Novo. Muito próximo de Salazar, seria por este convidado para o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros, função que exerceu entre duas estadas como embaixador em Paris, cidade onde permaneceu mais de duas décadas. É do maior interesse para a história contemporânea o livro que publicou sob o título "Correspondência Marcello Mathias/Salazar (1947/1968)". Num registo de curiosidade, por ele se fica também a saber algo mais do propalado romance sentimental entre o ditador e a jornalista francesa Christine Garnier.

Deve muito à habilidade e inteligência diplomática de Marcello Mathias o resultado favorável da  complexa negociação que permitiu a ida para Portugal do valiosíssimo espólio artístico que Calouste Gulbenkian possuía em Paris, uma tarefa para a qual contribuiu a sua grande influência junto do poder político francês da época. O facto muito excepcional de, como embaixador, ter recebido das autoridades francesas a Grand-Croix de la Légion d'Honneur diz muito. 

Há já uns bons anos, num jantar algures no mundo, ao lado de um dos seus filhos, o também meu predecessor em Paris, embaixador Leonardo Mathias (outro filho, Marcello Duarte Mathias, é um consagrado escritor e também embaixador), Manuela Margarido, à época representante diplomática de S. Tomé e Príncipe em Bruxelas, contou uma história curiosa. Com várias peripécias interessantes, Manuela - uma personalidade  notável, infelizmente já falecida - revelou que fora graças a uma intervenção de Marcello Mathias que, um dia, conseguira evitar ser presa pela PIDE.

À conversa, estavam presentes dois jovens governantes da mesma geração política, um português e outro estrangeiro. Ambos partilharam uma forte e quase jocosa surpresa pelo facto de um dignitário do anterior regime se ter recusado a ser cúmplice de uma arbitrariedade. Talvez porque não percebessem que, sendo embora um fiel "da situação" - como se designavam os apoiantes do regime -, Marcello Mathias era um homem que havia já tido um papel importante na libertação de Alain Oulman, o compositor francês de Amália, das cadeias do regime.

Na troca de palavras que se seguiu, para além de terem provavelmente entendido que as voltas da vida não são tão lineares como as lógicas das ideologias, só posso dizer que os dois governantes aprenderam algumas coisas sobre a dignidade, coisa que o exercício episódico do poder nem sempre ensina.

11 comentários:

Anónimo disse...

Sr. Embaixador, espero que nos represente a todos nesta homenagem: http://sic.sapo.pt/online/noticias/pais/Missa+em+Notre+Dame+de+Paris+pelas+vitimas+do+temporal+na+Madeira.htm

João Mello

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador
Belíssimo texto, este seu, de hoje!
Meu Pai conheceu Marcello Mathias -sorte que lhe mantiveram o nome escrito como na certidão, ao contrário do que aconteceu com esta sua admiradora - e cresci a ouvir falar desta família culta, inteligente e afectuosa. Qualidades cada vez mais raras num mundo dividido por ideologias e ao qual, como mostra o post, o Senhor é, felizmente, alheio!

Bento Freire disse...

Num comentário a um post anterior a que, penso, o senhor Embaixador se refere como tendo suscitado este, respondendo a um outro que falava, a despropósito, de uma pretensa mediocridade dos diplomatas portugueses, referi a dificuldade que teria em elaborar uma lista de diplomatas-escritores, tantos e tão bons ele são.
Entre os nomes que me vieram à memória imediatamente, estava "Pablo la Noche", embora romancista de um livro só.
Mas, e falando apenas de literatura pura e esquecendo ensaístas, historiadores, memorialista e críticos, citaria entre os contemporâneos Paulo Castilho, Álvaro Guerra, Marcello Mathis (o filho), o poeta Luís Filipe Castro Mendes; muitos outros, a quem peço desculpa por não mencionar, poderiam integrar esta lista.
A verdade que eu quis sublinhar é que, ao contrário do "cliché" que me parecia acolhido no tal comentário e que formatou a caricatura do diplomata com um nababo pretencioso e ocioso, incompetente e fátuo, os diplomatas portugueses (categoria que conheço bem) são funcionários dedicados e altamente competentes, com uma vida difícil recheada de peripécias nem sempre agradáveis, dotados de competências muito diversificadas, que se adaptam tão bem aos salões como aos teatros de guerra ou de catastrofe, cultos, interessados e activos. E, ALGUNS DELES, GRANDES ESCRITORES.

Anónimo disse...

Só falta mesmo, para a história ficar completa, contar o que disse nesse jantar aquele jovem (...), para gáudio de um outro muito mais famoso (...) e da "cenaça" das antigas a que tudo isso ia dando lugar naquelas longínquas paragens de M. F...
Pois é, só posso ser eu. Bem, poderia igualmente ser o nosso amigo (...) que um dia achacado de intensa crise burguesa pediu (...) uma sabática na luta revolucionária...que curiosamente lhe foi concedida. E a quem nessas mesmas paragens foi dito (...) a propósito do seu próximo futuro: "On va voir quem vai voar"!

JM Correia Pinto

(este comentário sofreu o “lápis azul” da censura, por parte do proprietário do blogue, porque, se as memórias valem a pena, algumas guerras não o valem)

Unknown disse...

Bem haja embaixador Francisco Seixas da Costa por prestar uma justa homenagem ao embaixador Marcello Mathias, figura excepcional da nossa diplomacia.
Admirar quem merece sê-lo é também uma prova de grandeza.

Paulo V. Andrade

Nuno Sotto Mayor Ferrao disse...

Pela importância histórica e relevância dos textos e das figuras republiquei este post sobre o Embaixador Marcello Mathias e o referente a Eça de Queiroz, no blogue do MIL ( www. mil-hafre.blogspot.com ), e à biografia que dele fez A. Campos Matos.

Não conhecendo directamente este autor, reconheço a sua valorosa obra em prol do Queirosianismo e conheço o valor do filho, Sérgio Campos Matos, que dele recebeu, certamente, uma excelente bagagem cultural que faz dele na actualidade um dos mais eminentes historiadores da Cultura, a par do Professor João Medina. Fazem muita falta estes grandes especialistas da História Cultural para nos fazerem esquecer a ausência dos grandes e pioneiros Mestres desta área da "História Nova"- António José Saraiva e Joel Serrão.

Agradeço a preocupação humanista e mecenática que o Embaixador Francisco Seixas da Costa tem patenteado com a divulgação da cultura histórica.

Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt

ARD disse...

Poia...

Nuno Sotto Mayor Ferrao disse...

???? Em bom português nos entendemos e com base num desejável espírito universal de compreensão e transparente humanismo... Pode haver divergências salutares, mas devemo-nos manter sempre numa curial e bem argumentada linguagem.

Pedindo desculpa pela minha ignorância, fui obrigado a consultar o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa para me esclarecer em relação ao último comentário - do Excelentíssimo Senhor Gil. Fiquei atónito com as hipóteses polissémicas que se me apresentavam...

Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Nuno Ferrão: Desconheço o que Gil quis significar, mas uma pista será o facto de ele ser um dos presentes na cena...

Nuno Sotto Mayor Ferrao disse...

Caríssimo Senhor Embaixador Francisco Seixas da Costa, agradeço a importante pista que me forneceu para tentar entender a enigmática mensagem do Excelentíssimo Senhor Gil.

Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão

José Aguiar disse...

Sr. Embaixador, bem haja por me
ter feito lembrar um grande senhor de Portugal como foi o Embaixador Marcello Mathias.Infelizmente não estamos já em condições de repetir o que ele escreveu em 1948 referindo-se ao nosso Governo de então: " Felizes os Governos que têm liberdade de conduzir-se com lógica".

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