Há dias, li uma notícia que dava conta de que o representante diplomático da União Europeia junto dos Estados Unidos tinha sido “downgraded” no protocolo de Washington: a partir dos últimos meses do ano passado deixou de ser convidado para certas cerimónias e o seu lugar na ordem protocolar foi “baixado” para o fundo da tabela, colocado em conjunto com algumas estruturas multilaterais de nível muito inferior.
Depois do Tratado de Lisboa, com o surgimento da “personalidade jurídica” internacional da União Europeia, os seus delegados, oriundos do Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE), passaram a ter o estatuto de chefes de missão diplomática, exatamente a par com os embaixadores dos Estados membros. A sua aceitação está hoje generalizada um pouco por todo o mundo e é vista como incontroversa, pelo que esta atitude americana foi interpretada como uma óbvia provocação, fruto da acrimónia existente na administração Trump face à UE.
A representação externa da União, que passou a congregar no SEAE quadros oriundos da Comissão Europeia, do Secretariado-Geral do Conselho e dos Estados membros, alterou significativamente o modelo de representação externa da União, anteriormente limitado às delegações técnicas da Comissão. Estas últimas tinham um estatuto algo híbrido, mas de nível diplomático formalmente baixo. Não obstante, em especial em Estados muito dependentes da ajuda comunitária (e não são tão poucos como isso), a importância local do delegado da Comissão, por quem passavam muitas das ajudas financeiras, era imensa. Não raramente, eram tratados como “embaixadores” e, embora não o sendo, nunca dei conta de que algum recusasse ser considerado como tal...
O que agora se passa. em Washington trouxe-me à memória um episódio, ocorrido em 2000. Eu tinha ido a Paris com António Guterres, no quadro da presidência portuguesa da UE, para um almoço de trabalho no Eliseu, com o presidente Jacques Chirac. Era amplamente sabido que, para Chirac, a Comissão Europeia era uma espécie de “bête noire” europeia: a sua autonomia, os seus poderes e a liberdade de atuação que crescentemente assumia nos assuntos comunitários eram algo a que uma certa França, sempre muito ciosa da sua soberania, e que Chirac bem representava, tinha horror.
Num certo momento da conversa, Chirac contou a Guterres que tinha ido um dia a um país africano e que, na “receiving line” das personalidades que o esperavam à saída do avião, ouviu a certa altura alguém apresentar-se: “Eu sou o embaixador da Europa”. Chirac, contou-nos o próprio, estacou, olhou o homem do alto do seu 1,90 m, e retorquiu-lhe, em voz bem forte e sonante, por forma a ser bem ouvido em redor: “Você não é embaixador de nada! Você é apenas um funcionário nosso”. O efeito sobre o delegado da Comissão deve ter sido grande, pelo seguinte comentário de Chirac: “Nem imaginas, António, como o homem ficou! Estava tão pálido que eu receei que desmaiasse...”
Quando li a notícia sobre a “bofetada” protocolar dada agora pelos americanos ao representante diplomático europeu, não consegui deixar de pensar que, se acaso o estado de saúde de Jacques Chirac o não impedisse hoje de estar a par do que quer que se passe pelo mundo, seguramente que sorriria imenso perante estes revés da política centralizada em Bruxelas, que nunca lhe agradou.