sábado, dezembro 09, 2017

Cidades da vida


Há cidades que tenho pena de nunca ter conhecido. “Tens pena? Por que não vais lá?”, imagino alguns amigos a perguntarem-me, achando-me simplesmente forreta, por não querer desembolsar o dinheiro de uma viagem. 

As coisas não são exatamente assim. Há tempos e idades para tudo. Andei muito à boleia, já dormi em maus hotéis. Mas nunca fui um viajante obsessivo. Dos pouco mais de 100 países em que estive (não visitei, “estive”: às vezes só conheci o aeroporto, o hotel e um ministério ou escritório), guardo boas recordações mas, igualmente, memórias menos simpáticas. Quase sempre esqueço estas últimas, porque a vida faz-se é de alegrias.

Em matéria de viagens, estou hoje incomparavelmente mais comodista do que aquilo que sempre fui (e sempre fui muito): gosto de viajar confortavelmente, não aprecio programas “radicais”, não dispenso um bom hotel, com ar condicionado e outras amenidades, nomeadamente gastronómicas. Por isso, os meus desejos em matéria de viagens articulam-se, nestes dias, com esse padrão.

Há cidades que, embora continuando a existir, deixaram de ser o que eram quando a minha imaginação me motivava para as visitar. Exemplos? Sana, no Iemen, Cabul, no Afeganistão, Cartum, no Sudão, ou Aleppo, na Síria. Faziam parte do meu roteiro potencial de viajante, mas a vida que hoje por lá se vive deixou de me entusiasmar. É claro que ainda são visitáveis, há excursões de risco que se podem tomar, mas que graça pode ter ir numa viatura blindada entre um aeroporto e um hotel muralhado, passar a correr, dentro de um carro, por uma rua onde podemos ser assaltados, onde uma bomba pode saltar, onde um “rocket” pode cair, a qualquer momento? É que uma cidade turística, para mim, são passeios a pé, são lojas, é olhar gente, entrar num café, numa casa de velharias, visitar, com calma, igrejas ou monumentos, experimentar (boa) comida local.

Assim, certas paragens, na minha curiosidade contemporânea, deixaram de ter a menor prioridade. Quis ir e nunca fui a Pristina, no Kosovo, nem a Anchorage, no Alasca, nem a Ulan Bator, na Mongólia. Noutros tempos, tive essas cidades no meu potencial mapa de visitas, embora, devo confessar, nunca tenha feito um grande esforço para concretizar esses sonhos. Outras, como Juba, no Sudão do Sul, ou Skopje, na Macedónia, sobre as quais tenho alguma curiosidade, não me animam a uma deslocação.

Durante muito tempo, tive intenções de ir a Alexandria, mas desisti, por ter pouca graça, ao que me dizem, salvo a nova biblioteca. Nada me mobiliza ir hoje a Hanói, que já fez parte da minha mitologia, tal como aconteceu com Katmandu, no Nepal. E admito, sem dificuldade, que já não tenho paciência para ir a Alice Springs, na Austrália, que achava “o máximo” visitar. Mas, estranhamente, e ali ao lado, confesso que ainda gostava de ir a Hobbart, na Tasmânia. E também a Novosibirsk, na Rússia. E a El Aaiun, no Saara Ocidental. E a Stepanakert, no Nagorno-Karabakh. E ainda sonho ir um dia ao Okussi, em Timor-Leste, ou a Tete, em Moçambique, ou a Svalvard, na Noruega, e, talvez ainda, a Thimphu, no Butão, a Salem, no Oregon dos EUA, ou a Punta Arenas, no Chile. Terei tempo? E pachorra? Se calhar, não, mas fica a nota. Sem qualquer melancolia.

Realizei sonhos “esquisitos”? Claro! Fui ao Nakishevan, no Azerbaijão, a Trieste, na Itália, a Sukhumi, na Abcásia, ao Forte Principe da Beira, na Rondónia brasileira, a Siem Reap, no Cambodja, a Bukhara, no Usebequistão. Eram locais que tinha “em agenda” e que consegui visitar - além das cidades “óbvias”, que conheço quase todas (mas não todas!).

Nos tempos que correm, sou um viajante comedido, sem grandes anseios, sem grandes metas. O que vier, soará, como dizia o meu pai que, aos 91 anos, ainda me foi visitar a Nova Iorque e aos 93 a Viena e que, pouco antes de morrer, aos 97, me disse que só lhe tinha ficado “atravessado” nunca ter ido a Luxor, no Egito. “És um sortudo, subiste o Nilo de barco”, dizia-me. Sou, é verdade.

sexta-feira, dezembro 08, 2017

Soares sempre!

Um largo grupo de amigos reuniu-se hoje num almoço rememorativo de Mário Soares. 

Tenho, às vezes, a pretensão de conhecer muito do que de importante existe, em matéria de imagem e escrita, sobre a nossa História contemporânea, mas, frequentemente, tenho surpresas. Aconteceu hoje.

Durante a apresentação de um filme sobre Mário Soares, foi mostrado um pequeno apontamento, gravado nas instalações da RTP, ainda antes do 1° de maio de 1974, em 29 ou 30 de abril. 

No que nele disse, Soares revelava ser aquela a primeira vez, em mais de três décadas de vida política, que tinha a oportunidade de utilizar aquela (então) única antena televisiva. Era uma mensagem fortemente política e significativa.

O mais interessante foi o facto de Mário Soares, nesses breve minutos, ter manifestado a sua concordância com a designação de “primeiro de maio vermelho”, que alguns pretendiam dar à grande manifestação que o povo português iria afinal protagonizar, em fantástica calma, escassas horas depois.

Soares afirmava, nessa intervenção, que não de importava que a data fosse “vermelha”, mas lembrou que esse vermelho deveria ser o das papoilas do Alentejo ou dos cravos oferecidos pelo povo, dias antes, aos soldados da Revolução. Soares acrescentava: “mas não queremos o vermelho do sangue”, porque a Revolução foi feita para a paz.

Foi uma bela homenagem, a que muitos lhe fizemos hoje. Todas lhe são devidas, porque cada uma delas é também uma homenagem à democracia que ele muito ajudou a construir.

Orient House


Mario Soares, que ontem faria 93 anos se a vida não tivesse desistido dele, olhou a papelada que o seu colaborador e meu colega Alfredo Duarte Costa, seu conselheiro diplomático, lhe tinha entregue, naquelas horas que antecediam o nosso desembarque em Israel, e perguntou-me: “Então vai visitar a Orient House?”. 

Era novembro de 1995. Estávamos a viajar no Falcon oficial, sobre o Mediterrâneo, a caminho daquela que seria a primeira (e até agora última) viagem de um chefe de Estado português a Israel e, depois, a Gaza. Eu acompanhava-o como recém-empossado membro do governo.

Expliquei a Mário Soares que visitar a Orient House, a representação da Autoridade Palestina em Jerusalém Oriental, era um gesto que o novo governo português queria dar, como forma de sublinhar, ainda mais, o não reconhecimento por parte de Portugal da reivindicação israelita sobre a totalidade da cidade. Soares estava de acordo com a minha visita, não obstante as autoridades de Israel ainda terem tentado convencer o nosso embaixador, Paulo Barbosa, do desagrado que a deslocação à Orient House lhes provocava. Ainda a montante da chegada a Tel-Aviv, eu tinha mandado informar que não dispensava aquele ponto da minha agenda. Ainda no aeroporto Ben Gurion, Paulo Barbosa perguntou-me se eu confirmava o encontro. Claro que sim, disse-lhe.

Nem o presidente Weizman nem o primeiro-ministro Rabin, contudo, suscitaram, nos encontros tidos com Soares, a questão da visita do membro do governo português à Orient House, que seria feita à margem do programa oficial. Na audiência que me concedeu, o MNE Shimon Peres fez uma breve alusão ao assunto, mais no sentido de eu procurar passar a mensagem aos palestinos das obrigações que lhe incumbiam, decorrentes dos acordos de Oslo. Israel, à época, não tendo abdicado de nenhum dos seus princípios, vivia razoavelmente com o estatuto que a Autoridade Palestina ia tendo em Jerusalém.

Portugal, ontem como hoje, não reconhece os direitos que Israel reivindica sobre todo o território de Jerusalém, pelo que o nosso presidente e o governo expressaram já o repúdio português com a decisão americana de transferir a sua embaixada para Jerusalém, ao arrepio de resoluções que os próprios EUA haviam subscrito. Os americanos aí se encontrarão com Vanuatu e com a Bolívia (que tem a embaixada num subúrbio) e, com toda a certeza, vão a partir de agora ser seguidos no gesto por alguns daqueles que, pelo mundo, têm como política externa seguir os ditâmes do poder americano.

As portas da Orient House, que visitei há mais de duas décadas, foram entretanto fechadas pela cegueira israelita, há já vários anos. Com este seu gesto, Trump colocou mais um prego no caixão da paz no Médio Oriente.

quinta-feira, dezembro 07, 2017

No ano da morte de Mário Soares

Mário Soares comemoraria hoje o seu aniversário. Recordo-me da festa que lhe foi feita nos 80 anos e, em especial, da bela ocasião que foi o almoço comemorativo dos seus 90 anos, tendo ainda a seu lado essa também imensa figura que foi Maria Barroso.

Portugal é um país feliz por ter podido contar com uma figura como Mário Soares, na sua História contemporânea. Devemos-lhe o desenho político do regime que hoje nos governa, como já lhe tínhamos ficado a dever a sua coragem na luta contra a ditadura. Soares deu-nos lições de bom-senso, de profundo sentido democrático, de tolerância mas também de grande determinação na defesa de valores e de princípios que hoje são estruturantes da nossa vida cívica coletiva.

Neste que, repescando Saramago, é “o ano da morte de Mário Soares”, apetece-me dizer, com a alegria de quem teve o privilégio de ser seu amigo: “Viva Mário Soares”.

Gaffes


Há dias, um site que tem pretensões a ser voz da intelectualidade da direita, dedicou largos minutos a mostrar, sublinhando-os com pretenso humor, os gestos físicos involuntários de alguns membros do governo, durante as horas de perguntas, na sessão pública comemorativa dos dois anos de trabalho do executivo. 

É claro que, como acontece a todo e qualquer normal cidadão, alguém sentado por largo tempo numa cadeira acaba forçosamente por, num determinado momento, coçar a orelha, o nariz ou passar a mão pelo queixo, além de outros gestos automáticos (pegar no telemóvel, sussurrar algo ao vizinho de cadeira, etc). Se a cena for filmada por algumas horas, se se recortarem precisamente os segundos em que esses gestos tenham lugar e se se os juntar todos numa sequência, cria-se um ritmo de imagem que pode parecer ridículo. Mas issó só resulta assim porque, artificialmente, o “jornalista” - esse, pelos vistos, com todo o tempo do mundo para se coçar... - juntou artificialmente as cenas que, malevolamente, introduzem uma imagem que se pretende apoucar. Algum dos ministros cometeu, pelos gestos que fez, alguma gaffe? Não, mas algum “jornalismo” quis tirar um efeito que pretende assimilar a lapsos públicos.

Ontem, fui a um telejornal da TVI e, no fim de uma série de perguntas sobre Trump e a Palestina, falei dos acordos de “Camp David e Paris”. Continuei a responder mas (“on the back of my mind”) dei-me conta de que deveria ter dito “de Washington e Oslo” (a origem do erro é que, em política internacional, nos rotinamos a falar dos acordos “de Dayton e de Paris”). Um lapso, numa referência, creio que perdoável, numa conversa de dez minutos.

Mas, pelos vistos, nem todos têm direito ao “perdão”. No domingo passado, eu estava sentado em frente a António Costa, numa cerimónia no Palácio da Bolsa, no Porto. Costa fazia um discurso de improviso. A certo passo, numa frase, trocou a palavra “emprego” por “desemprego”. Pode acontecer a qualquer pessoa, num discurso corrido, e não lido, de vinte minutos. Eu disse logo para a pessoa ao meu lado, que aliás nem tinha notado o lapso, pensando ter ouvido mal: “Esta vai ser a notícia!”. Meu dito, meu feito. Uma folha informativa colocou a gaffe a todo o esplendor da sua primeira página do dia seguinte e, cúmulo dos cúmulos, uma figura da oposição veio nela indignar-se com o lapso, considerando-o significativo e freudiano. 

Isto bateu no fundo, em matéria de algum “jornalismo” (na polítca, nem é bom falar). E se o outro, o verdadeiro jornalismo, sem aspas, não se indignar e souber reagir contra as práticas desses “colegas”, corre o risco de cada vez mais ser metido no mesmo saco. De lacraus, claro.

quarta-feira, dezembro 06, 2017

Johnny Halliday

Era junho de 1964. Provavelmente dia 14. Num jornal, saiu a notícia de que Johnny Halliday fora a uma discoteca, algures em França, onde só era permitida a entrada de jovens com menos de 21 anos. O cantor foi lá na última noite em que ainda tinha 20 anos. Faria 21 no doa seguinte.

Para quem, como eu, tinha 16 anos e vivia em Vila Real, onde não havia discotecas, a notícia marcou-me, sei lá bem porquê. Das coisas que eu me lembro...

Apesar de alguns anos mais velho, Halliday, que hoje morreu, é "um rapaz do meu tempo", um tempo em que tinha como namorada Sylvie Vartan e arrasava musicalmente a França e a concorrência, o que, em Portugal, acompanhávamos, com algum "voyeurisme" adolescente, através da leitura da revista "Salut les Copains". 

Nunca fui um incondicional: a sua canção de que sempre mais gostei era a versão francesa do "The House of the Raising Sun", traduzida pelo "Le Pénitencier", o que não ilustra muito o meu apreço pelo “rock” à moda francesa.

Halliday foi o émulo possível de Elvis Presley, mas, contrariamente ao cantor americano, a sua carreira teve escasso impacto fora do mundo francófono, onde, contudo, era um ídolo incontestado. Alimentou sempre um estilo de "bad boy", que ia bem com o seu tom de voz e a figura de roqueiro "blouson cuir", olhar castigador e moto à ilharga. 

Um dia, creio que em 1971, andava eu à boleia por essa Europa, fiquei à porta de um concerto seu, em Bayonne ou Biarritz, à falta de bilhetes. Mas quando vivi em Paris nunca tive a nostalgia suficiente para me bater por uma entrada num espectáculo para o ouvir.

terça-feira, dezembro 05, 2017

Manuel Marín


A cena estava montada. E não era nada agradável. 

Eu tinha tomado posse do cargo de secretário de Estado em 28 de outubro de 1995. E, menos de 24 horas depois, viajei com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, para o Luxemburgo, para um Conselho de Ministros “Assuntos Gerais”, sob presidência espanhola. A União Europeia estava prestes a concluir um acordo de comércio com Marrocos. Portugal era o “chato” que estava a criar problemas para a conclusão do acordo, por razões que, recordo-me, se prendiam com os interesses dos nossos industriais de conservas de atum.

A meio do Conselho de ministros europeu, a Comissão pediu para se reunir com Portugal. A responsabilidade da política comercial europeia é da Comissão, sob mandato negocial aprovado pelos ministros. “Isto vai começar! Veja o que eles querem”, disse-me Gama, já prevendo uma batalha interessante. A Espanha sabia das nossas boas relações com Marrocos e preparava-se para tentar bilateralizar o problema, convertendo-o num dissídio luso-marroquino.y

A coreografia montada naquela sala antiquada das instalações que União Europeia tem no Luxemburgo impressionaria quem não conhecesse este género de “shows”. Do lado de lá da mesa, chefiada por Manuel Marin, vice-presidente da Comissão Santer e comissário para as Relações Externas e Desenvolvimento, estava uma “invencível armada”. Eram aí uma vintena, nas duas filas de gente. Gente de Bruxelas e de Madrid. Todos nos conhecíamos, pelo menos de vista, dos corredores da Europa comunitária.

Eu ia com quatro pessoas: Clotilde Câmara Pestana, Teresa Moura, Isabel Vila Santa e alguém da nossa representação em Bruxelas, que agora não recordo. Sei que eram todas mulheres.

“Tu veux qu’on parle en français, Francisco?”. Manuel Marin, o “menino bonito” da Comissão, era um velho conhecido. Durante vários anos anteriores, tinhamo-nos encontrado um pouco por todo o mundo, dos Barbados a Bruxelas, de Brazaville a Lomé, passando pelas Maurícias e pelas Fidji. Respondi com garbo, rindo: “Si quieres, hablamos en castellano!”. O meu “portuñol” era péssimo, mas eu sabia que Marin, como comissário, só estava autorizado a falar uma das línguas de trabalho - francês ou inglês. 

A conversa foi o previsível. A Europa estava à espera, há semanas, do novo governo português, para tentar flexibilizar a posição negocial até aí mantida por Lisboa. Para mim, a questão era duplamente delicada: era muito difícil a um novo governo, que ainda não tinha sequer reunido um único Conselho de Ministros, prescindir de defesas nacionais assumidas pelo governo cessante. No meu caso pessoal, que até à véspera tinha titulado, como diretor-geral adjunto dos Assuntos Europeus, essa mesma posição, fazê-lo seria dar mostras de grande incoerência. 

Marin foi duro. Dramatizou a nossa responsabilidade, no caso de um falhanço de um acordo com Marrocos, sabendo que isso politicamente seria sério para nós (Portugal tem melhores relações com Marrocos do que a Espanha). Estava a tentar ajudar a presidência espanhola a fechar o dossiê. E sabia que só o podia fazer à nossa custa. (No mês seguinte, o MNE espanhol, Javier Solana, far-nos-ia a “partida” de nos deixar a sós, Jaime Gama e eu, com os marroquinos, numa sala de Bruxelas). Quis dar-lhe a ideia de que estávamos sem pressa. E recordo-me de ter acrescentado, críptico: “A seu tempo, faremos chegar à Comissão uma lista de questões que gostaríamos de ver resolvida simultaneamente ao eventual fecho deste acordo”. Era um mero “bluff” para ganhar tempo: eu não tinha rigorosamente nada na manga... O outro lado da mesa agitou-se, trocou olhares. Marin inquiriu: “Podes ser mais explícito?”. Respondi: “Eu disse ‘a seu tempo’. E ainda temos tempo”. Não tínhamos, mas precisávamos de ganhá-lo. A conversa foi breve.

O acordo com Marrocos acabou por ser assinado em meados de dezembro desse ano (seria eu próprio a assiná-lo, por Portugal). Conseguiram-se algumas pequenas coisas compensatórias, como sempre acontece nestes processos. E os marroquinos ainda tiveram de mandar um ministro a Lisboa.

Ontem, dia em que, por coincidência, António Costa estava em negociações em Marrocos, recebi a notícia de que morreu Manuel Marin, aos 68 anos. Chegou a presidente do parlamento do seu país e era uma figura respeitada nos socialistas espanhóis. Ao longo dos anos, pude constatar que era nosso amigo e tinha em atenção os interesses portugueses.

Ao saber da morte de Marin, não pude deixar de me lembrar de que, numa discoteca de uma capital africana de um país de língua francesa, de cujo nome não me quero lembrar (como diria Cervantes para um certo lugar da Mancha), tive de dançar até tarde com uma amiga que então tinha como único e persistente objetivo vir a ser convidada para tal por ele. O que aconteceu, lá para as duas da manhã. Ela deve estar triste, neste momento.

segunda-feira, dezembro 04, 2017

Eurogrupo, mentiras & Mendes

Cada dia que passa, tendo a ser muito cuidadoso quando leio uma notícia mais ou menos surpreendente. De imediato, verifico qual o órgão de comunicação social que a difundiu, porque, cada vez mais, a verosimilhança da informação depende muito, aos meus olhos, da credibilidade de quem a transmite. Estou mesmo convicto de que, no mundo de "fake news" que aí anda, esse vai ser o critério e o caminho do futuro.

(Regressamos, de certo modo, ao velho método de classificação de notícias que aprendi nas informações militares, que hierarquizava as fontes de A a E, em ordem decrescente de credibilidade da fonte, e as notícias de 1 a 5, conforme a sua decrescente verosimilhança. Um dos meus chefes dizia que A1 era uma notícia que nos era dada pela nossa mãe, que um E5 era uma "boca" do maior mentiroso que conhecêssemos e que "o nosso dia-a-dia é feito de C3". Tinha razão.)

Vem isto a propósito de Marques Mendes não ter acreditado na notícia que o 'Expresso" publicou no dia 1 de abril, sobre o facto de Mário Centeno ter sido sondado para a presidência do Eurogrupo. Eu também li a mesma notícia, mas vi quem a assinava: Luísa Meireles. Fiquei perplexo. A mim, tal como Marques Mendes, também me custava muito a crer que Centeno pudesse algum dia vir a presidir àquele órgão, mas a circunstância da notícia estar assinada por Luisa Meireles criava-me um conflito interior. É que eu conheço muito bem o rigor da jornalista, que sabe do que fala e não difunde "bocas". Se ela escrevia aquilo é porque havia algo de sólido por detrás. Ainda pensei telefonar-lhe, mas ela nunca revelaria uma fonte. Porém, para mim, independentemente da fiabilidade da fonte de Luisa Meireles, a hipótese continuava a ser implausível, e vivi até ao fim agarrado a esta posição. Que estava errada. Ainda bem.

domingo, dezembro 03, 2017

A cor do Filipe


O Filipe tinha uma figura pequena, magra, com um permanente e simpático sorriso de boa pessoa que era. Filho de um dos muitos irmãos do meu avô e, com um rancho de rebentos, ficara a viver em Bornes de Aguiar, dedicado à pequena agricultura.

Quando, pelos Verões, na Páscoa ou fins-de-semana, o meu avô, no seu tropismo eterno pela terra onde nascera, regressava de Vila Real a Bornes, rara era a noite em que o Filipe não surgia pela Casa do Pereiro, para dois dedos de conversa com o "tio doutor". Nos bancos da varanda à volta do pátio ou no escano da lareira, o Filipe atualizava então o meu avô sobre a vida da aldeia, desde as colheitas da Quinta da Pala, onde o Filipe vivia, a caminho de Eiriz, até às saídas para a tropa ou para a emigração, que iam deixando a aldeia cada vez mais cheia de velhos e viúvas de vivos.

Lembrei-me ontem do Filipe, o Filipe da Pala, como dizíamos. Isso acontece sempre que visito o cemitério de Bornes. Na sua campa, junto da qual sempre passo, com fotografia ligeiramente sorridente, está a data da sua morte, que é precisamente a do meu casamento.

O Filipe tinha uma imensa paciência para mim, que, desde a infância, passava por Bornes curtas temporadas com os meus avós. Levava-me a passeios de conversa pelo Fundo de Vila ou pelo Porto, uma zona que ia dar ao Cruzeiro, no coração da aldeia, junto à capela. 

Era no Cruzeiro que se situava uma das perdições do Filipe: a "venda" do Chico. Naquela casa, onde se vendia um pouco de tudo, propriedade de um outro primo, o Filipe passava de quando em vez, para beber uma "pinga" e ficar à conversa com a gente lá da aldeia. Às vezes, algum exagero nas doses ruborizava-lhe as faces, mas, que eu saiba, nunca se lhe alteravam os espíritos de forma dramática. Mas foi assim que, numa noute, chegou a casa do meu avô, no final de um jantar. Recordo-me tão bem!

O meu avô era um compulsivo inventor de cenas divertidas e, numa dessas noites, o seu sobrinho Felipe, de quem ele muito gostava, acabou por ser a vítima incauta de uma dessas partidas, que ficou para sempre na memória alegre da família. 

Apelando ao conhecimento vinícola do Felipe, o meu avô pediu-lhe a opinião sobre um vinho tinto de que alguém lhe tinha oferecido um garrafão: "Ó Filipe, tu que sabes de vinhos é que me podias dizer o que é que achas desta "pinga", que me trouxeram de Vila Pouca". E encaminhou-se para um armário, adiantando já que o tal vinho lhe parecia "demasiado encorpado". Mas o sobrinho é que ia dizer de sua justiça.

O Filipe, que, àquela hora e naquela noite, já tinha ligeiramente mais do que a sua conta, ainda pretextou falta de conhecimentos para estar à altura da responsabilidade da tarefa que o tio Francisco lhe destinava, mas lá acabou por aceder a dar o seu parecer, não fossem serem postos em causa os seus créditos de alegado conhecedor. O meu avô trouxe-lhe então um copo cheio, que o Filipe começou por levantar e olhar à transparência de uma lâmpada, decretando: "Lá boa cor tem ele!"

Depois, inclinou o copo para beber e - surpresa das surpresas! - nada lhe entrou na boca. O copo continuava cheio mas o seu conteúdo não deslizava. Pudera!, era geleia, feita pela minha avó, que a distribuíra por vários recipientes, entre os quais alguns copos sem pé! O Filipe, perplexo, olhava o copo, com os circunstantes ainda sem entenderem o que se estava a passar, com o meu avô a explodir de riso contido. Levemente toldado como estava, e não tendo ainda identificado o conteúdo do copo, saiu-lhe então uma frase que ficou nos nossos anais familiares: "Até hoje, nunca nenhum se me tinha negado!"

sábado, dezembro 02, 2017

O meu amigo reacionário

Tive e tenho vários amigos reacionários. Nem todos saudosos de Salazar, da sua ordem ou do império, alguns aceitando, mais ou menos a contragosto, que o direito de voto seja igual para um sábio ou um ignorante, outros ainda clamando pela ilegalização dos comunistas e por um país musculado, com pena de morte e tudo. Gente adepta de muitas outras coisas desse jaez, com uma agenda feita de nostalgia de um outro Portugal, que eu detesto. Ainda há pessoas dessas e, por muito que isso possa parecer surpreendente, tenho amigos desses. 

O Álvaro não era exatamente assim. Álvaro Magalhães dos Santos era um homem urbano, integrado na ordem democrática. Mas era um refinadíssimo reacionário, um direitolas “até dizer chega”. Ontem, durante um jantar geracional, falámos bastante dele.

Em Vila Real, onde nasceu, foi professor e dirigiu a casa da Mocidade Portuguesa, o que diz já alguma coisa. Licenciado em Germânicas, saltaria, anos mais tarde, do ensino para a área da publicidade. Andou pelo jornalismo, onde exerceu escrita humorística. Alguns se lembrarão do “Vicente Gil”, que enchia uma página da Capital. Escreveu no Diabo (“where else?”) e no Correio da Manhã, onde se especializou em imaginativos “balões” com graças políticas nas fotografias. Para grande pena minha, que não obstante a diferença de idades tinha com ele uma grande proximidade pessoal, o Álvaro desapareceu há cerca de uma década. Ainda hoje me faz falta como amigo.

Era um contador de histórias notável. O seu reportório parecia inesgotável, com memória rara para anedotas, que dizia com imensa graça. Passei horas a ouvi-lo, a ele que sabia iludir, como ninguém, o mundo que nos separava nas ideias políticas.

Um dia relatou-nos um episódio curiosíssimo, ocorrido em Londres. Ele, que fora professor de inglês, tinha um gosto especial pelo mundo anglo-saxónico. Londres era a “sua” cidade e, quando por lá vivi, “asilou” algumas vezes na minha casa, como já o havia feito na Noruega. (Um parêntesis para dizer que o Álvaro era, muito provavelmente, o mais elaborado forreta que alguma vez conheci). Mas o episódio tinha sido bem antes desse tempo.

O Álvaro comprara um dia para um filho, no Hamleys, uns brinquedos, nas vésperas de um Natal. À chegada ao hotel, deu-se conta de ter deixado o saco no táxi, como às vezes nos sucede. Não tendo referências do transporte, com o avião a partir horas depois, deu por perdida a compra, o que, conhecido o seu apego ao dinheiro, o deve ter deixado furibundo. Mas era a vida!

Uns anos mais tarde, também num táxi londrino, meteu conversa com um motorista e contou o episódio, que devia ser traumático para quem era tão cioso da sua bolsa. O homem perguntou-lhe se tinha recorrido ao serviço de “lost & found” dos táxis. O Álvaro retorquiu que não, porque partira quase de seguida para Portugal. O taxista disse da existência, algures em East London, de um grande armazém onde eram recolhidos objetos deixados no “black cabs”. Quem sabe se o saco perdido do seu cliente não estaria por lá...

O Álvaro foi a matutar naquilo para o hotel. A compra não havia sido muito cara, mas a possibilidade de a recuperar ficou a borbulhar na sua cabeça. Ir de taxi ao tal armazém era impensável: ficaria talvez mais caro do que o preço do brinquedo. Decidiu, finalmente, ir de metro, não obstante nevar sobre Londres por esses dias. A jornada ia fazer-lhe perder uma tarde na National Gallery (onde a entrada era gratuita...), mas paciência!

Da saída do metro até ao tal armazém ainda foi um bom bocado, sob a neve que caía e o encharcado desagradável pelos passeios. Mas ele estava determinado. O armazém tinha um ar exteriormente algo decrépito. Tocou uma campaínha, atendeu-o um rapaz com um ar de “punk” que lhe indicou um balcão, por detrás do qual havia uma quantidade impressionante de estantes, com caixas. Imaginou o mundo que por ali estaria. Esperou um bom bocado, até que lhe apareceu um tipo corcunda, de óculos muito graduados, com sotaque irlandês.

O Álvaro tinha-se munido da data em que, cerca de três anos antes, viajara no táxi no qual se esquecera da prenda para o filho. Com calma, mas com método, viu o homem procurar um de entre vários livros de registo, de formato longo, estendendo-o sobre o balcão. Notou que estava todo manuscrito, com várias indicações, do registo das viaturas à natureza dos objetos perdidos. À indicação de que tinha sido num táxi entre Regent Street e Bayswater, onde o Álvaro estivera num hotel baratucho, como era seu timbre, o funcionário do armazém perguntou: “A que horas foi?”. O Álvaro disse que tinha sido pouco depois das sete da tarde e viu o homem fazer um esperançoso sinal afirmativo com a cabeça, enquanto percorria com o dedo as linhas do livro. “Disse-me que era um saco do Hamleys? Tinha um tom avermelhado?” Não era possível! Tinha, de facto, um tom avermelhado! O homem, sempre sem expressão, voltou-lhe as costas e encaminhou-se para um dos longos corredores com prateleiras. O Álvaro ainda teve a tentação de olhar o registo que, aparentemente, mobilizara o homem, mas este havia tido o cuidado de colocar o livro longe da sua vista.

Passou aquilo que pareceram ser uns longos minutos. No silêncio geral em que o armazém estava mergulhado, ouvia-se apenas o arrastar do que parecia ser uma escada de acesso às prateleiras, uns ruídos de afastamento de objetos. Finalmente, o homem surgiu, ao fundo. Trazia na mão uma caixa grande de cartão que pousou sobre o balcão. O Álvaro estava radiante! O homem conferiu de novo o livro de registo e, voltando-se para o meu amigo, disse, sempre sem expressão: “Não está cá nada!”. O Álvaro caiu das núvens. “Mas, então, e essa caixa?”. O homem, pela primeira vez, pareceu surpreendido. “Esta caixa? Ah! Não tem nada a ver consigo. Estava mal colocada e trouxe-a para corrigir o registo”. Tanto esforço para nada! Intrigado, o Álvaro teve uma derradeira reação: “Mas porque é que me tinha dito que o saco era em tons de vermelho? Pensei que isso significasse que tinha aí registado isso!”. Pela primeira vez o rosto seco do homem abriu-se um pouco, num esgar entre o sorriso e o que pareceu ser um tom de gozo: “Os sacos do Hamleys são sempre em tons de vermelho”.

O Álvaro levava um bom quarto-de-hora a contar este episódio, recheando-o de pormenores, de notas que nos faziam vivê-lo como se estivéssemos a participar da cena. Tenho pena de nunca mais o poder ouvir de novo. O que ele teria dado para estar ontem na “ceia” do “primeiro de dezembro”, nesta cidade sobre cuja rua onde nasceu ele escreveu um livro insubstituível, como ele próprio era!

sexta-feira, dezembro 01, 2017

O lorgnon do senhor Lito


Neste dia do ano em que, evocando outros tempos, me reúno às vezes em Vila Real com gente da minha geração, numa tradicional “ceia” do “primeiro de dezembro”, deu-me para contar uma história, também desses outros tempos, passada com dois amigos vila-realenses, antigos colegas de escola primária.

Foi em 1967, há precisamente 50 anos. Ao final de uma manhã, bateram à porta da casa do Porto onde eu tinha um quarto alugado, como estudante, na rua Miguel Bombarda. O Olívio Carvalho e o Domingos Lito tinham chegado no Cabanelas, o autocarro que ligava Vila Real ao mundo - através das curvas do Marão, com paragem no Príncipe, no largo do Arquinho, em Amarante, e um cheiro a regueifas vendidas na camionete por uma senhora de bigode, à passagem por Paredes. 

A deslocação tinha como finalidade proceder à operação de venda, por um preço que esperavam ir ser uma imensa “nota”, de um velhíssimo lorgnon, uns óculos manuais que teriam pertencido ao avô do Domingos, o Senhor Lito, um histórico e abastado comerciante da cidade. O Olívio vinha coadjuvar tecnicamente a operação, com a sua consabida lábia e o olho para as antiguidades que, curiosamente, iria marcar muito do seu percurso profissional futuro.

De mim, a expedição apenas pretendia o que julgavam ser o meu conhecimento da cidade do Porto, das suas lojas mais credenciadas, onde o negócio pudesse vir a fazer-se com maior proveito. A porta onde tinham batido era, contudo, fraca: eu não sabia rigorosamente nada de antiguidades, conhecia apenas as montras de alguns estabelecimentos comerciais do ramo. Lá lhes dei duas ou três dicas e fui vagamente para umas aulas, mais para cumprir calendário do que com qualquer outro propósito útil. (Nesse ano, eu haveria de concluir apenas mais uma cadeira do meu curso, mantendo o hábito estreado no ano anterior. Meses depois, desistiria dessa opção académica. É que, a ter continuado a esse ritmo unitário anual, julgo que estaria a acabar Engenharia Eletrotécnica mais ou menos por este ano ...).

Combinámos encontrar-nos ao fim da tarde, no Estrela d’Ouro, um café na rua da Fábrica onde eu fingia que estudava e bilharava bastante mais. A cara com que o par de conterrâneos fez a sua entrada no café não prenunciava a realização de um negócio estrondoso. O Domingos vinha murcho com o escasso encaixa de capital que fizera. Como teorizou o Olívio, havia no mercado das antiguidades portuenses um excesso de lorgnons, pelo que a verba recolhida ficara aquém das expetativas. Mesmo assim, se eu lhes pudesse dar guarida nessa noite, o dono da “massa” ofereceu-se para pagar uma jantarada e um copo, regressando a dupla à “Bila” no Cabanelas da manhã seguinte.

Com o meu colega de quarto ausente, ofereci-lhes a sua cama, imagino que com algumas ironias machistas sobre o modo de partilha do leito. E lá partimos para a noite do Porto, esse sim, o verdadeiro curso que por ali eu andava a tirar...

Jantámos, muito bem, na Regaleira, no primeiro andar do Bonjardim. No final, generoso, o Domingos fez as contas: sobravam ainda algumas boas notas. Propus irmos beber um vermute (estava na moda) à Tentativa. Era cedo, o ambiente estava fraco, mas, mesmo assim, foi-nos difícil arrancar dali o Domingos, já embeiçado por uma pequena que lhe esportulou umas bebidas carotas. Dali, rumámos à Candeia, um pouso mais interessante na rua do Almada, onde alguma regularidade me dava um acesso franqueado. O strip na cave estava prestes a começar e aí foi o Olívio que se distraiu e mandou vir umas garrafas de Magos a mais, a pedido de uma jovem oriunda do nosso império. Sem haver outros fundos disponíveis, lá teve o Domingos que pagar a despesa, o que provocou um rombo considerável no pecúlio que sobrava da venda do lorgnon. Se o álcool tinha arruinado a contabilidade do Domingos, também a tornava menos relevante no seu espírito, pelo que, “perdidos por cem”, ainda lhes fui mostrar as delícias baratuchas da Japonezinha, na praça da República. A carteira do Domingos já não dava, porém, para aventuras de monta, muito menos para um qualquer “follow up” romântico, pelo que restou aproveitar o histórico baile com que a noite fechava. 

Regressámos, um tanto cabisbaixos e um pouco toldados, à casa onde eu vivia, onde o pé-ante-pé que pedi para o acesso discreto ao meu quarto se transformou, subitamente, num tropel que acordou a idosa dona da casa, que não deixaria mais tarde de me vir fazer observações críticas sobre o uso imoderado que às vezes eu fazia das instalações. 

O pior seria o acordar, na realidade. Feitas as contas à luz crua do dia, o Domingos constatou ter ficado apenas com uns parcos trocos, como saldo da venda do lorgnon. E tive mesmo de ser eu a entrar com uma pequena ajuda para a compra dos bilhetes do Cabanelas, no regresso a casa do par de menos bem sucedidos vendedores de ocasião. 

O Olívio já se foi, o Domingos perdi-o de vista há muito. Lembrá-los neste dia de encontro geracional pareceu-me uma boa ideia.

Senteno


O título pode parecer estranho, mas com ele pretendo sublinhar que tudo o que, por ora, se diga sobre a ida de Mário Centeno para a presidência do Eurogrupo deve ser iniciado com um prudente e kiplinguiano "Se". Há que aguardar a confirmação final da escolha.  

Vale a pena lembrar a complacência com que o novo ministro português foi recebido, pela primeira vez, no Eurogrupo, nos idos de 2015, com Schäuble ainda a fazer o luto de Maria Luís Albuquerque, tendo ao lado, solícito, o sorriso cinicamente encaracolado de Dijsselbloem.  Todos nos recordamos, com certeza, do ar de aluno “marrão” de DombrovskIs, debitando bálticas reticências na Comissão sobre a capacidade das gentes do Sul para porem a sua casa em ordem. 

Que se terá passado para que, num prazo não muito longo, o infrator pudesse surgir com fortes hipóteses de passar a árbitro? Terá a Europa da ortodoxia arrepiado caminho, arrependida das receitas que impôs, sem dó e com nenhuma piedade, decidindo que, afinal, uma linha mais contemporizadora é que tinha a razão do seu lado? Estarão aí, ao virar da curva, a atenuação dos rigores do Tratado Orçamental, a reestruturação europeia da dívida, a sua mutualização pelos eurobonds?

Nada disso. A Europa do euro não se arrepende um milímetro daquilo que a "troika" nos impôs, nunca deixa um elogio a Mário Centeno desacompanhado da nota de que o seu sucesso se deve às condições que encontrou, graças ao "bom trabalho" dos seus antecessores. E não prescinde, claro está, de todos os objetivos macroeconómicos e respetivos calendários.

Mas, então, o que é que mudou naquelas cabeças, para poderem encarar vir a aceitar Centeno?

Desde logo, a Europa pode necessitar de ter alguém, oriundo de um Estado não-grande, que possa ser um "honest broker" no Eurogrupo, preservando o lugar há já muito prejudicada família socialista (que irá futuramente perder a vice-presidência do BCE, com a saída de Vitor Constâncio). Centeno, cuja competência está mais do que demonstrada (não necessitando para isso de ter dirigido o Gabinete de Estudos do Banco de Portugal...), é alguém que demonstrou, na prática, que é possível manter fidelidade às metas do rigor macroeconómico sem, necessariamente, persistir na aplicação cega das receitas anteriores, isto é, explorando seletivamente algumas margens orçamentais, fruto do crescimento induzido e de fatores favoráveis da conjuntura, através de moderadas reversões que acabam por tornar o "bolo" política e socialmente mais palatável. Centeno provou ser possível "humanizar" as políticas austeritárias e isso pode ser interessante para uma Europa em desespero de aceitabilidade e apaziguamento interno.

quinta-feira, novembro 30, 2017

Mário Centeno


Nunca acreditei nas reais possibilidades de Mário Centeno vir a ser presidente do Eurogrupo, na leitura que fazia dos equilíbrios políticos que nele se projetavam. Erro meu. 

Não sabemos ainda se virá a ser escolhido, mas, mesmo que isso não venha a acontecer, o anunciado conjunto de apoios que a sua candidatura já concitou é um fantástico reconhecimento para o próprio, uma vingança do tamanho do mundo para António Costa, o primeiro-ministro que o descobriu para a política, e uma “fava” natalícia antecipada para muita (mesmo muita) gente. 

Se acaso Centeno vier a ser eleito, tal como já aconteceu com Guterres na ONU, preparemo-nos para as medíocres ironias paroquiais que por aí abundarão, desqualificadoras da importância do lugar e do poder efetivo do seu titular, com prenúncios do pior para o futuro dos equilíbrios no seio da “geringonça”. 

Portugal é assim há muitos séculos, a inveja, o despeito e o ódio ao sucesso dos outros fazem parte da nossa matriz identitária como povo e são, com toda a certeza, uma das fortes razões que explicam por que não passamos da cepa torta.

quarta-feira, novembro 29, 2017

Lusofonias

A convite da Sociedade de Geografia, fiz hoje uma palestra sobre os problemas com que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa se defronta para o seu pleno desenvolvimento. Era este o tema que me havia sido proposto e entendi segui-lo à letra. 

Imagino que, no auditório, muitos tivessem ficado algo chocados quando elenquei, sem subterfúgios e com total frontalidade, cerca de três dezenas de razões pelas quais, a meu ver, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é o que hoje é - e, infelizmente, não é mais do que isso.

Acho que, de quando em vez, faz falta um pouco de verdade, crua e dura, nesse muito complexo e contraditório mundo de quantos se exprimem em língua portuguesa. É que há por ali sentimentos ambivalentes e realidades bem curiosas.

Imediatamente antes de fazer a palestra da Sociedade de Geografia, tinha estado numa reunião em que alguém contou que visitava Angola no dia em que se realizava um Sporting-Benfica. Essa pessoa disse do seu espanto (e do seu agrado, já agora), ao ouvir numa rádio luandense uma referência ao jogo, em que designava o prélio como o “dérbi da Segunda Circular” - com a absoluta certeza, por parte do radialista, de estar a ser plenamente entendido pelos seus ouvintes locais.

Não pude deixar de lembrar-me, naquele momento, de um timorense que conheci em Nova Iorque, que nunca visitara Portugal, e que me disse que um dia gostaria de conhecer ”a segunda ponte do Feijó”, lugar até onde chegavam as filas de trânsito nas manhãs lisboetas, que a rádio lhe reportava nas tardes do seu Timor natal.

Belmiro de Azevedo

Belmiro de Azevedo, que hoje desaparece, é um nome grande do mundo empresarial português. Com grande visão, soube criar um grupo económico muito sólido, que gerou largos milhares de empregos, em Portugal e no estrangeiro. Faz parte dos novos empresários que surgiram depois do 25 de abril e que, com os anos, consolidaram um papel determinante na economia do país.

Falámos em diversas ocasiões, em Portugal e no estrangeiro. Em Paris, recordo-me de o ter apresentado num jantar de empresários, No Porto, onde o encontrei pela última vez, ocasião em que me felicitou por trabalhar “na concorrência”, pude testemunhar o seu empenhamento desinteressado numa obra solidária, a que eu próprio dei uma modesta contribuição. 

Belmiro de Azevedo era um homem muito frontal, determinado, com ideias próprias e opiniões fortes, e coragem para as assumir. No trabalho, dizem-me, era de extremo rigor, atitude a que se atribui grande parte do seu sucesso.

O jornal “Público”, em cuja orientação cuidou nunca intervir, foi por ele financiado desde a primeira hora, num gesto que constituiu uma contribuição generosa para a diversidade e a qualidade da imprensa em Portugal. Escrevi “generosa” porque Belmiro de Azevedo, ano após ano e até à sua morte, só acumulou prejuízos com o investimento. Não desistiu nem mudou de atitude.

O triste gesto que o PCP hoje teve na Assembleia da República, recusando juntar-se ao voto de pesar aí aprovado, releva de uma visão deselegante, fruto da sua hostilidade endémica a todos os projetos empresariais privados que assumam uma certa dimensão. O Bloco absteve-se. Nada de novo. 

Deixo a minha palavra de pesar à Família de Belmiro de Azevedo.

Deus não dorme





Conheço Mário Mesquita há muitos anos, desde as mesas da Granfina, nos idos de 70. Por esses tempos, procurei-o um dia no “República”, onde ele era jornalista, para tentar “plantar” uma notícia sobre uma movimentação para-sindical na Caixa Geral de Depósitos, onde eu trabalhava. A Censura não deixou passar. Semanas após o 25 de abril, foi ele quem teve a iniciativa de destacar, no mesmo “República”, um trecho de um discurso que eu havia feito num juramento de bandeira na unidade militar onde estava colocado, em que fiz uma forte crítica ao MFA, “pela esquerda”, que me levou a ser chamado a uma reprimenda ao Estado-Maior do Exército. 

Mário Mesquita e eu nem sempre navegámos simultaneamente em idênticas marés, mas tenho a certeza de que sempre andámos pelas mesmas águas. Também nunca fomos íntimos e ele é, dentre a “ínclita geração” de estudantes açoreanos aportada a Lisboa e com a qual tive o gosto de conviver - a de Medeiros Ferreira, Jaime Gama ou Eduardo Paz Ferreira, entre outros e outras - aquele com quem sempre mantive uma maior “cerimónia” pessoal - vá-se lá saber porquê! 

Isso facilita a que hoje possa dizer que é com grande satisfação que vejo o seu nome eleito para a ERC, o regulador da Comunicação Social. Se a Assembleia da República queria indiscutível competência, seriedade e independência, não podia ter escolhido melhor. Quase que me apetecia fazer uma ironia e repetir o título de um seu célebre editorial no “Diário da Notícias”, também há já com muitos anos, que causou mossa e fez história: “Deus não dorme”.

terça-feira, novembro 28, 2017

Tempos


Hoje, um estrangeiro, para um amigo português:  "Vocês, em Portugal, dizem que sofrem de uma imensa seca. Mas, hoje, já ouvi várias pessoas a dizer que está mau tempo..."

Diplomacia publicitada


Há países onde o desagrado das autoridades face ao comportamento de um Estado estrangeiro se expressa em "leaks" para a comunicação social, que, depois, funcionam como forma artificial de pressão sobre essas mesmas autoridades. Perante o "escândalo" que elas próprias provocaram, voltam-se para os diplomatas dos países visados e dizem: "Vêem? Temos a imprensa em cima de nós! Têm de fazer alguma coisa!". (Sei do que estou a falar).

Portugal não tem (felizmente) essa tradição. A nossa diplomacia é mais discreta, o que não significa ser menos eficaz.

Às vezes, contudo, sinto a tentação de recomendar que se "parta a loiça". Nós sabemos que a Espanha está a atravessar, como nós, uma seca terrível. Temos de ter compreensão pelos seus problemas, mas não devemos ter a mínima aceitação para alguns transvases que se fazem em áreas dos seus territórios e que afetam, ainda mais, os caudais dos rios comuns. É que tenho a firma convicção que são essas práticas que contribuem para que a Espanha, nos dias que correm, esteja claro em incumprimento do acordo de 1999 sobre os rios transfronteiriços.

segunda-feira, novembro 27, 2017

Dois anos


Nos últimos meses destes dois anos, várias coisas têm corrido mal para o governo de António Costa. Algumas têm razões conjunturais que ajudam a justificar os azares, em outras houve erros de monta que só a ele podem ser imputados. E porque o governo tem vários ministros, mas todos se chamam António Costa, é sobre ele e sobre mais ninguém que aterram as núvens negras. Por isso foi irrelevante a saída da ministra da Administração Interna, embora eu aconselhe a que se esteja atento à qualidade muito rara do seu substituto.

As pessoas têm a memória curta. Já não se lembram das previsões catastróficas que se faziam sobre a sustentabilidade da “geringonça” (a começar por mim, que não tenho o menor pejo em reconhecer que me enganei), da reação externa negativa ao modelo de acordo político (ter um presidente “de direita” a dar-se bem com o executivo ajudou a desanuviar esse ambiente, como me dizia um amigo dos “States”), do “diabo” a vestir o fim anunciado do “quantitative easing” e de coisas assim. A economia ajudou, com a Europa (em especial o BCE) a portaram-se bem e a confiança dos portugueses acabou por variar na razão inversa do mal-estar das oposições. Marcelo ajudou até ao momento em que percebeu que a viatura tinha um pneu furado; regressará, logo que pressentir que o furo foi remendado. 

António Costa tem cometido alguns erros escusados, como foi o caso do Infarmed, como já tinha sido o episódio das férias, como foi o discurso pós segunda leva de incêndios. E sofre - e vai sofrer mais, a partir de agora - com o facto do vento ter definitivamente mudado. Há um momento na vida dos governos em que a tempestade passa a surgir de frente, em que a imprensa deixa por completo de dar o benefício da dúvida, em que as mentiras “pegam” com mais facilidade, agora ajudadas pelos “clikbaits” e pelas partilhas acéfalas de títulos nas redes sociais. O manhoso de Santa Comba não viveu para ver que são os dias de hoje que lhe dão razão quando dizia que “em política, o que parece é”.

Creio prematuro pensar-se que o governo entrou em decadência terminal. Claro que o otimismo da Primavera passada já não vai voltar. Cada erro, a partir de agora, passa a ser pago com língua de palmo. Mas se as pessoas perceberem que, de facto, a sua vida muda para melhor graças às medidas do governo, se este não tropeçar demasiadas vezes em si próprio e se souber mostrar, simultaneamente, direção, firmeza, eficácia e humanidade, o PS pode estar para lavar e durar no poder. Assim aceitem esta realidade e isso convenha aos seus “camaradas” de jornada.

Realismo real

É muito interessante ver a capacidade “encantatória” que a monarquia britânica consegue criar, nestes momentos em que se anuncia que um príncipe vai casar. Apesar de todos os azares (a maioria deles auto-infligidos) que nas últimas décadas abalaram a casa real britânica, estes trabalhados momentos mediáticos, com a novidade de surgir uma noiva divorciada e etnicamente diversa de todo o resto da família, insuflam um curioso vento de renovação. A grande profissional que dirige aquele “show”, continua a revelar uma notável capacidade de adaptação. Como republicano, tiro-lhe o meu chapéu.

Pedro Rolo Duarte


Vai para oito anos, o jornalista Pedro Rolo Duarte publicou no seu blogue esta crónica que havia lido na rádio.

Pedro Rolo Duarte morreu há dias, aos 53 anos. Recupero, com gratidão, a imagem desse simpático texto.

domingo, novembro 26, 2017

Touché!

“Tu estás mas é doido?!”. Foi assim que reagi, um dia, a um convite do João Laranjeira de Abreu para entrar, como colaborador, para a Federação Portuguesa de Esgrima. O João havia sido atleta olímpico da modalidade e, se bem me recordo, defrontava-se, à época (seria 1969 ou 1970), com dificuldades de natureza administrativa na respetiva federação. 

Aparentemente, alguma ilusão piedosa sobre a minha capacidade de organização (quem me conhece sabe que sou um imenso e incurável desorganizado) tê-lo-á persuadido de que eu poderia ser útil à tarefa. Com algum esforço, consegui “safar-me” do encargo, mas confesso que sempre que vejo na televisão uma partida de esgrima me recordo da minha “afinidade” não concretizada com a modalidade.

O João era então meu colega de estudos nos “ultramarotos” da Junqueira, que Adriano Moreira quis transformar de antiga escola de quadros para a administração colonial numa verdadeira faculdade de ciências sociais, até Marcelo Caetano o “pôr com dono”. 

Com o correr dos tempos, viemos a ingressar ambos na diplomacia. O destino afastou-nos sempre geograficamente, nunca coincidimos a trabalhar juntos, mas fomos mantendo contactos esparsos, ligados por uma forte amizade.

Há dias, nesse espaço estranho que é o facebook, surgiu-me o seu nome. Inquiri se era mesmo ele, tendo de volta recebido a confirmação de que sim. Da troca posterior de mensagens, vim a verificar que anda pelo sul das Américas e que, infelizmente, a saúde não o tem ajudado, “to say the least”. 

Porque sei que me lê, tendo-me revelado que o que vou escrevendo por aqui é uma das suas mais regulares ligações ao que se passa no nosso país (acontecem-me, às vezes, dias felizes assim), quero deixar-lhe um forte abraço de amizade, com votos de que tudo lhe possa ir correndo o melhor possível. 

Quero aproveitar para garantir ao meu amigo João Laranjeira de Abreu que a esgrima não perdeu nada com a minha não colaboração, mas que recordo ter ficado então muito “touché” pelo convite.

sábado, novembro 25, 2017

O susto


Sabe-se hoje que o MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), que o país político conheceu bem, nos anos que imediatamente antecederam e sucederam ao 25 de abril de 1974, nasceu em 18 de setembro de 1970. Embora a sua existência efetiva, nos dias que correm, seja pouco mais do que teórica, emergindo apenas nos períodos eleitorais, diz-se que com vista a recolher a significativa subvenção pública anual a que vai tendo direito, a verdade é que, historicamente, o MRPP pode gabar-se de ser o segundo mais antigo partido político português, depois do PCP.

Há horas, ao olhar a escada do Instituto Superior Técnico, na noite da Alameda Afonso Henriques, lembrei-me do MRPP. Em meados de dezembro de 1970, já bem dentro da madrugada, eu saía sozinho de uma reunião do associativismo universitário que tinha tido lugar na Associação dos Estudantes do Técnico, onde tinha estado a representar o ISCSPU (isso mesmo, com um “U”). Já não sei bem a razão pela qual as coisas se tinham prolongado, mas os debates inter-associações (chamados de RIA), tinham, por vezes, “serões” inesperados. 

Tenho ideia de ter passado um portão lateral e de ter deparado com o que me pareceu ser uma resma de papel, arrumada junto à grade. Não era, eram vários exemplares de umas páginas de papel policopiado, de tamanho mais comprido do que era normal, agrafadas, com uma letra de máquina de escrever muito pequena, diferente do que era vulgar. O documento tinha um título: “Bandeira Vermelha”, identificando-se como “órgão teórico“ do MRPP. E indicava ser o nº 1. Tinha sido colocado naquele local claramente com o objetivo de ser apanhado, à saída, pelos representantes associativos que se sabia estarem ali reunidos.

Eu era então um curioso por todo o tipo de papelada clandestina, pelo que logo guardei, na minha velha pasta preta, três ou quatro exemplares. Confesso não me recordar se, à época, tinha já alguma vez ouvido falar no MRPP, embora um ano e tal antes, numa reunião oposicionista no Palácio Fronteira, anterior às primeiras “eleições” para a Assembleia Nacional organizadas por Marcelo Caetano, eu tivesse sido testemunha pública de um dissídio político que, como veio a provar-se, iria dar origem à criação da EDE (Esquerda Democrática Estudantil), que desembocaria no MRPP.

Desci as escadas, preparando-me para seguir Alameda abaixo, até à Almirante Reis, onde apanharia um autocarro para os Olivais, onde então vivia. Nesse tempo, na madrugada lisboeta, era vulgar conseguir viajar em autocarros que recolhiam a Cabo Ruivo, já de madrugada. Eram abertos atrás e os condutores, quase nem paravam, só abrandavam ao nosso aceno, por forma a que segurássemos o varão e apanhássemos boleia, sem necessidade de bilhete.

Foi então que vi dois carros, estacionados naquele deserto da noite, um de cada lado do Técnico, fazerem sinais de faróis, um para o outro. Era a polícia (ou a Legião, ou a Pide), pela certa (por essa época, a noite dessa área ainda não tinha o “colorido” que mais tarde a ilustraria...) E ali estava eu, com alguns exemplares de literatura clandestina na pasta, sozinho, indefeso. Lembro-me do relativo pânico em que entrei. Se me mandassem parar e me revistassem iam encontrar não um mas vários exemplares de um documento revolucionário que eu, por estúpido e incívico “açambarcamento”, decidira trazer para dar a amigos. E que nem sequer lera!

Tentei descer as escadas aparentando a maior calma do mundo, para não dar um ar acossado. Se fumasse, teria mesmo parado para acender um cigarro. Não sei se fiz a coreografia de apertar cordões nos sapatos. Mas devo ter assobiado, para espantar o medo e o frio que me corria pela espinha, a rimar com alguma taquicardia conjuntural. Desci “com calma” a Alameda, olhando frequentemente para trás, de soslaio. Lá chegado, cosi-me às paredes enquanto não surgiu um autocarro. E, finalmente, lá cheguei a casa, aliviado, no fim de uma “não história” em que, vendo bem as coisas, ninguém me perseguiu, talvez nem sequer tivesse estado em perigo e aqueles carros, afinal, não fossem da polícia e eu tivesse apenas andado por ali a atrapalhar um qualquer arranjo romântico. Ou não.

Mas tudo para dizer, lembrado pelas escadas do Técnico por onde há pouco passei, que, ainda hoje, sou proprietário de um velho exemplar desse histórico “Bandeira Vermelha” nº 1, que um alfarrabista, já há anos, me disse valer “bem para cima de cem euros”. Ou mais.

sexta-feira, novembro 24, 2017

Na linha da frente


A União Europeia anunciou a criação, no seu seio, de uma Cooperação Estruturada Permanente em matéria de Defesa, prevista no Tratado de Lisboa. Trata-se do resultado de um processo de reflexão desenvolvido ao longo dos últimos meses, manifestamente facilitado pelo anunciado abandono do Reino Unido das instituições europeias.

23 dos 28 Estados membros da União Europeia, entre os quais se contam a esmagadora maioria dos parceiros europeus da NATO, bem como alguns países neutrais, deram nota da sua intenção de vir a integrar este modelo de cooperação. 

Portugal surgiu ao lado do Reino Unido, de Malta, da Irlanda e da Dinamarca, entre os países que não manifestaram oficialmente a sua adesão ao projecto, mesmo que o governo tenha anunciado a sua intenção de o fazer. 

Desde o seu acesso às instituições comunitárias, há mais de 30 anos, Portugal fez questão de estar presente, sempre a partir do primeiro momento, em todos os modelos de integração diferenciada que foram criados na Europa - de que Schengen e o euro são os exemplos mais significativos.

A Cooperação Estruturada Permanente agora anunciada, no âmbito do Tratado de Lisboa, não conflitua nem se substitui aos compromissos portugueses assumidos no quadro da Aliança Atlântica, nem tem como objetivo, como é caricaturado por alguns, avançar para a criação de um qualquer “exército europeu”. 

Trata-se, muito simplesmente, de definir fórmulas mais integradas de cooperação na área da Defesa entre países que, em face de ameaças que lhes são comuns, têm vindo a gerar entre si uma cultura específica de segurança e defesa, num tempo em que uma afirmação própria da Europa neste domínio, complementar com o empenhamento de alguns dos seus Estados noutros compromissos estratégicos de natureza similar, se torna vital para o reforço da identidade e da capacidade de afirmação do próprio projeto europeu de integração política.

Eventuais argumentos de natureza financeira, avançados como limitativos para a nossa participação plena no projeto, parecem ignorar as sinergias políticas e de optimização dos recursos que este modelo integrador potencia e, muito em especial, não levam em linha de conta as importantes oportunidades que o novo modelo abre para as nossas indústrias de defesa.

Mas o mais importante é a questão política: Portugal não pode deixar de estar entre os fundadores da Cooperação Estruturada Permanente, o projeto mais estruturante do aprofundamento estratégico europeu.

Neste contexto, é importante reafirmar a necessidade imperativa de Portugal integrar o núcleo duro da Cooperação Estruturada Permanente no Conselho de Negócios Estrangeiros de 11 de Dezembro. O interesse nacional reclama que Portugal permaneça na linha da frente europeia no domínio central da defesa, em que sempre se destacou como produtor líquido de segurança internacional.


(Texto que hoje surge no jornal “Público” subscrito por Nuno Severiano Teixeira, António Vitorino, Francisco Seixas da Costa, Teresa Gouveia, Luis Amado, Vitor Martins, Carlos Gaspar, Paulo Sande, Figueiredo Lopes e Maria Carrilho)

O tempo e o modo



O governo vive tempos reconhecidamente complexos. O seu excecional estado de graça, que durou quase dois anos, ardeu em Pedrógão, agravou-se em Tancos, implodiu de forma fragorosa nos fogos de outubro e foi também infetado pela crise da “legionella”. 

Neste “trend” negativo, a excelente vitória autárquica do PS quase não teve efeito de contraponto, porque logo mergulhou os comunistas num desespero que os levou a soltar pelas ruas os sindicatos, tornando ainda mais difícil o desenho do orçamento para 2018, que Bruxelas já olha com perplexo sobrolho.

Pelo caminho, o PS perdeu um aliado vital: Passos Coelho, “bête noire” da esquerda da esquerda, cujas aparições pavlovianamente traziam a “troika” de volta à memória coletiva, o que muito atenuava as tentações de pôr termo à aliança contranatura com os “mencheviques” do Rato. Nem Rui Rio nem Santana Lopes, a menos que cometam o erro de dar palco em nome do PSD a figuras que convoquem à ideia os idos de 2011/15, constituem, por ora, uma alternativa ao antigo primeiro-ministro, em termos diabolização eficaz.

Depois, há Marcelo. Do descrispador papel de anti-Cavaco, por que Portugal ansiava, o presidente começou por fazer o que lhe competia no apoio a um governo que ele percebia ter ganho a sintonia com o país e que, com alguma sorte externa e muita habilidade interna, ia completando a quadratura do círculo – isto é, seduzir Shaüble e sorrir no dia-a-dia para os amigos lusos de Varoufakis. Marcelo cavalgou a onda de popularidade de António Costa mas teve a habilidade de ir criando um espaço próprio, através de uma coreografia de afetos que o deixou na crista da onda, quando o rebentamento caiu sobre o executivo. E, sem uma oposição para recolher os louros dos desaires do governo, o presidente acaba por ser - “by default” mas também, há que dizê-lo, de forma inteligente - o grande usufrutuário da situação. Hoje, para o bem e, em especial, para o mal, o presidente é o “provedor” dos portugueses, agora que uma parte significativa do país é atravessada por alguma insegurança.

António Costa pode recuperar deste momento difícil que vive? Para as Cassandras do “quanto pior melhor”, vive-se um fim de festa. Estou muito longe de pensar assim. É claro que já nada será como dantes, os desgastes não se recuperam e o cansaço com as caras faz estragos progressivos na credibilidade do projeto. A Geringonça pode não chegar ao fim, acho mesmo que são ínfimas as hipóteses de que isso venha a acontecer. Qual seria a vantagem para o PC de manter, até à véspera das próximas eleições legislativas, o apoio a um governo que vai ser o seu “bombo de festa” na campanha? Só que isso até é capaz de não ser mau para António Costa. E o PC sabe que Costa sabe que os comunistas sabem isso.

O bigode e o Thanksgiving


Devo ao "Tranksgiving", o Dia de Ação de Graças, a tradicional festa da família nos Estados Unidos, que ontem se comemorou, o facto de não usar bigode. Eu explico.

Aí por 1969, talvez para me dar um ar menos ortodoxo ou mais revolucionário, decidi passar a andar de pêra e bigode. Ao entrar para o meu primeiro emprego, em 1971, reduzi-me ao bigode, que continuei a utilizar no serviço militar e, mais tarde, na diplomacia, neste caso complementado com um cabelame que, posso imaginar!, deve ter então aterrado os meus novos chefes. Colocado como diplomata na Noruega, em 1979, "levei" comigo esse bigode de uma década, com que já tinha casado e "entrado" no 25 de abril. 

No ano em que completava três anos de Oslo, e se presumia fosse transferido, o meu embaixador de então disse-me: "Com o aspeto que esse bigode lhe dá, o MNE ainda o manda para a América Latina". Como sou dado a fartas coincidências, logo na semana seguinte recebi uma carta do nosso embaixador no México, que tinha sido meu diretor-geral, a convidar-me para ir trabalhar com ele (não fui, acabei por ir para Angola). Contei da carta ao meu embaixador, que, ufano da previsão, me retorquiu em inglês: "I told you so!".

Fiquei a matutar naquela coisa do bigode poder condicionar um percurso diplomático. É aqui que entra o "Thanksgiving". Nesse novembro de 1991 fomos convidados por casal da Embaixada americana para passar com eles essa festa da família. Lembro-me que nos tocou muito o gesto da Judy e do Bill Stevens, porque ao ambiente dessa ocasião só se partilha com os amigos mais chegados.

Na conversa depois do lauto jantar de perú, contei a história do bigode e da premonição do meu embaixador. O Bill, que tinha uma forte bigodaça, disse-me: "Por que é que não tiras o bigode? Olha! Se tirares o teu, eu também tiro o meu!". A conversa continuou e, a certo passo, ele propôs: "E se tirássemos já?". Imagino que foi alguma conjuntural euforia etílica que me levou a concordar. Minutos depois, regressámos ambos à sala sem os nossos fartos bigodes. No meu caso, interrompendo um hábito (e uma imagem) de cerca de 12 anos.

Lembro-me sempre do meu "falecido" bigode nas noites do Thanksgiving. Como a de hoje. E, às vezes, pergunto-me que será feito da Judy e do Bill Stevens, republicanos empedernidos, nesses tempos de Reagan, a quem eu provocava com a minha admiração por Jimmy Carter. Terão votado Trump?

quinta-feira, novembro 23, 2017

Remédios para as florestas

E se, em lugar do Infarmed, esse estranho “prémio de consolação” dado ao Porto pela perda da Agência europeia (eu, se fosse funcionário do Infarmed, com uma vida organizada desde sempre em Lisboa, também resistiria à transferência), o governo decidisse colocar na segunda cidade do país a nova empresa pública que vai ser criada para a gestão das florestas?

Olhar o Mundo


No programa “Olhar o Mundo”, da RTP, deste fim de semana, falo com António Mateus sobre a situação política na Alemanha e as mudanças em Angola e no Zimbabue, além de dez outros temas da cena internacional.

quarta-feira, novembro 22, 2017

Diplomacia Económica

Pelas 16.15 horas, 6ª feira, dia 24 de novembro, na Biblioteca da Imprensa Nacional, na rua da Escola Politécnica, 135, em Lisboa, farei a palestra de encerramento da Conferência Internacional “A Diplomacia Económica na Europa do Sul”

terça-feira, novembro 21, 2017

As bilhas



Imagino que haja pessoas, em especial senhoras, que vão detestar esta historieta. Mas ela, à sua maneira, ilustra um Portugal de um outro tempo que, até como exemplo negativo, vale a pena registar. Eram esses anos 1971/73, em que eu era funcionário da Caixa Geral de Depósitos. 

A pausa do almoço era entre as 12.30 e as 14.00 horas. Comia-se pelas tascas do Bairro Alto ou de Santa Catarina e, no final, aguardava-se a abertura da “porta grande”, impreterivelmente às duas horas, para iniciar o período da tarde. Nesses minutos que antecediam o nosso regresso ao trabalho em dias de sol, encostava-me, com alguns colegas, à parede fronteira à Caixa, entre a antiga Bijou do Calhariz e a estimável Tabacaria Martins, sob a placa antiga de mármore que refere as suas qualidades. 

Num dos dias iniciais desse meu primeiro emprego, vi surgir dos lados do Loreto a figura de um homem com um sorriso aberto, um ar que me pareceu um tanto atoleimado. Dirigiu-se ao nosso grupo e, pelo modo como foi recebido, logo percebi que era objeto de algum gozo entre os seus r meus camaradas de profissão. 

“Então, ó Meireles, como é que correu a jornada?”, ouvi da parte de um deles. O Meireles (o nome aqui não importa), respondeu: “Razoável! Razoável! Uma meia dúzia”. Nesse instante, a “porta grande”, no passeio em frente, abriu-se e todos nos precipitámos para ela. Fiquei sem saber o que diabo era a “jornada” do homem. 

Esqueci o assunto mas, dias depois, a cena repetiu-se: lá vi o tal Meireles juntar-se a nós, também sobre a hora de abertura da porta. Desta vez, a expressão usada por ele foi outra: “Quatro bilhas! Não foi mau!”. E toda a gente riu. 

Pela escadaria, a caminho da minha sala de trabalho, perguntei a um amigo o que era, afinal, aquela “contabilidade” de “bilhas”: “O Meireles é um pateta, um tarado sexual. Há anos que tem como diversão, à hora de almoço, passear pelo Camões e pelo Chiado e apalpar o rabo a senhoras, vindo depois para aqui anunciar quantas “bilhas” conseguiu fazer...”. Fiquei siderado. Que grande besta! Mas, pronto, era assim mesmo! 

O Meireles, ou lá como se chamava, correspondia a um modelo de javardo que, embora extremo, passava entre nós com alguma tolerância, e até algum divertimento por parte de quem, afinal, acedia ao seu convívio, na Lisboa desse tempo. 

Várias vezes, ao longo deste quase meio século, me tenho perguntado se o tal Meireles, ou lá como ele se chamava, não terá, algumas vezes, recebido, de algumas senhoras que molestava, um par de bem merecidos estalos. 

Lembrei-me deste episódio nesta altura em que uma reação bem saudável parece emergir na sociedade internacional (e na portuguesa, por arrasto) quanto ao respeito devido à dignidade das mulheres, posta então em causa por figuras do jaez do Meireles, ou lá como ele se chamava.

segunda-feira, novembro 20, 2017

Vida a sério

Começou a vê-lo, à distância, lá na praia. À medida que se aproximavam, os sorrisos foram-se abrindo. Conhecia-o, claro. Mas de onde? E como diabo é que o homem se chamava? E o que é que fazia?

O outro tinha melhor memória: “Então, meu caro?! Que gosto em ver-te! Já te reformaste? Deixaste a vida das embaixadas?”

O interpelado lá deu nota do que já não fazia. Mas continuava a não se lembrar minimamente quem era o seu efusivo “amigo”, onde se tinham conhecido, o que é que ele fazia. Ainda teve esperança de que a conversa trouxesse alguma referência que pudesse ajudar a perceber quem era. Mas nada! A medo, medindo cuidadosamente as palavras, até para retribuir a atenção personalizada de que estava a ser alvo, perguntou: “E tu, o que é que, nos últimos tempos, tens vindo a fazer na vida?”

A cara e o sorriso do outro fecharam-se um pouco: “Ora essa! Estou no governo, como sabes! Sou secretário de Estado”.

Há, de facto, dias infelizes! Não querendo dar a impressão de que desconhecia a importante ocupação governativa que o seu “amigo” se atribuía, saiu-lhe então esta “pérola”, o que acabou por ser “pior a emenda do que o soneto”: “Eu sei! Eu sei! Não é isso! Eu estava a referir-me a vida a sério, trabalho, etc...”

Posso garantir que isto não se passou comigo.

"Então e o ... ?"

Agora, parece que anda na moda. Fala-se ou escreve-se sobre um determinado assunto e é certo e sabido que aparece logo um fabiano a dizer: ...