sexta-feira, dezembro 01, 2017

O lorgnon do senhor Lito


Neste dia do ano em que, evocando outros tempos, me reúno às vezes em Vila Real com gente da minha geração, numa tradicional “ceia” do “primeiro de dezembro”, deu-me para contar uma história, também desses outros tempos, passada com dois amigos vila-realenses, antigos colegas de escola primária.

Foi em 1967, há precisamente 50 anos. Ao final de uma manhã, bateram à porta da casa do Porto onde eu tinha um quarto alugado, como estudante, na rua Miguel Bombarda. O Olívio Carvalho e o Domingos Lito tinham chegado no Cabanelas, o autocarro que ligava Vila Real ao mundo - através das curvas do Marão, com paragem no Príncipe, no largo do Arquinho, em Amarante, e um cheiro a regueifas vendidas na camionete por uma senhora de bigode, à passagem por Paredes. 

A deslocação tinha como finalidade proceder à operação de venda, por um preço que esperavam ir ser uma imensa “nota”, de um velhíssimo lorgnon, uns óculos manuais que teriam pertencido ao avô do Domingos, o Senhor Lito, um histórico e abastado comerciante da cidade. O Olívio vinha coadjuvar tecnicamente a operação, com a sua consabida lábia e o olho para as antiguidades que, curiosamente, iria marcar muito do seu percurso profissional futuro.

De mim, a expedição apenas pretendia o que julgavam ser o meu conhecimento da cidade do Porto, das suas lojas mais credenciadas, onde o negócio pudesse vir a fazer-se com maior proveito. A porta onde tinham batido era, contudo, fraca: eu não sabia rigorosamente nada de antiguidades, conhecia apenas as montras de alguns estabelecimentos comerciais do ramo. Lá lhes dei duas ou três dicas e fui vagamente para umas aulas, mais para cumprir calendário do que com qualquer outro propósito útil. (Nesse ano, eu haveria de concluir apenas mais uma cadeira do meu curso, mantendo o hábito estreado no ano anterior. Meses depois, desistiria dessa opção académica. É que, a ter continuado a esse ritmo unitário anual, julgo que estaria a acabar Engenharia Eletrotécnica mais ou menos por este ano ...).

Combinámos encontrar-nos ao fim da tarde, no Estrela d’Ouro, um café na rua da Fábrica onde eu fingia que estudava e bilharava bastante mais. A cara com que o par de conterrâneos fez a sua entrada no café não prenunciava a realização de um negócio estrondoso. O Domingos vinha murcho com o escasso encaixa de capital que fizera. Como teorizou o Olívio, havia no mercado das antiguidades portuenses um excesso de lorgnons, pelo que a verba recolhida ficara aquém das expetativas. Mesmo assim, se eu lhes pudesse dar guarida nessa noite, o dono da “massa” ofereceu-se para pagar uma jantarada e um copo, regressando a dupla à “Bila” no Cabanelas da manhã seguinte.

Com o meu colega de quarto ausente, ofereci-lhes a sua cama, imagino que com algumas ironias machistas sobre o modo de partilha do leito. E lá partimos para a noite do Porto, esse sim, o verdadeiro curso que por ali eu andava a tirar...

Jantámos, muito bem, na Regaleira, no primeiro andar do Bonjardim. No final, generoso, o Domingos fez as contas: sobravam ainda algumas boas notas. Propus irmos beber um vermute (estava na moda) à Tentativa. Era cedo, o ambiente estava fraco, mas, mesmo assim, foi-nos difícil arrancar dali o Domingos, já embeiçado por uma pequena que lhe esportulou umas bebidas carotas. Dali, rumámos à Candeia, um pouso mais interessante na rua do Almada, onde alguma regularidade me dava um acesso franqueado. O strip na cave estava prestes a começar e aí foi o Olívio que se distraiu e mandou vir umas garrafas de Magos a mais, a pedido de uma jovem oriunda do nosso império. Sem haver outros fundos disponíveis, lá teve o Domingos que pagar a despesa, o que provocou um rombo considerável no pecúlio que sobrava da venda do lorgnon. Se o álcool tinha arruinado a contabilidade do Domingos, também a tornava menos relevante no seu espírito, pelo que, “perdidos por cem”, ainda lhes fui mostrar as delícias baratuchas da Japonezinha, na praça da República. A carteira do Domingos já não dava, porém, para aventuras de monta, muito menos para um qualquer “follow up” romântico, pelo que restou aproveitar o histórico baile com que a noite fechava. 

Regressámos, um tanto cabisbaixos e um pouco toldados, à casa onde eu vivia, onde o pé-ante-pé que pedi para o acesso discreto ao meu quarto se transformou, subitamente, num tropel que acordou a idosa dona da casa, que não deixaria mais tarde de me vir fazer observações críticas sobre o uso imoderado que às vezes eu fazia das instalações. 

O pior seria o acordar, na realidade. Feitas as contas à luz crua do dia, o Domingos constatou ter ficado apenas com uns parcos trocos, como saldo da venda do lorgnon. E tive mesmo de ser eu a entrar com uma pequena ajuda para a compra dos bilhetes do Cabanelas, no regresso a casa do par de menos bem sucedidos vendedores de ocasião. 

O Olívio já se foi, o Domingos perdi-o de vista há muito. Lembrá-los neste dia de encontro geracional pareceu-me uma boa ideia.

4 comentários:

Rui C. Marques disse...

Como sempre,meu caro Francisco,um excelente "café"pela manhã.

Joaquim de Freitas disse...

Direi que é um hino à amizade e à solidariedade, do qual a nostalgia emerge. Gosto deste género de sentimentos. Bravo.

Anónimo disse...

Ora aí está, um curso prático de finanças portuguesas!...

Augie Cardoso, Plymouth, Conn. disse...

@ anonimo 16:34,
Bem certo e MAis, do "curso pratico", pataca herdada pataca gasta.....

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...