Neste dia do ano em que, evocando outros tempos, me reúno às vezes em Vila Real com gente da minha geração, numa tradicional “ceia” do “primeiro de dezembro”, deu-me para contar uma história, também desses outros tempos, passada com dois amigos vila-realenses, antigos colegas de escola primária.
Foi em 1967, há precisamente 50 anos. Ao final de uma manhã, bateram à porta da casa do Porto onde eu tinha um quarto alugado, como estudante, na rua Miguel Bombarda. O Olívio Carvalho e o Domingos Lito tinham chegado no Cabanelas, o autocarro que ligava Vila Real ao mundo - através das curvas do Marão, com paragem no Príncipe, no largo do Arquinho, em Amarante, e um cheiro a regueifas vendidas na camionete por uma senhora de bigode, à passagem por Paredes.
A deslocação tinha como finalidade proceder à operação de venda, por um preço que esperavam ir ser uma imensa “nota”, de um velhíssimo lorgnon, uns óculos manuais que teriam pertencido ao avô do Domingos, o Senhor Lito, um histórico e abastado comerciante da cidade. O Olívio vinha coadjuvar tecnicamente a operação, com a sua consabida lábia e o olho para as antiguidades que, curiosamente, iria marcar muito do seu percurso profissional futuro.
De mim, a expedição apenas pretendia o que julgavam ser o meu conhecimento da cidade do Porto, das suas lojas mais credenciadas, onde o negócio pudesse vir a fazer-se com maior proveito. A porta onde tinham batido era, contudo, fraca: eu não sabia rigorosamente nada de antiguidades, conhecia apenas as montras de alguns estabelecimentos comerciais do ramo. Lá lhes dei duas ou três dicas e fui vagamente para umas aulas, mais para cumprir calendário do que com qualquer outro propósito útil. (Nesse ano, eu haveria de concluir apenas mais uma cadeira do meu curso, mantendo o hábito estreado no ano anterior. Meses depois, desistiria dessa opção académica. É que, a ter continuado a esse ritmo unitário anual, julgo que estaria a acabar Engenharia Eletrotécnica mais ou menos por este ano ...).
Combinámos encontrar-nos ao fim da tarde, no Estrela d’Ouro, um café na rua da Fábrica onde eu fingia que estudava e bilharava bastante mais. A cara com que o par de conterrâneos fez a sua entrada no café não prenunciava a realização de um negócio estrondoso. O Domingos vinha murcho com o escasso encaixa de capital que fizera. Como teorizou o Olívio, havia no mercado das antiguidades portuenses um excesso de lorgnons, pelo que a verba recolhida ficara aquém das expetativas. Mesmo assim, se eu lhes pudesse dar guarida nessa noite, o dono da “massa” ofereceu-se para pagar uma jantarada e um copo, regressando a dupla à “Bila” no Cabanelas da manhã seguinte.
Com o meu colega de quarto ausente, ofereci-lhes a sua cama, imagino que com algumas ironias machistas sobre o modo de partilha do leito. E lá partimos para a noite do Porto, esse sim, o verdadeiro curso que por ali eu andava a tirar...
Jantámos, muito bem, na Regaleira, no primeiro andar do Bonjardim. No final, generoso, o Domingos fez as contas: sobravam ainda algumas boas notas. Propus irmos beber um vermute (estava na moda) à Tentativa. Era cedo, o ambiente estava fraco, mas, mesmo assim, foi-nos difícil arrancar dali o Domingos, já embeiçado por uma pequena que lhe esportulou umas bebidas carotas. Dali, rumámos à Candeia, um pouso mais interessante na rua do Almada, onde alguma regularidade me dava um acesso franqueado. O strip na cave estava prestes a começar e aí foi o Olívio que se distraiu e mandou vir umas garrafas de Magos a mais, a pedido de uma jovem oriunda do nosso império. Sem haver outros fundos disponíveis, lá teve o Domingos que pagar a despesa, o que provocou um rombo considerável no pecúlio que sobrava da venda do lorgnon. Se o álcool tinha arruinado a contabilidade do Domingos, também a tornava menos relevante no seu espírito, pelo que, “perdidos por cem”, ainda lhes fui mostrar as delícias baratuchas da Japonezinha, na praça da República. A carteira do Domingos já não dava, porém, para aventuras de monta, muito menos para um qualquer “follow up” romântico, pelo que restou aproveitar o histórico baile com que a noite fechava.
Regressámos, um tanto cabisbaixos e um pouco toldados, à casa onde eu vivia, onde o pé-ante-pé que pedi para o acesso discreto ao meu quarto se transformou, subitamente, num tropel que acordou a idosa dona da casa, que não deixaria mais tarde de me vir fazer observações críticas sobre o uso imoderado que às vezes eu fazia das instalações.
O pior seria o acordar, na realidade. Feitas as contas à luz crua do dia, o Domingos constatou ter ficado apenas com uns parcos trocos, como saldo da venda do lorgnon. E tive mesmo de ser eu a entrar com uma pequena ajuda para a compra dos bilhetes do Cabanelas, no regresso a casa do par de menos bem sucedidos vendedores de ocasião.
O Olívio já se foi, o Domingos perdi-o de vista há muito. Lembrá-los neste dia de encontro geracional pareceu-me uma boa ideia.
4 comentários:
Como sempre,meu caro Francisco,um excelente "café"pela manhã.
Direi que é um hino à amizade e à solidariedade, do qual a nostalgia emerge. Gosto deste género de sentimentos. Bravo.
Ora aí está, um curso prático de finanças portuguesas!...
@ anonimo 16:34,
Bem certo e MAis, do "curso pratico", pataca herdada pataca gasta.....
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