domingo, dezembro 03, 2017

A cor do Filipe


O Filipe tinha uma figura pequena, magra, com um permanente e simpático sorriso de boa pessoa que era. Filho de um dos muitos irmãos do meu avô e, com um rancho de rebentos, ficara a viver em Bornes de Aguiar, dedicado à pequena agricultura.

Quando, pelos Verões, na Páscoa ou fins-de-semana, o meu avô, no seu tropismo eterno pela terra onde nascera, regressava de Vila Real a Bornes, rara era a noite em que o Filipe não surgia pela Casa do Pereiro, para dois dedos de conversa com o "tio doutor". Nos bancos da varanda à volta do pátio ou no escano da lareira, o Filipe atualizava então o meu avô sobre a vida da aldeia, desde as colheitas da Quinta da Pala, onde o Filipe vivia, a caminho de Eiriz, até às saídas para a tropa ou para a emigração, que iam deixando a aldeia cada vez mais cheia de velhos e viúvas de vivos.

Lembrei-me ontem do Filipe, o Filipe da Pala, como dizíamos. Isso acontece sempre que visito o cemitério de Bornes. Na sua campa, junto da qual sempre passo, com fotografia ligeiramente sorridente, está a data da sua morte, que é precisamente a do meu casamento.

O Filipe tinha uma imensa paciência para mim, que, desde a infância, passava por Bornes curtas temporadas com os meus avós. Levava-me a passeios de conversa pelo Fundo de Vila ou pelo Porto, uma zona que ia dar ao Cruzeiro, no coração da aldeia, junto à capela. 

Era no Cruzeiro que se situava uma das perdições do Filipe: a "venda" do Chico. Naquela casa, onde se vendia um pouco de tudo, propriedade de um outro primo, o Filipe passava de quando em vez, para beber uma "pinga" e ficar à conversa com a gente lá da aldeia. Às vezes, algum exagero nas doses ruborizava-lhe as faces, mas, que eu saiba, nunca se lhe alteravam os espíritos de forma dramática. Mas foi assim que, numa noute, chegou a casa do meu avô, no final de um jantar. Recordo-me tão bem!

O meu avô era um compulsivo inventor de cenas divertidas e, numa dessas noites, o seu sobrinho Felipe, de quem ele muito gostava, acabou por ser a vítima incauta de uma dessas partidas, que ficou para sempre na memória alegre da família. 

Apelando ao conhecimento vinícola do Felipe, o meu avô pediu-lhe a opinião sobre um vinho tinto de que alguém lhe tinha oferecido um garrafão: "Ó Filipe, tu que sabes de vinhos é que me podias dizer o que é que achas desta "pinga", que me trouxeram de Vila Pouca". E encaminhou-se para um armário, adiantando já que o tal vinho lhe parecia "demasiado encorpado". Mas o sobrinho é que ia dizer de sua justiça.

O Filipe, que, àquela hora e naquela noite, já tinha ligeiramente mais do que a sua conta, ainda pretextou falta de conhecimentos para estar à altura da responsabilidade da tarefa que o tio Francisco lhe destinava, mas lá acabou por aceder a dar o seu parecer, não fossem serem postos em causa os seus créditos de alegado conhecedor. O meu avô trouxe-lhe então um copo cheio, que o Filipe começou por levantar e olhar à transparência de uma lâmpada, decretando: "Lá boa cor tem ele!"

Depois, inclinou o copo para beber e - surpresa das surpresas! - nada lhe entrou na boca. O copo continuava cheio mas o seu conteúdo não deslizava. Pudera!, era geleia, feita pela minha avó, que a distribuíra por vários recipientes, entre os quais alguns copos sem pé! O Filipe, perplexo, olhava o copo, com os circunstantes ainda sem entenderem o que se estava a passar, com o meu avô a explodir de riso contido. Levemente toldado como estava, e não tendo ainda identificado o conteúdo do copo, saiu-lhe então uma frase que ficou nos nossos anais familiares: "Até hoje, nunca nenhum se me tinha negado!"

4 comentários:

Anónimo disse...

Por estas e por outras é que vexa devia ser raptado e obrigado a escrever o livro que tanto quer negar aos seus leitores!...

(Os raptores deverão, no entanto, cuidar de lhe levar sempre uns pitéus dos restaurantes que recomenda no seu http://pontocome.blogspot.pt..., isto claro, no caso de colaborar...)

Não vai ter hipótese, renda-se já. Escreva o livro, poupe-nos o trabalho. Tenho a certeza que depois de ficar fechado 24 horas numa cave a ouvir discursos do Martins da Cruz em loop e/ou a ver vídeos do Alberto João a dançar em slip, vexa não resistirá mais. Aproveite. Não queira passar por esse opróbrio. Colabore.

Apesar de ser eu apenas que lhe escrevo, verá que somos muitos

Não pense que escapa assim!...


Cícero Catilinária disse...

Deixo aqui o meu total apoio à sugestão do "postador" das 4:09.

José Sousa disse...

LINDO!!!
Com tantas histórias como esta daria certamente um livro extenso mas apetecível e delicioso de ler.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Mais uma assinatura reividicando o livro!

Francisco de Sousa Rodrigues

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...