segunda-feira, abril 15, 2019
O bibinha
A manifestação patriótica corria a preceito, naquele entusiasmo encenado com que o Estado Novo conseguia, numa sustentada coreografia, colocar o povo nas praças, para as fotografias que, no dia seguinte, "A Voz", o "Novidades", o "Diário da Manhã" (que a oposição citava sempre sem o til), mas também o inefável "Diário de Notícias" e o ritualista “O Século” trariam na primeira página, a testemunhar o "inquebrantável apoio de Portugal à política de Salazar". O qual, diga-se, raramente se dignava estar presente nesses exercícios, deixando ao "venerando Chefe de Estado", Américo Tomaz, a função de pobre catalisador das emoções orquestradas. "Paletes" de autocarros, pagas pelo erário, arrebanhavam patriotas ocasionais, de fato e gravata, através das cidades, vilas e aldeias, que eram dispensados dos empregos e tinham ração garantida para o dia, empunhando faixas que espelhavam a imensa diversidade dos "sindicatos" do regime.
Não fosse tudo isso ter, por detrás, uma longa e sinistra ditadura, a que se somou uma sangrenta guerra colonial, e tudo até poderia ter alguma graça, dando origem a comédias a preto-e-branco. Não sendo as coisas assim, não podendo Peponne discutir com don Camillo, o humor político disponível tinha de ser procurado nos ridículos do regime.
Nesse dia, naquela Braga de onde o efémero Gomes da Costa arrancara num famigerado Maio, concelebrava a mobilização das hostes António Santos da Cunha, uma avantajada figura da "situação", homem de voz tonitruante, que, durante anos, desempenhou as funções com que o regime controlava as coisas por lá: foi presidente da União Nacional, presidente da Câmara municipal e Governador civil. Já não recordo em qual destas duas últimas funções atuava na ocasião em que, como era hábito, ressoavam, nos discursos, saídos da velha varanda bracarense onde aquelas cenas sempre se oficiavam, as imaginativas referências ao Portugal "pluricontinental e pluriracial" ou "do Minho a Timor" (o que ali vinha geograficamente a jeito), as loas à sabedoria histórica do "senhor presidente do Conselho", no meio do gongorismo retórico com que o regime organizava a turbamulta tresmalhada, sob o olhar fardado dos polícias e os ouvidos, atentos e dispersos, dos "pides".
António Santos da Cunha atiçava, nessas horas, o patriotismo oficioso, com intervenções entre os vários discursos, feitas de menções às figuras presentes ou a quantos fosse importante lembrar na ocasião, apelando às hostes para, individual e nominalmente, os saudarem. O ausente Salazar e o chefe de Estado recolhiam, como era natural, o grosso da coluna dos aplausos e dos "vivas", mas os ministros e outros dignitários presentes recebiam também, à escala da sua importância, uma quota-parte dessas conclamações. Tudo era feito com conta e peso, medido o nível das personagens. Santos da Cunha, que era um hábil profissional desses instantes, sabia bem o que fazia, organizando sempre em pormenor essa estudada improvisação.
Um qualquer obscuro subsecretário de Estado (o Estado Novo, até certa altura, foi muito parcimonioso no uso da figura de "secretário de Estado"), vindo de Lisboa na comitiva do "venerando chefe de Estado", ter-lhe-á, a certo momento da manifestação, lançado um olhar inquisitivo, como que a demandar que o seu nome também fosse sufragado pelo vozeirão do edil e pelo subsequente eco da multidão. Santos da Cunha olhou-o, e não conseguindo atenuar o seu tom habitual, sossegou-o, à distância, com os "bês" do Norte, numa frase que ficou no anedotário da "situação":
- O "bibinha" de Vocência, senhor subsecretário de Estado, sai já a seguir, esteja descansado!
Braga não é apenas a cidade do país que deu origem a mais expressões populares, como ontem aqui notei. É também, mas admito que possa estar enganado na minha “contabilidade”, aquela em que me parece que a estatuária urbana mais preserva, pelas figuras que celebra, alguns peculiares tempos políticos, antes e depois do 25 de abril.
Há pouco, em Braga, ao passar pelo monumento a Santos da Cunha, lembrei-me desta historieta. Verdadeira, claro.
domingo, abril 14, 2019
O padre David
Há tempos, num telejornal, foi entrevistada uma certa figura. E logo me veio à memória uma história passada com ela.
Algures nos anos 80, eu havia sido encarregado, em funções que então desempenhava, de receber essa pessoa. Vinha, muito bem recomendada, colocar-me um problema "sério". Ele e outros empresários tinham iniciado a construção de um lar para estudantes oriundos de certos países estangeiros, os quais, por perderem frequentemente as bolsas de estudo oficiais, por falta de aproveitamento, necessitavam de garantir alojamento para prolongarem a sua estada no nosso país. Os motivos desses empreendedores estavam longe de ser apenas altruístas: todos os estudantes que pretendiam beneficiar eram familiares de responsáveis, políticos e administrativos, desses países, os quais tinham direta influência na concretização de negócios com as empresas dos amáveis empresários lusitanos. Estava-se a ver o "filme"...
À partida, a questão parecia-me cristalina. Cada um procede como quer e pode, financia quem lhe interessa. Só não percebia o que é que o MNE tinha a ver com isso. Mas o meu interlocutor não tardou a ir direto ao que vinha: os empresários achavam que já tinham feito a sua parte, lançando as bases para o tal empreendimento, pelo que "cabia agora ao Estado" entrar com a restante verba necessária, que deveria representar cerca de 75% do custo total, o que, recordo, era um valor bastante elevado.
Expliquei ao senhor - que me pareceu ser um devotado cultor do lema "menos Estado, melhor Estado e o que dele sobrar fica para nós" - que as verbas para finalidades similares já estavam afetadas e que, em especial, o caso que apresentava não se enquadrava minimamente nas prioridades de financiamento que tínhamos definido. O nosso objetivo era concentrar a ajudas nos estudantes com aproveitamento, não nos "calões" de boas famílias. Pelo que a nossa resposta tinha de ser, muito simplesmente, negativa.
O cavalheiro abespinhou-se. Os seus contactos anteriores tê-lo-iam feito presumir um resultado diferente para a diligência. E logo adiantou que, a confirmar-se uma resposta negativa da nossa parte, se veriam "obrigados" a ir para a imprensa, denunciando o "desinteresse" das entidades oficiais do setor.
Aí, "passei-me", e disse-lhe mais: que não tinha gostado nada da forma pressionante como a questão me fora colocada, e que, desde logo lhe podia assegurar, o Estado não cederia àquilo que era claramente uma espécie de chantagem. Atenta a gravidade da "ameaça" mediática que fizera, ia transmitir superiormente, "para os devidos efeitos", o respetivo teor, pormenorizando no texto que ia elaborar, as reais finalidades do projeto e detalhando os interesses que estavam por detrás dele. E adiantei: "Sabe?, no mau sentido, o senhor fez-me recordar a história do padre David". O homem, que já estava furioso, ficou também perplexo.
E contei-lhe que, nos meus tempos de infância, recebiam-se, em minha casa, umas cartas angustiadas, tipo circular, assinadas pelo padre David, de Ruílhe e Aveleda, localidades perto de Braga. Invariavelmente, o sacerdote explicava que tinha iniciado a construção de casas para famílias pobres, que já tinha as fundações, mas que precisava de dinheiro para todo o resto da construção. Até aí tudo bem, porque era obra altamente meritória. Só que, no arrazoado argumentativo, o padre David adiantava que, se não contribuíssemos, o projeto não avançaria, pelo que a responsabilidade de um eventual insucesso ficava exclusivamente nas nossas mãos. Eu era criança e esta pressão pouco subliminar, que vinha embrulhada numa linguagem religiosa que prenunciava retaliações divinas para quem se mostrasse relutante a cooperar, impressionou-me então muito. E sempre me interroguei por que diabo havíamos nós de ficar com o odioso da obra incompleta, só porque o padre David haviam colocado o carro à frente dos bois. Com as melhores intenções do mundo, o qual, como é sabido, está cheio delas.
O nosso homem - em lugar de se sentir elogiado com a equiparação ao generoso padre... - ficou furioso, disse que se ia queixar de mim, saindo pela porta fora. Se o fez ou não, não sei. Nunca ninguém me disse nada, tendo eu cumprido a promessa de relatar, por escrito e com gozo, o episódio. Desde então, nunca mais o encontrei. Terão feito a obra?
Ontem, cumprindo um desejo há muito alimentado, fui a Ruílhe, ver a obra do Padre David, figura justamente venerada por lá. As tais casas para pobres ainda hoje lá estão, hoje um pouco descaraterizadas pelos novos proprietários, misturadas com outras - como se vê na imagem, onde surge o busto do empreendedor sacerdote. Finalmente - algum dia havia de ser - encontrei-me com a minha metáfora...
sábado, abril 13, 2019
Braga
“Ver Braga por um canudo”, isto é, acabar por perder as oportunidades, um pouco como “ficar a ver navios”. Parece ter origem no monóculo existente no Bom Jesus, através do qual se vê a cidade, mas à distância.
“Ir abaixo de Braga”, que é como “ir à fava” ou ainda a lugar pior. Dever-se-á ao facto de, para uma zona então mais baixa do que o centro da cidade, escoarem no passado os lixos e dejetos urbanos, tornando empestado e desagradável o lugar.
“É de Braga!”, diz-se de alguém que deixa as portas abertas atrás de si. A doutrina aqui divide-se. Há quem diga que tal se deve ao facto da cidade, contrariamente a outras, não ter tido nunca uma porta física na sua entrada principal, a Porta Nova, outros dizem ser uma expressão papal à chegada de um arcebispo a Roma.
“Isso é mais velho do que a Sé de Braga!”, significa que é muito antigo, porque a sé, na cidade, é dos edifícios construídos há mais tempo.
Finalmente, o leitor já ouviu dizer “chove em Braga”? Não? Mas olhe que, embora não muito, está mesmo a chover em Braga!
Os contabilistas
Há estadistas e há contabilistas. Paulo Guedes, ministro da Fazenda do Brasil, parece estar a alimentar a ideia de vender algumas embaixadas daquele que ainda é considerado um dos mais prestigiados serviços diplomáticos do mundo.
Não se trata de uma atitude inédita. Na história política portuguesa contemporânea, também tivemos algumas luminárias que pretenderam desfazer-se de alguns dos mais importantes edifícios que o Estado, desde há muito, possui. Passá-los “a patacos” reduziria pontualmente uns centésimos de dívida, mas privaria o país de um património dificilmente recuperável no futuro. Além de que faria com que o país perdesse definitivamente valores que só se reforçam com o tempo e cuja posse é um fator de prestígio a que só essas simplórias figuras não são sensíveis.
Por uma sorte de que felizmente nos podemos felicitar, os prédios de Belgrave Square, da rue de Noisiel e um dos belos edifícios que Portugal possui em Roma não foram, numa certa fase, “à vida”. Até o próprio Palácio das Necessidades, segundo vim há tempos a saber, correu sérios riscos!
Em tempos mais recentes, dois secretários do Estado (a que isto chegou) conseguiram mesmo o feito de delapidar algum património. Um deles conseguiu dar cabo do fantástico apartamento que existia no Dakota Building, em Nova Iorque. Outro, com toques de Torquemada, levou à prática, na Europa, algumas patifarias de idêntico jaez. Este último, um dia, na casa de um diplomata, olhou as estantes e perguntou: “para que é que você quer tanto livro?”. O nosso colega, amável, deu-lhe uma resposta educada. Foi pena.
É isso: às vezes, lá pela nossa (no meu caso, antiga) casa, passam uns contabilistas, trevestidos de estadistas.
sexta-feira, abril 12, 2019
Mário Vilalva
Há algumas semanas, li nos jornais a notícia da nomeação de Mário Vilalva para dirigir a Apex Brasil, a agência de promoção económica brasileira.
O Mário é um amigo de há muito. Os portugueses, país onde de tornou “one of us”, conhecem-no como uma dos mais brilhantes embaixadores que o Itamaraty por cá alguma vez colocou. Com a sua competência profissional e simpatia, o Mário e a Vânia conferiram uma centralidade rara à embaixada brasileira em Lisboa. Um dia, acabado o seu tempo, como por aqui assinalei, foram destacados para Berlim, um posto maior e prestigiante, em qualquer carreira diplomática.
Eu havia cruzado bastante o Mário Vilalva em Brasília, ao tempo em que ele dirigia o departamento de promoção comercial do Ministério das Relações Exteriores, num período que foi de grande dinamismo, que o levou a ser um “globetrotter” profissional, até com custos para a saúde. Dali saiu para a embaixada brasileira no Chile, com Lisboa como destino posterior de uma carreira brilhante.
Volto agora onde comecei. O Mário aceitou - e dificilmente haveria alguém tão bem qualificado para o fazer - dirigir a Apex, naquela que foi uma das raras nomeações consensuais do governo Bolsonaro. A imprensa brasileira foi unânime sobre o acerto dessa escolha. Mas, como diria Camões sobre a sina da bela Inês, afinal tratava-se de um “engano da alma, ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito”. Há dias, depois de apenas algumas escassas semanas de exercício de funções, o Mário foi afastado da Apex. Leiam este artigo da cada vez mais indispensável “Piauí” para perceber melhor o que se passou.
Caro Mário, sei que represento alguns dos seus muitos amigos portugueses ao enviar-lhe, por esta via, um abraço de ânimo e de muita admiração.
quinta-feira, abril 11, 2019
A toalha
Decidi que, nesse dia, a embaixada não faria (ainda) qualquer declaração à imprensa, que nos batia aos telefones. Não obstante a insistência de um canal de televisão, disse estar indisponível para ir em direto à sua edição da noite, como fizera, por duas vezes, em semanas anteriores, em outros canais. Não sabia (ainda) o que dizer. Era o dia seguinte ao pedido de ajuda de Portugal. Foi há oito anos.
É talvez cedo para se saber como os outros embaixadores portugueses, nas principais capitais, viveram essas dramáticas semanas. No meu caso, em Paris, acompanhava, dia após dia, as diligências que Lisboa ia anunciando, para tentar escapar ao pedido de ajuda externa. As coisas tinham, em absoluto, deixado de passar por nós: os contactos relevantes faziam-se entre os gabinetes dos chefes de governo. Por algum tempo, cabia-nos tentar explicar a posição oficial, alheios que tínhamos de ser à tensão política que se vivia em Lisboa – os dissídios em torno do PEC IV, com o Presidente da República pelo meio.
Com o passar dos dias, ficava claro que as coisas se aceleravam. Era o tempo da coreografia declinante de Portugal na mão das agências de notação, o crescente “downgrading” da nossa dívida soberana, o disparar do “spread” dos nossos “bonds” a 10 anos. Tudo isso, com angústia, eu acompanhava, pelas manhãs, ao abrir o Financial Times.
Nessas semanas, passara a ser chamado a falar a rádios e, um pouco menos, em televisões. Nunca antes, como embaixador em Paris, me fora dada tanta “atenção”, embora neste caso não pelas melhores razões. Sem dificuldade, publicava os artigos que quisesse na imprensa francesa. A minha “narrativa” era sempre a mesma: defesa dos índices favoráveis conhecidos, denúncia do “exagero” das avaliações das agências de rating, afirmação de que ainda era possível dispensar a ajuda externa. Era a diplomacia na hora, sem rede. Como dizem os americanos: “my country, right or wrong.”
A partir de certa altura, Lisboa, como fonte de instruções, foi-se evanescendo. Telefonava a colegas portugueses noutros postos e todos comungavam do mesmo desconhecimento. Para além das declarações públicas, nada mais transpirava. Os escassos responsáveis políticos portugueses que consegui contactar também já não sabiam como ajudar. Representar um país por pressentimento é muito difícil.
Por aqueles dias do fim, senti uma estranha solidão e, em especial, a angústia de não saber o que fazer (ou se devia fazer algo), como representante de Portugal junto de um dos mais importantes países do mundo. Alguém costuma dizer que não há boa política externa sem boa política interna. Quando esta última se fragiliza a nossa capacidade de interlocução desaparece, de um dia para o outro. Foi o caso.
Recordarei para sempre uma conversa com um alto responsável do Eliseu, que, tendo-me chamado, teve a sensibilidade de não me inquirir para além daquilo que ele sabia que eu podia dizer (e saber), mas que me deixou palavras de discreto conforto, sem, contudo, as fazer soar de forma paternalista.
Depois, a toalha caiu no ringue. E o discurso mudou. É assim a vida de um diplomata, em democracia.
É talvez cedo para se saber como os outros embaixadores portugueses, nas principais capitais, viveram essas dramáticas semanas. No meu caso, em Paris, acompanhava, dia após dia, as diligências que Lisboa ia anunciando, para tentar escapar ao pedido de ajuda externa. As coisas tinham, em absoluto, deixado de passar por nós: os contactos relevantes faziam-se entre os gabinetes dos chefes de governo. Por algum tempo, cabia-nos tentar explicar a posição oficial, alheios que tínhamos de ser à tensão política que se vivia em Lisboa – os dissídios em torno do PEC IV, com o Presidente da República pelo meio.
Com o passar dos dias, ficava claro que as coisas se aceleravam. Era o tempo da coreografia declinante de Portugal na mão das agências de notação, o crescente “downgrading” da nossa dívida soberana, o disparar do “spread” dos nossos “bonds” a 10 anos. Tudo isso, com angústia, eu acompanhava, pelas manhãs, ao abrir o Financial Times.
Nessas semanas, passara a ser chamado a falar a rádios e, um pouco menos, em televisões. Nunca antes, como embaixador em Paris, me fora dada tanta “atenção”, embora neste caso não pelas melhores razões. Sem dificuldade, publicava os artigos que quisesse na imprensa francesa. A minha “narrativa” era sempre a mesma: defesa dos índices favoráveis conhecidos, denúncia do “exagero” das avaliações das agências de rating, afirmação de que ainda era possível dispensar a ajuda externa. Era a diplomacia na hora, sem rede. Como dizem os americanos: “my country, right or wrong.”
A partir de certa altura, Lisboa, como fonte de instruções, foi-se evanescendo. Telefonava a colegas portugueses noutros postos e todos comungavam do mesmo desconhecimento. Para além das declarações públicas, nada mais transpirava. Os escassos responsáveis políticos portugueses que consegui contactar também já não sabiam como ajudar. Representar um país por pressentimento é muito difícil.
Por aqueles dias do fim, senti uma estranha solidão e, em especial, a angústia de não saber o que fazer (ou se devia fazer algo), como representante de Portugal junto de um dos mais importantes países do mundo. Alguém costuma dizer que não há boa política externa sem boa política interna. Quando esta última se fragiliza a nossa capacidade de interlocução desaparece, de um dia para o outro. Foi o caso.
Recordarei para sempre uma conversa com um alto responsável do Eliseu, que, tendo-me chamado, teve a sensibilidade de não me inquirir para além daquilo que ele sabia que eu podia dizer (e saber), mas que me deixou palavras de discreto conforto, sem, contudo, as fazer soar de forma paternalista.
Depois, a toalha caiu no ringue. E o discurso mudou. É assim a vida de um diplomata, em democracia.
quarta-feira, abril 10, 2019
A nortada
Creio que nunca como nos nossos dias falamos tanto do clima. Verdade seja que poucas vezes houve razões tão ponderosas para que isso sucedesse. A consciência de que a vontade dos céus, por milénios tida como imprevisível e decisiva, afinal pode ser modulada, para o bem ou para o mal, pelos comportamentos terrenos foi ganhando progressiva atenção entre nós.
Todos nos recordamos como, há uns anos, as reflexões sobre alterações climáticas, tituladas por alguns, eram objeto de troça e tidas como coisas de "maluquinhos". O decorrer dos tempos, se alargou a consciência nesse domínio, não sustentou, em absoluto, como se pode observar na atual atitude oficial americana e de outros atores marginais ao bom senso, uma mobilização internacional de vontades capaz de travar o percurso para um desastre que, afinal, parece bem anunciado. Mais do que isso: que é prenunciado à saciedade pela gravidade crescente nos fenómenos climáticos extremos que teimam em repetir-se, alguns em registo de tragédia. Ver a juventude, à escala global, consciente da necessidade de travar essa batalha é um motivo de esperança, mas a esperança ainda fica à porta de uma vontade coletiva capaz de se impor.
Por cá, o mínimo que pode dizer-se é que os portugueses andam "intrigados" com o seu clima. Já perceberam, pelo passado recente, que podem vir a ter de suportar meses seguidos de seca, com o "bom clima" a chamar os turistas mas a fazer desesperar os agricultores. É o "sol na eira e a chuva no nabal", no seu modelo mais contemporâneo. Como a memória climática é uma das coisas frágeis no consciente coletivo, os clamores de que "há sol a mais" ou de que "esta chuva nunca mais para" alternam na conversa, sem racional nem equilíbrio.
Já não vivemos, contudo, no tempo do senhor Anthímio de Azevedo, que nos dava bitaites televisivos, assentes numa leitura tendencial do que aí vinha, produzida pela observação feita pelos barcos no Atlântico e pelos expectáveis humores desse arredondado património de ventos, nuvens e chuva que é o nosso - sim, porque é "nosso" - anticiclone dos Açores. Os satélites permitem hoje prever, com maior certeza, se devemos sair com guarda-chuva ou se um sobretudo se recomenda. Em tese, só se molha quem quer.
Sei isso bem. Porém, às vezes ainda dou comigo a medir mal os sinais do tempo. E, ao não atentar devidamente nesses avisos, ao decidir avançar impetuosamente contra o vento, numa esquina noturna da vida, convoco os demónios do tempo e levo com uma nortada forte. É a vida ou, como diz o outro, quem anda à chuva molha-se.
terça-feira, abril 09, 2019
Europa e não só
Hoje, no suplemento especial sobre a Europa que a Sapo edita, está uma entrevista que dei a Isabel Tavares, que pode ser lida aqui.
segunda-feira, abril 08, 2019
Miguel Esteves Cardoso
É uma edição “pobre”, talvez para assim ser possível o livro ser vendido ao preço a que se apresenta. Divide-se em duas secções: comes e bebes. Recolhe as crónicas que Miguel Esteves Cardoso publicou no suplemento Fugas, do “Público”. É o tipo de volume para “ir lendo”, em muitos casos para recordar o que já tinha sido lido.
Conheço poucas pessoas a quem melhor se possa aplicar, com rigor, a expressão “epicurista” do que a Miguel Esteves Cardoso: alguém que tem um sábio usufruto dos prazeres, numa versão sintética do termo. Desde há anos que sigo a sua escrita (não o conheço pessoalmente), o magnífico uso que faz da língua portuguesa, o modo como olha a vida e sabe tratar os pormenores do quotidiano que a outros podem escapar.
Imagino que aquilo que escreve possa ser irritante para alguns (às vezes, eu próprio também me irrito), surgir até um pouco pretensioso, mas acho fantástico o equilíbrio que quase sempre consegue obter numa escrita que combina uma óbvia erudição com a abordagem, mais ou menos feliz, de coisas frequentemente simples, que outros não teriam notado. Às vezes, pode ser visto como demasiado ligeiro, em outras envereda por terrenos que se podem tornar algo crípticos para leitores não iniciados. No saldo final, a qualidade da sua intervenção é quase sempre indiscutível.
(Não é minha intenção trazer a terreiro de discussão os seus polémicos tempos de “O Independente” e de outras suas aventuras da época, porque as idades têm-se na altura própria.)
Miguel Esteves Cardoso é filho de uma senhora britânica, cujos genes parece estarem bem presentes no seu poder de observação distanciada, às vezes cruel, da realidade lusitana. O seu pai foi um quadro superior do Estado, que cheguei a encontrar em tramitações negociais no âmbito diplomático. Lembro-o como uma figura grande, muito interessante, inquieta, criativa, muito pouco burocrática para os padrões desses anos 70 do século passado. Miguel Esteves Cardoso é talvez a síntese dessas duas personalidades. Lê-lo é sempre um prazer.
domingo, abril 07, 2019
Panoramas
Ontem, aproveitando um dia de “boas abertas”, fiz uma incursão na Outra Banda, procurando descobrir todas, repito, todas as perspetivas possíveis sobre a costa de Lisboa que, da Trafaria a Almada, se pudessem descortinar. As hipóteses, apurei, não são muitas: os acessos ao rio ou à sua visão são escassos, mas, onde isso foi possível, usufruí de panoramas soberbos, num fim de tarde deslumbrante. A luz do sol declinante conferia a tudo aquilo uma imensa beleza, ainda que distante, desde Lisboa ao início da “linha”.
Dei comigo a pensar que era precisamente essa distância a que estava da outra costa que impedia que se notassem alguns “monos” que, na realidade, existem ao longo desse panorama, desconchavos urbanísticos ou fabris que arruínam o equilíbrio global da paisagem.
Quantas vezes, por esse país fora, não deparamos com o resultado da prevalência do mau gosto, que estraga espaços interessantes, seja em zonas construídas, seja rompendo, com brutalidade, áreas naturais muito homogéneas. Como alguns amigos arquitetos me têm dito, acaba por ser quase tão caro construir coisas feias como elementos que, com algum cuidado, poderiam agredir bastante menos a paisagem. Mas pouca gente parece ligar a isto.
Perto de Deauville, no norte de França, Calouste Gulbenkian adquiriu, em 1937, um grande espaço de natureza, Les Enclos. Trata-se de uma mistura imaginativa onde foram construídos jardins, junto de prados e de bosques, um projeto que revela uma sensibilidade que talvez nos ajude a "ler" melhor a mentalidade do filantropo. Há A Fundação Gulbenkian decidiu em 1973 doar essa propriedade à municipalidade de Deauville, o que, há cerca de uma década, mereceu uma homenagem da Mairie à Fundação, ato a que assisti.
A certo ponto da muito completa visita feita ao espaço, que hoje creio ser visitável, e apontando-me um panorama soberbo que Calouste Gulbenkian criara deliberadamente, como linha de harmonia entre duas alas de verde - de imensos e diferentes verdes, que também nos ajudam a perceber melhor alguma pintura impressionista -, o delegado local do Ministério francês da Cultura explicou-me que todo aquele panorama, até ao infinito que é visível, está hoje protegido por lei, sendo insuscetível de ser objeto de qualquer construção, ou mesmo de um mero rearranjo arbóreo alternativo, sem autorização legal, sob pena de procedimento criminal. Fiquei siderado, ainda mais quando me foi explicado que há bastantes outros exemplos análogos por todo o território francês.
O que isto significa em matéria de civilização! E que “pobre” país é a França, que conserva paisagens que não podem, com facilidade legal, ser beneficiadas com a instalação de um qualquer barracão de zinco de cores berrantes ou com a graça de uma pedreira a céu aberto!
sábado, abril 06, 2019
O CGI e a independência da RTP
O antigo administrador da RTP, Nuno Artur Silva, disse hoje que, desde que na RTP foi criado o Conselho Geral Independente (CGI), “não há interferência do poder político, ponto".
Como um dos seis membros que integram o Conselho Geral Independente da RTP, gostei de ler esta declaração.
Brexit
Há quantos anos que não comprava o “The Daily Telegraph”, o mais conservador dos “quality papers” britânicos! Mas, com este antetítulo a amarelo, não resisti. E não me arrependi.
sexta-feira, abril 05, 2019
Clube de Lisboa
O Clube de Lisboa nasceu há dois anos. Hoje, reune mais de uma centena de pessoas e algumas entidades que, entre nós, se interessam pelos temas internacionais, oriundas de diversas e áreas profissionais e políticas - académicos, diplomatas, jornalistas, empresários, estudantes, etc.
Não tem quaisquer fins lucrativos, vive exclusivamente das quotas que os seus associados pagam, utiliza espaços cedidos por diversas instituições para os seus eventos e tem como única finalidade ajudar a consagrar Lisboa como espaço de debate para questões de natureza global, para o que mantém parcerias com várias entidades.
O Clube de Lisboa não tem como objeto de análise a política externa portuguesa mas, naturalmente, os interesses de Portugal na ordem internacional não deixam de estar presentes na seleção da temáticas que elege.
Regularmente, o Clube de Lisboa organiza os chamados “Lisbon Talks”, onde se cruzam vozes portuguesas e estrangeiras no debate de temáticas muito diversas - da segurança à transição energética, dos mares ao desenvolvimento, etc.
O Clube de Lisboa nasceu na sequência das Conferências de Lisboa, que, de dois em dois anos, desde 2014, reunem na capital portuguesa dezenas de especialistas internacionais, em torno um tema central. A 3ª Conferência teve lugar em 2018, foi aberta pelo Presidente da República e sobre ela o Clube acaba de editar um livro.
A primeira direção do Clube foi eleita em 4 de abril de 2017 e terminou funções ontem, data em que, em Assembleia Geral, foram renovados os seus corpos gerentes. Nos próximos dois anos cabe-me a presidência da direção, com Miguel Anacoreta Correia na presidência da Assembleia Geral, António Rebelo de Sousa na presidência do Conselho Fiscal e António Monteiro como presidente do Conselho Estratégico. O diretor executivo do Clube de Lisboa é Fernando Jorge Cardoso.
Quem estiver interessado em saber um pouco mais sobre o Clube de Lisboa, quiser propor-se para associado ou, simplesmente, desejar frequentar as suas atividades é muito bem vindo e pode inscrever-se aqui:
https://www.clubelisboa.pt/clube-lisboa/
Eleições
A pré-campanha para as eleições europeias revela já que elas não vão ser muito mais do que uma “primeira volta” das eleições legislativas.
É pena. Este é talvez o ano em que as questões europeias são verdadeiramente decisivas e é triste ver os partidos políticos portugueses ausentes deste debate.
A farda
Nesta imagem antiga, que ontem apareceu no Facebook, o meu amigo e colega José de Bouza Serrano surge, elegantíssimo, na sua farda ou uniforme diplomático, prestes a apresentar credenciais junto de uma das várias cortes por onde muito bem representou Portugal como diplomata.
Mas os diplomatas têm farda?, perguntarão alguns. Existe, em algumas carreiras diplomáticas mais antigas, como é o caso da portuguesa, um uniforme histórico, que acompanha com um chapéu de bicórnio e um espadim.
Não se trata, de forma alguma, de um traje de uso obrigatório. Cabe a cada diplomata decidir se adquire ou não a farda, tendo como única limitação, ao que me lembro, o facto das “ramagens” douradas incluídas no traje só poderem ir aumentando em “densidade” com a respetiva progressão na carreira. Mas é de “bom tom”, segundo sempre ouvi a alguns colegas mais ritualistas, manter a farda apenas com a quantidade de “dourados” que o seu proprietário tinha direito a usar nos seus tempos de juventude profissional.
Poucos diplomatas, contudo, têm hoje uma farda. A mim, por exemplo, nunca me passou pela cabeça adquirir uma, embora reconheça que se trata de um belo uniforme e que confere grande dignidade formal o surgimento público de colegas, nas ocasiões mais solenes em que tal se justifica, vestidos com aquele traje.
As fardas, que são bastante caras, herdam-se ou compram-se, mesmo usadas, sendo vulgar ouvir, nos claustros das Necessidades, que “fulano usa a farda que foi de beltrano”. Peculiaridades de uma profissão muito peculiar...
O José Bouza Serrano, que muito estimulei a que entrasse para a carreira diplomática, como ele às vezes lembra e com o que eu sempre muito me congratulo, é uma pessoa que tem dado grande atenção às “liturgias” da casa. Chegou mesmo a chefe do Protocolo do Estado, sendo autor de uma obra de referência sobre o tema.
Desde muito novo que o Zé usou uniforme diplomático. E eu sei a origem da sua primeira farda. Num dia de 1980, o Zé Bouza foi à Noruega, onde eu então estava colocado, preparar uma visita de Estado do presidente Ramalho Eanes. Numa conversa com o embaixador português em Oslo, António Cabrita Matias, este referiu que tinha uma farda diplomática, que pretendia vender. O Zé, de imediato, mostrou-se interessado em adquiri-la. E assim aconteceu.
Não testemunhei os pormenores quantitativos da transação, mas recordo que o embaixador logo referiu que, antes da entrega da farda ao seu novo proprietário, gostaria de tirar algumas fotografias com ela vestida, para guardar como recordação.
Ora eu tinha comprado, poucos dias antes, uma sofisticada máquina fotográfica, cujo funcionamento me entretinha a estudar. E, naturalmente, ofereci-me para ser o autor desses retratos.
No dia seguinte, munido do novo aparato, lá apareci para a tarefa na residência do embaixador, que surgiu, garboso, nesse uniforme engalanado. Em várias poses, com ele a descer e a subir escadas, em cenários diversos dessa moradia na Drammensveien, fiz uma reportagem completa, destinada aos arquivos do meu chefe. O Zé Bouza testemunhou esses meus momentos de artista. E, depois, regressou a Lisboa, satisfeito com a farda adquirida ao embaixador.
Dias depois, passei pela loja onde tinha mandado revelar o rolo, para levantar as fotografias. Fiquei gelado, mais do que era vulgar naquele país, quando me foi dito que, por um qualquer erro mecânico meu, nenhuma imagem tinha ficado gravada. O embaixador iria assim ficar sem qualquer recordação da sua velha farda e lá tive eu de dizer-lhe, “de corda ao pescoço”, a penosa notícia. Já não recordo como a recebeu, mas registo que, aparentemente, o infausto episódio não veio a influenciar a minha carreira...
A minha única curiosidade é saber se a farda que o José Bouza Serrano exibe na fotografia que acompanha este texto é ainda aquela que o meu antigo embaixador lhe vendeu há quase quatro décadas! Alargada, claro!
quinta-feira, abril 04, 2019
Bouteflika
Em 1997, fui à Argélia, representar Portugal numa reunião do Forum do Mediterrâneo. A cidade vivia num ambiente de forte tensão securitária. Como era então de regra local, e tinha já acontecido numa anterior visita, fomos colocados numa “guesthouse” fortemente protegida. Ali se passavam também todas as reuniões, o que conferia ao exercício um ambiente de exceção, que não favorecia a narrativa de normalidade que o governo argelino pretendia transmitir pelo mundo, por aqueles dias.
Salvo a vinda e o regresso do aeroporto, sempre sob escolta, a única surtida durante a nossa estada foi uma inesperada visita ao presidente da República de então, Liamine Zéroual, com cada chefe de delegação num carro blindado, num cortejo silencioso por ruas de Argel tornadas desertas por nossa causa. Ainda guardo algures uma fotografia desse momento, que não teve grandes palavras, com um pesado ambiente protocolar.
O nosso embaixador local, José Stichini Vilela, num dos escassos períodos livres que tínhamos entre as reuniões, foi-me buscar à “guesthouse” para um almoço no hotel Hilton (curiosamente, em todas as vezes na minha vida em que fui a Argel, acabei sempre por almoçar ou jantar por ali, o que revela que se trata de um incontornável ponto social dos roteiros locais).
Conhecedor dos meus gostos políticos, o Zé levou consigo uma antiga figura política argelina, que tinha tido contacto com a resistência democrática ao Estado Novo. Argel, nos anos 60, havia sido como que a “capital” no exterior da oposição portuguesa. Era um homem idoso, loquaz, que conhecera fugazmente Humberto Delgado, sobre quem não tinha uma opinião muito lisonjeira. Não fixei o nome do nosso interlocutor e, até hoje, não consegui sabê-lo.
A certo ponto da conversa, perguntei-lhe por Abdelaziz Bouteflika, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros dos tempos do presidente Boumédiène.
O nome era bastante conhecido pelo mundo, tendo para sempre ficado, até para a história, a sua fotografia (na imagem, ao centro, de escuro, com bigode e cabelo farto) no aeroporto de Argel, em dezembro de 1975, ao lado de “Carlos”, (à direita, de boina), o revolucionário venezuelano que acabara de liderar o ataque à sede da Opep, em Viena e que por ali negociava a libertação dos reféns, depois desse ato terrorista. O meu companheiro de conversa reagiu então de forma imperativa: “Bouteflika? Anda por aí! É um cadáver político, na Argélia atual. Não tem o menor futuro!”.
Lembrei-me para sempre dessa espantosa “previsão”, que, até para mim, pouco conhecedor da trama política local, me surpreendeu. E com alguma razão: dois anos depois, Bouteflika viria a ser eleito presidente da Argélia, lugar de onde apenas saiu ontem... vinte anos depois ! Para “cadáver”, há que convir que não se saiu mal...
A China que aí chega
A China foi sempre um parceiro incomum na cena internacional. Por muito tempo, o maior país do mundo projetou uma imagem à qual vinham associadas algumas peculiaridades culturais que, manifestamente, se tornavam de difícil leitura na esfera ocidental. Os “sinólogos” prosperavam nessa exegese nunca unívoca, com o gigantismo do país e o desconhecimento das suas várias realidades internas a tornarem difícil uma qualquer previsão de atitudes do lado de Pequim. A China era um mistério mas, por muito tempo, não era vista como uma ameaça, não obstante a premonição atribuída a Napoleão: “quando a China acordar, o mundo tremerá”.
Com escassas exceções na sua história contemporânea, a China não revelou um pendor de agressividade militar externa, muito embora a sua atitude perante a vizinhança geopolítica tenha sido sempre caraterizada por uma marca de inflexibilidade. Uma diferente gestão histórica do tempo, que não é um mito mas uma evidência, contribuiu para adensar o mistério sobre os desígnios estratégicos de Pequim, sendo visivelmente neste registo que se enquadra a sua relação com Taipé.
Os EUA tentaram cavalgar o conflito sino-soviético promovendo a cooptação de Pequim para a primeira linha da cena internacional. O “realismo” de Kissinger mudou a realidade internacional mas, curiosamente, acabada a Guerra Fria e consagrada a humilhação de Moscovo, não se viu a China, por quase três décadas, exagerar na afirmação do seu papel como ator político global.
O que se viu foi o seu interesse em explorar um intenso bilateralismo com determinadas áreas, mais visivelmente em África mas igualmente noutras zonas do mundo, como a Europa, tendo a economia como base determinante. O acesso da China à OMC, que hoje alguns se arrependem de ter facilitado, ajudou muito. O crescimento e o bem-estar tinham passado a estar no posto de comando de um modelo político que, bizarramente, combina o rigor centralista do socialismo com os genes do capitalismo. Uma fragilidade continua, no entanto, evidente: a demanda energética, que obriga a China a desenhar um padrão de relações externas muito heterogéneo.
A China é hoje um indiscutível gigante tecnológico, depois de anos de caricatura como produtor de quinquilharias baratas. É um poder adversarial – político, económico, militar? Para os EUA, isso é uma evidência. A Europa, neste domínio, vive ainda um momento esquizofrénico: olha com apetite aquele que é o seu principal mercado, mas começa a acordar para o desafio estratégico que vê chegar.
(Artigo ontem publicado no “Jornal de Notícias”)
(Artigo ontem publicado no “Jornal de Notícias”)
quarta-feira, abril 03, 2019
Capela do Rato
Na sua atividade incessante, Leonor Xavier organizou hoje, na Capela do Rato, uma leitura de textos tendo como mote a Mulher. Convidou para participarem umas dezenas de amigos.
Na maior parte dos casos foram lidos poemas, mas houve pessoas que optaram por textos em prosa. Outras cantaram.
Hesitei bastante. Pensei em coisas alegres como “A mulher que passa”, que Vinicius de Morais escreveu uma década antes de eu nascer. Ou no romantismo contemporâneo de José Luis Peixoto, com “A mulher mais bonita do mundo”.
Por fim, decidi ler um belíssimo poema triste, de Eugénio de Andrade, intitulado “Pequena elegia de setembro”:
Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
Dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
Na maior parte dos casos foram lidos poemas, mas houve pessoas que optaram por textos em prosa. Outras cantaram.
Hesitei bastante. Pensei em coisas alegres como “A mulher que passa”, que Vinicius de Morais escreveu uma década antes de eu nascer. Ou no romantismo contemporâneo de José Luis Peixoto, com “A mulher mais bonita do mundo”.
Por fim, decidi ler um belíssimo poema triste, de Eugénio de Andrade, intitulado “Pequena elegia de setembro”:
Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
Dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
Eça e as mulheres de Vila Real
Na escolha de uns textos para um determinado fim, surgiu-me hoje este conhecido texto de Eça de Queiroz, incluído no conto “Singularidades de uma Rapariga Loira”, que é a maior elegia que conheço às mulheres da minha terra, de Vila Real (que o escritor coloca no Minho...) Aqui deixo esse extrato:
“A minha curiosidade começou à ceia, quando eu desfazia o peito de uma galinha afogada em arroz branco, com fatias escarlates de paio – e a criada, uma gorda e cheia de sardas, fazia espumar o vinho verde no copo, fazendo-o cair de alto de uma caneca vidrada: o homem estava defronte de mim, comendo tranquilamente a sua geleia: perguntei-lhe, com a boca cheia, o meu guardanapo de linho de Guimarães suspenso nos dedos – se ele era de Vila Real.
– Vivo lá. Há muitos anos, disse-me ele.
– Terra de mulheres bonitas, segundo me consta, disse eu.
O homem calou-se.
– Hein?, tornei.
O homem contraiu-se num silêncio saliente. Até aí estivera alegre, rindo dilatadamente, loquaz, e cheio de bonomia. Mas então imobilizou o seu sorriso fino.
Compreendi que tinha tocado a carne viva de uma lembrança. Havia decerto no destino daquele velho uma mulher. Aí estava o seu melodrama ou a sua farsa, porque inconscientemente estabeleci- me na ideia de que o facto, o caso daquele homem, devera ser grotesco, e exalar escárnio.
De sorte que lhe disse:
– A mim têm-me afirmado que as mulheres de Vila Real são as mais bonitas do Minho. Para olhos pretos Guimarães, para corpos Santo Aleixo, para tranças os Arcos: é lá que se vêem os cabelos claros cor de trigo.
O homem estava calado, comendo, com os olhos baixos.
– Para cinturas finas Viana, para boas peles Amarante – e para isto tudo Vila Real. Eu tenho um amigo que veio casar a Vila Real. Talvez conheça. O Peixoto, um alto, de barba loira, bacharel.
– O Peixoto, sim, disse-me ele, olhando gravemente para mim.
– Veio casar a Vila Real como antigamente se ia casar à Andaluzia – questão de arranjar a fina- flor da perfeição. – À sua saúde.
Eu evidentemente constrangia-o, porque se ergueu, foi à janela com um passo pesado, e eu reparei então nos seus grossos sapatos de casimira com sola forte e atilhos de coiro. E saiu.”
terça-feira, abril 02, 2019
Leonor (3)
Uma historieta deliciosa que, já não sei a propósito de quê, Sérgio Godinho relatou, na conversa que teve com Leonor Xavier, durante a apresentação do livro desta última, no CCB, hoje à tarde.
Havia, há muitos anos, uma tasquinha pequena, numa determinada localidade da província portuguesa, propriedade de um casal muito idoso de beirões. A senhora estava na cozinha, o marido servia na sala e os pratos, sendo de grande simplicidade, eram de uma qualidade magnífica. Tinham poucas mesas, mas a casa estava quase sempre cheia.
Havia um senão: não serviam café. Quem por ali comia tinha, no final da refeição, de atravessar a rua e ir a uma confeitaria em frente, para ir tomar a bica. Alguns clientes começaram a embirrar com a lacuna e, um dia, confrontaram com isso o simpático proprietário, a quem estimularam a munir a casa de uma máquina de café.
O homem respondeu que não era nada que ele e a sua mulher não tivessem já pensado, acrescentando: “Mas já decidimos que não vamos comprar. Nós não temos filhos nem herdeiros. Quando isto acabar, para quem haveria de ficar a máquina?”
Leonor (2)
Leonor Xavier, durante a apresentação do seu livro, na tarde de hoje, contou uma magnífica história ocorrida com Nélida Piñon, a grande escritora brasileira, sua grande amiga.
Um dia, em Lisboa, Nélida apanhou um taxi, cujo motorista se revelou uma figura incomodativa e mal-educada. O seu comportamento agravou-se durante toda a viagem, roçando o insuportável. A escritora conteve-se até ao final.
Depois de pagar a corrida, para imensa surpresa do homem, cujo primarismo não ia ao ponto de não entender o nível do seu próprio comportamento, ofertou-o com uma gorgeta de 10 euros. Mas acrescentou: “Estes 10 euros é para agradecer várias coisas: você não ser meu marido, não ser meu amigo, não ser meu conhecido e eu ter ficado com a certeza absoluta de que nunca mais o vou ver!”
Leonor (1)
Fomos muitos, com bastantes a ficarem em pé, a estarem hoje à tarde do CCB na apresentação do novo livro de Leonor Xavier “Há laranjeiras em Atenas”.
Andava intrigado em tentar perceber de onde vinha o estilo literário da Leonor. Hoje entendi. Foi o Brasil, o modelo de crónica que por lá se pratica com grande maestria que enformou a sua escrita. É aquele jeito, ao mesmo tempo simples e sensível, que ela transporta para as suas observações riquíssimas do quotidiano, que nos agarra até ao fim de cada um daqueles textos.
A Leonor é minha amiga, mas a recomendação que faço de que leiam este livro não tem, a sério!, nada a ver com essa circunstância.
Pouco Comuns
Estive poucas vezes na galerias da Câmara dos Comuns, em Londres. Sempre para assistir a debates que eram anunciados como importantes, nos tempos de Margareth Thatcher e do “game, set and match” que John Major disse ter ganho em Maastricht.
Eram momentos interessantes que, ao vivo, nos permitiam apreciar a coreografia das figuras cimeiras (e outras um pouco menos) da vida política britânica de então. Recordo ter assistido a uma cena em que o famoso reverendo protestante irlandês, Ian Paisley, foi expulso, por ordem da “speaker”, conduzido para fora da sala pelo “serjeant-at-arms”. Um espetáculo!
A visão da sala, na zona do público, lá do alto, não é muito favorável. Apesar disso, as regras eram muito estritas, Não sei como são hoje as coisas por lá mas, nesse tempo dos anos 90, não se podia sequer tomar notas, nem levar um jornal debaixo do braço.
Ao ver ontem esta fotografia, da bizarra manifestação naquelas “sacrossantas” galerias, imagino o que sentirão os britânicos mais tradicionalistas. E o que os outros se divertirão.
A verdade é que o atual “speaker”, John Berkow, tem hoje um estilo (e umas gravatas, que lembram as do jornalista televisivo Jeremy Paxton) bastante mais solto do que então era mantido pela sua antecessora do meu tempo, com ar de mestre-escola, Betty Boothroyd. Mas, convenhamos, há limites!
Schengen
A geração Interrail já quase não soube o que eram fronteiras dentro da Europa comunitária. A geração Ryanair nasceu sem elas. A geração Erasmus nem sonha o que isso era.
Sem a menor saudade - era só o que faltava! -, noto que a minha geração foi ainda a dos passaportes azuis, das filas nos postos de “aduana”, de um friozinho indefinível de incómodo a correr pela espinha quando os agentes nos olhavam, saltitando entre a nossa cara e a fotografia a-preto-e-branco no documento de viagem, verificando o selo branco da declaração militar que fazia o favor de nos deixar, por tempo bem determinado, ir a um país estrangeiro. O fim da ditadura, a entrada para a União Europeia e, em especial, a entrada em vigor do espaço Schengen acabou com tudo isso.
No sábado, num debate sobre refugiados em que participei, foi com agrado que vi a jovem moderadora declarar-se uma “fã” incondicional de Schengen. E outras pessoas na sala e no painel a concordarem com ela. Eu também.
A experiência tem demonstrado que o fim das fronteiras e a livre circulação de pessoas entre grande parte dos países da União Europeia constituiu um importante fator de facilitação das relações económicas, de promoção do turismo, de multiplicação de contacto intercultural. Schengen tem alguns riscos? Claro que sim, mas as suas vantagens sobrelevam-nos em muito.
segunda-feira, abril 01, 2019
Ainda há boas notícias
Na passada semana, estive presente na cerimónia durante a qual o príncipe Aga Kahn, fez oferta ao Museu Nacional de Arte Antiga de dois belos quadros que faziam parte do recheio do Palacete Mendonça, adquirido pela instituição Aga Kahn para sua sede em Lisboa. Um outro quadro será oferecido, dentro de semanas, ao Museu Soares dos Reis, no Porto.
Num mundo onde a solidariedade anda pelas horas da morte, é um gosto ver Portugal a poder acolher esta como outras meritórias iniciativas da instituição "do bem" como é a Fundação Aga Khan, a qual, sem grandes alardes, promove uma notável obra internacional de cooperação e de difusão cultural, com forte sentido universalista.
A transferência para Portugal das estruturas institucionais ligadas ao líder ismaelita foi uma das boas notícias dos últimos anos.
A comunidade ismaelita portuguesa, uma orientação muçulmana com raízes em Moçambique, constituiu-se em Portugal, em especial após 1974, como um setor dinâmico, muito respeitável e com um profundo sentido de responsabilidade social.
A figura tutelar de Nazim Ahmad, que no nosso país dirige a Rede Aga Khan para o Desenvolvimento, é uma personalidade que honra, simultaneamente, a Fundação e o nome de Portugal, representando, de forma exemplar, o trabalho dessa comunidade de prestígio, cujo percurso acompanho, desde há muito, com sincera admiração. Tive o gosto de ver o príncipe Aga Khan receber o prémio do Conselho da Europa, quando exerci as funções de diretor executivo do Centro Norte-Sul, daquela organização internacional.
Num tempo de tropismo para a crítica, vale a pena destacar - e lembrar, porque normalmente não são notícia - as coisas positivas que por aí ainda ocorrem.
1 de abril, dia da verdade
Foi ainda nos anos 60 que me recordo de ter comprado e lido um livro brasileiro que contava em detalhe o golpe de Estado militar de 1964, que inauguraria uma ditadura que se prolongaria por mais de duas décadas. O título era “Os idos de março e a queda em abril”. O volume ainda deve andar pela minha casa, em Vila Real. Era um relato feito por jornalistas, num estilo vivo, que nos dava a impressão de estar a assistir a uma espécie de filme dos eventos. A minha curiosidade pelo assunto iniciou-se com essa leitura, e nunca mais parou.
Os brasileiros que ainda hoje se identificam com esse movimento militar, a que chamam “revolução”, costumam celebrá-lo no dia 31 de março. Este ano, como é sabido, atendendo a que o presidente Bolsonaro é um reconhecido fã desse período da vida brasileira, o assunto acabou por ter, com naturalidade, uma visibilidade ainda maior, provocando vasta polémica no país. Recordo-me que, quando vivia no Brasil, apenas os militares mais conservadores faziam gala de celebrar a data, que passava despercebida.
Ora é precisamente essa data que está errada. Como o livro que referi demonstra à saciedade, o movimento só se efetivou um 1 de abril, mas, temendo o caricato da data, do “dia das mentiras”, a historiografia favorável à “revolução” sempre procurou iludir isso e tentou fixar 31 de março como o dia para a história registar. Assim, no tocante ao golpe militar de 1964, o dia 1 de abril acaba por ser, ironicamente, o dia da verdade histórica.
domingo, março 31, 2019
Indignação
Gerou-se por aí uma indignação “azul” pelo facto de eu ter qualificado o comportamento do treinador do Futebol Clube do Porto, numa reação instantânea no Twitter, com palavras duras e que, com serenidade, reconheço que foram exageradas. Confesso que, de há muito, me desagrada bastante o modo como figuras de relevo do nosso futebol se comportam em público, dando mostra de uma imensa falta de respeito pelos adversários, servindo de exemplos negativos que ajudam à degradação do nosso futebol. A minha reação, neste caso particular, como já aconteceu face a atitudes de pessoas de outros clubes, entre os quais o meu próprio clube, foi a expressão extrema dessa minha indignação. Mas não me custa reconhecer que os termos não terão sido os mais felizes.
Assim, assim...
Fui lá jantar ontem. O serviço é muito agradável, as empregadas são bastante atenciosas. A anterior vez que lá fui não me tinha deixado uma particular impressão. Como gosto muito de restaurantes italianos, cuido sempre em dar um desconto ao “granel” que neles se cria, tentando perceber o que daquilo é mero teatro e o que resulta do endémico culto do improviso “típico”, mais ou menos profissionalmente conseguido. Como teste, por contraponto, à inevitável coreografia “solta” - em Roma, como é sabido, é ela de regra, em Florença parece-nos requintada, em Messina ou Palermo ou Siracusa ou Taormina aprendemos que é só displicente, em Turim é arrogante, em Milão tem dias (em especial, noites), em Trieste sofre dos “blues” balcânicos, em Ancona tem delírios adriáticos, em Bologna rimos, em Ravello a vista cega-nos, em Veneza afogamo-nos na conta, em Génova sonhamos, em Sienna ou San Gemignano esquecemos tudo, em Nápoles - bom, em Nápoles...! - há sempre esse “detalhe” que é a comida, a qual, as mais das vezes, até é bastante boa. Ontem, foi apenas assim-assim - desculpem a minha sinceridade. Um destes dias, porque um dia não são dias, para “re-checkar”, vou regressar ao “Il Matriciano”, o restaurante em frente do nosso parlamento. Repito: ontem, não tendo sido mau, mas olhando o elevado preço que paguei, confesso que estava à espera de um pouco melhor...
O Brasil de Carmen
Ruy Castro, o excelente escritor brasileiro, escreveu a biografia de Carmen Miranda, a vedeta lendária da canção brasileira, que Hollywood acolheu.
Carmen Miranda nasceu no Marco de Canavezes, a poucos meses da República ser implantada. Os pais de Carmen emigraram para o Brasil em 1909.
É sobre o Rio de Janeiro desse tempo, que aposto que a esmagadora maioria dos portugueses desconhece (mesmo alguns que por lá vivem), que Ruy Castro escreve hoje, no “Diário de Notícias” (o leitor ainda não compra este excelente semanário? nem sabe o que perde!), um belo artigo de que extraí este pedaço:
”No Rio a que a pequena Carmen chegou, os portugueses dominavam o comércio de azeite, sardinha, bacalhau, cortiça e vinhos, as associações comerciais, o mercado de casas para alugar, os serviços de táxi, as casas de pasto, os secos e molhados, açougues, armarinhos, casas de ferragens e até os teatros, tanto dentro como fora do palco. Estavam também nos serviços de rua, como jardineiros, estivadores, cocheiros. Ao desembarcar do navio na Praça Mauá, todo jovem português já tinha outro a recebê-lo, alojá-lo e até dar-lhe emprego. José Maria, pai de Carmen, tornou-se barbeiro; sua mãe, Maria Emília, lavadeira.
Era normal que um português recém-chegado, ao andar pelas ruas do Rio, reconhecesse não apenas patrícios aos magotes, mas gente de sua aldeia ou freguesia, já aclimatada ou bem posta na vida. O Rio tinha cinco jornais diários portugueses. Vivia-se entre os patrícios como na metrópole. Tudo isso aconteceu com os pais de Carmen. Até aos 5 anos, ela não conheceu outra criança que não fosse filha de portugueses e a única canção que aprendeu a cantarolar foi uma pecinha folclórica da região de seus pais. Os quais, por tudo isso - e como a maioria de seus amigos -, nunca se preocuparam em se naturalizar brasileiros. Não precisavam. Em compensação, de anos em anos, deviam comparecer ao consulado português para renovar seus registos de permanência e atualizar seus endereços particulares e profissionais.”
E esta?
“El País”, Castilla, Iberia...
“Ana Paula Vitorino, hoy ministra del Mar, es hija de António Vitorino, ministro en 1995 y hoy director de la Organización Internacional de las Migraciones en la ONU, dirigida por António Guterres, marido de la concejal de Cultura de Lisboa, Catarina Vaz Pinto”.
(Acho miserável esta imputação! Toda a gente sabe que Ana Paula Vitorino é filha do cantor alentejano Vitorino, o qual, aliás, é também açoreano, por parte da mãe. Foi lá que nasceu o irmão mais velho, o falecido Vitorino Nemésio. Por que outra razão havia Ana Paula Vitorino de ser ministra do Mar, não é?)
sábado, março 30, 2019
Por um fio
Já o tentei encontrar no Moledo, sem sucesso. Até pedi ao Francisco José Viegas, que sei que o conhece bem, para tentar que ele me recebesse, para lhe testemunhar em pessoa a minha admiração de leitor atento. Mas ter-se-á esquivado. Quando ainda existia o Ancoradouro, no Moledo, o Alfredo dizia-me que ele vinha por ali sentar-se, de vez em quando, a jantar com a sobrinha. Mas nunca o cruzei naquelas toalhas de quadrados vermelhos e brancos. Há meses, em Caminha, na tabacaria Atenas, disseram-me que tido ido lá buscar jornais nessa manhã. Mas já percebi que o meu destino é nunca o encontrar.
Falo de António Sousa Homem, um cavalheiro que tem para cima de 90 anos e vive quase recluso no seu mundo, entre Âncora e Cerveira, e que continua a publicar deliciosas crónicas no jornal de Octávio Ribeiro, grande parte das quais a Porto Editora reuniu agora num volume intitulado “O crepúsculo em Moledo”. Comecei a lê-las na esplanada da Bénard e estou já quase a terminar as mais de 400 páginas.
Fixei uma frase que Sousa Homem cita no livro, do seu avô, bem dentro do século XIX: “Estamos por um fio, é o que é”. Ao observar o granel nos Comuns, na tarde de ontem, não pude deixar de pensar como isso é uma grande verdade, mas também, há que dizê-lo, que o fio deve ser de grande qualidade, talvez da Escócia.
sexta-feira, março 29, 2019
“Boa Vida”, na TSF
“Aquela voz, a falar sobre bacalhau, era-me conhecida”, disse-me um amigo, ao telefone, há pouco. Era eu, de facto, numa simpática entrevista feita por Augusto Freitas de Sousa, no seu programa “Boa Vida”, a propósito do meu blogue “Ponto Come” e dos restaurantes que por aí vai havendo. A avaliar pelas pessoas que me telefonaram, a TSF é, de facto, muito ouvida.
Quem quiser, pode ouvir aqui.
O senhor PSD
A morte de Zeca Mendonça (assim crismado pelos próximos, numa forma que o país adotou), hoje lamentada em todos os quadrantes políticos, suscita uma reflexão interessante sobre este tipo de personalidades que estão para além da transitoriedade dos líderes de turno e que, no fundo, dão corpo temporal às instituições, enquanto seu esteio de continuidade.
Conheci muito mal, em termos pessoais, Zeca Mendonça, com quem falei, brevemente, meia dúzia de vezes, em ocasiões circunstanciais. Mas, na realidade, como muitos portugueses, “conhecia-o” bem, da imagem televisiva, daquela sua função de acompanhante, que pensávamos eterno, dos sucessivos presidentes do PSD - e não me tinha dado conta de terem sido 17!
Muitas vezes me perguntava, ao vê-lo ao lado de figuras com tão forte contraste entre si, quem seria, lá no íntimo, o seu líder preferido, naturalmente depois de Sá Carneiro, “benchmark” indiscutível da casa. Tenho as minhas suposições, que não vêm para o caso.
Ficou-me para sempre um seu momento “político”, quando um dia o vi subir ao palco do Coliseu, falando em nome de Cavaco Silva, num momento muito tenso de um Congresso do PSD, apelando à calma coletiva. Não era claramente o “funcionário” que estava ali nesse momento, era o militante empenhado e preocupado. Foi um momento interessante, raro, que um dia tive ocasião de lhe referir.
Não sei se Zeca Mendonça deixou memórias póstumas - e é pena se o não tiver feito. É que a sua experiência de tantos anos, no centro da máquina de um partido estruturante da democracia portuguesa, iria ser, com toda a certeza, um contributo valioso para a nossa história política contemporânea.
Agora, neste momento derradeiro, só nos resta deixar registada a nossa simpatia.
quinta-feira, março 28, 2019
Modelo Tancos
Ouvi, há dias, uma proposta “criativa” para uma “solução portuguesa” destinada à questão da fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte, em caso de não acordo entre os 27 e Londres. Seria o modelo Tancos: colocavam-se postos de vigilância, redes já esburacadas e, depois, ninguém via nada. Assim, haveria formalmente uma fronteira e ... não havia controlo nenhum!
Subscrever:
Mensagens (Atom)
O Sporting, o Porto e o Benfica
Hoje, fui simpaticamente convidado para ir, com um grupo, ver jogar o Sporting com o Arsenal, em Alvalade, no dia 26 de novembro. O Sportin...