segunda-feira, abril 15, 2019

O bibinha


A manifestação patriótica corria a preceito, naquele entusiasmo encenado com que o Estado Novo conseguia, numa sustentada coreografia, colocar o povo nas praças, para as fotografias que, no dia seguinte, "A Voz", o "Novidades", o "Diário da Manhã" (que a oposição citava sempre sem o til), mas também o inefável "Diário de Notícias" e o ritualista “O Século” trariam na primeira página, a testemunhar o "inquebrantável apoio de Portugal à política de Salazar". O qual, diga-se, raramente se dignava estar presente nesses exercícios, deixando ao "venerando Chefe de Estado", Américo Tomaz, a função de pobre catalisador das emoções orquestradas. "Paletes" de autocarros, pagas pelo erário, arrebanhavam patriotas ocasionais, de fato e gravata, através das cidades, vilas e aldeias, que eram dispensados dos empregos e tinham ração garantida para o dia, empunhando faixas que espelhavam a imensa diversidade dos "sindicatos" do regime.

Não fosse tudo isso ter, por detrás, uma longa e sinistra ditadura, a que se somou uma sangrenta guerra colonial, e tudo até poderia ter alguma graça, dando origem a comédias a preto-e-branco. Não sendo as coisas assim, não podendo Peponne discutir com don Camillo, o humor político disponível tinha de ser procurado nos ridículos do regime.

Nesse dia, naquela Braga de onde o efémero Gomes da Costa arrancara num famigerado Maio, concelebrava a mobilização das hostes António Santos da Cunha, uma avantajada figura da "situação", homem de voz tonitruante, que, durante anos, desempenhou as funções com que o regime controlava as coisas por lá: foi presidente da União Nacional, presidente da Câmara municipal e Governador civil. Já não recordo em qual destas duas últimas funções atuava na ocasião em que, como era hábito, ressoavam, nos discursos, saídos da velha varanda bracarense onde aquelas cenas sempre se oficiavam, as imaginativas referências ao Portugal "pluricontinental e pluriracial" ou "do Minho a Timor" (o que ali vinha geograficamente a jeito), as loas à sabedoria histórica do "senhor presidente do Conselho", no meio do gongorismo retórico com que o regime organizava a turbamulta tresmalhada, sob o olhar fardado dos polícias e os ouvidos, atentos e dispersos, dos "pides".

António Santos da Cunha atiçava, nessas horas, o patriotismo oficioso, com intervenções entre os vários discursos, feitas de menções às figuras presentes ou a quantos fosse importante lembrar na ocasião, apelando às hostes para, individual e nominalmente, os saudarem. O ausente Salazar e o chefe de Estado recolhiam, como era natural, o grosso da coluna dos aplausos e dos "vivas", mas os ministros e outros dignitários presentes recebiam também, à escala da sua importância, uma quota-parte dessas conclamações. Tudo era feito com conta e peso, medido o nível das personagens. Santos da Cunha, que era um hábil profissional desses instantes, sabia bem o que fazia, organizando sempre em pormenor essa estudada improvisação.

Um qualquer obscuro subsecretário de Estado (o Estado Novo, até certa altura, foi muito parcimonioso no uso da figura de "secretário de Estado"), vindo de Lisboa na comitiva do "venerando chefe de Estado", ter-lhe-á, a certo momento da manifestação, lançado um olhar inquisitivo, como que a demandar que o seu nome também fosse sufragado pelo vozeirão do edil e pelo subsequente eco da multidão. Santos da Cunha olhou-o, e não conseguindo atenuar o seu tom habitual, sossegou-o, à distância, com os "bês" do Norte, numa frase que ficou no anedotário da "situação":

- O "bibinha" de Vocência, senhor subsecretário de Estado, sai já a seguir, esteja descansado!

Braga não é apenas a cidade do país que deu origem a mais expressões populares, como ontem aqui notei. É também, mas admito que possa estar enganado na minha “contabilidade”, aquela em que me parece que a estatuária urbana mais preserva, pelas figuras que celebra, alguns peculiares tempos políticos, antes e depois do 25 de abril.

Há pouco, em Braga, ao passar pelo monumento a Santos da Cunha, lembrei-me desta historieta. Verdadeira, claro.

11 comentários:

Anónimo disse...

Tem piada que as paletes de autocarros pagas pelo erário publico, que levam gratuitamente ás manifs os empregados públicos que são dispensados do trabalho, e se não fores estás feito, continuam a ser o pão nosso de cada dia. Só mudaram as moscas.

Anónimo disse...

"sangrenta guerra colonial" - mas, V.Exa conhece alguma guerra que não seja sangrenta? As do alecrim e manjerona, talvez.

Um dia haveremos de conhecer a verdadeira dimensão "sangrenta" de 13 anos de guerra de baixíssima intensidade que causaram menos baixas do que 30min em qualquer guerra convencional.

Anónimo disse...



"Paletes" de autocarros, pagas pelo erário, arrebanhavam patriotas ocasionais, de fato e gravata, através das cidades, vilas e aldeias, que eram dispensados dos empregos e tinham ração garantida para o dia, empunhando faixas que espelhavam a imensa diversidade dos "sindicatos" do regime."

Pois é.... Tanto sofrimento com as glórias das manhãs que nascem, tanto esforço para ser diferentes, continuamos na mesma, mas agora com mais responsabilidades por estarmos sem os Perinéus que nos protegiam do conhecimento dos europeus.

Enfim... o nosso "host" está a ficar saudosista. Valha-lhe uma memória republicana de 1910.
Está tudo "numa boa".

J J R disse...

Lembro-me muito bem desse "cavalheiro".
Algures na década de 1950, durante um passeio escolar, uns colegas meus, mais ousados, conseguiram subir ao plinto e enfiar um garrafão (vazio, é claro!) na mão direita da estátua do Senhor Comendador.
E por lá terá ficado durante algumas horas para gozo de muito boa gente.
Estava mesmo a pedi-las, não estava?!
José João Roseira

alvaro silva disse...

A "sangrenta" Guerra colonial durou 13 anos e causou básicamente os mesmos mortos (7.800) que os dois anos de Grande Guerra 16/18 em que fomos envolvidos pela intransigência de Afonso Costa e que foi replicada 40 anos depois por Salazar. Aliás o argumento era o mesmo: Proteger as colónias (versão afonsista) ou as províncias ultramarinas (versão salazarista).

Cícero Catilinária disse...

O Sr. Embaixador vai-me desculpar a maledicência mas, tem dias em que o nível de comentários aqui no seu blog, anda um bocado por baixo, ou é impressão minha? Serão saudades?

Anónimo disse...

O Sr. José João Roseira está redondamente enganado quando diz que na década de 1950 pôs um garrafão vazio na estátua de Santos da Cunha.A estátua em causa foi feita muitas décadas depois. Afinal quem estava a pedi-las?

aamgvieira disse...

Concordo com o comentário do Sr.Álvaro Silva......

J J R disse...

Aos senhores que assinam o que escrevem, peço desculpa! Ia jurar que isso tinha acontecido nessa época... Confusões de um quase octogenário para quem as décadas de 50, 60 ou 70, já vão muito longe?...
Ao Sr. Anónimo das 00:51, se ler o que eu escrevi, verifica que, o autor da irreverência, não fui eu.
Quanto à estátua, continuo a achar que está mesmo a pedi-las: ou um garrafão ou um ramo de cravos vermelhos, por exemplo.
Votos de Páscoa para todos.

Anónimo disse...

os tempos e que ja nao eram os mesmos, caro Alvaro Silva

alvaro silva disse...

É verdade, mas os números são intemporais!

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