quinta-feira, abril 04, 2019

Bouteflika


Em 1997, fui à Argélia, representar Portugal numa reunião do Forum do Mediterrâneo. A cidade vivia num ambiente de forte tensão securitária. Como era então de regra local, e tinha já acontecido numa anterior visita, fomos colocados numa “guesthouse” fortemente protegida. Ali se passavam também todas as reuniões, o que conferia ao exercício um ambiente de exceção, que não favorecia a narrativa de normalidade que o governo argelino pretendia transmitir pelo mundo, por aqueles dias. 

Salvo a vinda e o regresso do aeroporto, sempre sob escolta, a única surtida durante a nossa estada foi uma inesperada visita ao presidente da República de então, Liamine Zéroual, com cada chefe de delegação num carro blindado, num cortejo silencioso por ruas de Argel tornadas desertas por nossa causa. Ainda guardo algures uma fotografia desse momento, que não teve grandes palavras, com um pesado ambiente protocolar.

O nosso embaixador local, José Stichini Vilela, num dos escassos períodos livres que tínhamos entre as reuniões, foi-me buscar à “guesthouse” para um almoço no hotel Hilton (curiosamente, em todas as vezes na minha vida em que fui a Argel, acabei sempre por almoçar ou jantar por ali, o que revela que se trata de um incontornável ponto social dos roteiros locais). 

Conhecedor dos meus gostos políticos, o Zé levou consigo uma antiga figura política argelina, que tinha tido contacto com a resistência democrática ao Estado Novo. Argel, nos anos 60, havia sido como que a “capital” no exterior da oposição portuguesa. Era um homem idoso, loquaz, que conhecera fugazmente Humberto Delgado, sobre quem não tinha uma opinião muito lisonjeira. Não fixei o nome do nosso interlocutor e, até hoje, não consegui sabê-lo.

A certo ponto da conversa, perguntei-lhe por Abdelaziz Bouteflika, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros dos tempos do presidente Boumédiène. 

O nome era bastante conhecido pelo mundo, tendo para sempre ficado, até para a história, a sua fotografia (na imagem, ao centro, de escuro, com bigode e cabelo farto) no aeroporto de Argel, em dezembro de 1975, ao lado de “Carlos”, (à direita, de boina), o revolucionário venezuelano que acabara de liderar o ataque à sede da Opep, em Viena e que por ali negociava a libertação dos reféns, depois desse ato terrorista. O meu companheiro de conversa reagiu então de forma imperativa: “Bouteflika? Anda por aí! É um cadáver político, na Argélia atual. Não tem o menor futuro!”.

Lembrei-me para sempre dessa espantosa “previsão”, que, até para mim, pouco conhecedor da trama política local, me surpreendeu. E com alguma razão: dois anos depois, Bouteflika viria a ser eleito presidente da Argélia, lugar de onde apenas saiu ontem... vinte anos depois ! Para “cadáver”, há que convir que não se saiu mal...

4 comentários:

Anónimo disse...

É comum haver pessoas com má ideia de Humberto Delgado, não é? Se calhar, talvez devêssemos fazer um downgrade da figura, remetendo-o para personagem de um episódio anti-ditadura e não tanto como protagonista de um grande momento da História pátria.

Luís Lavoura disse...

É comum haver pessoas com má ideia de Humberto Delgado, não é?

Creio bem que sim. Parece que ele de facto não era flor que se cheirasse.

Luís Lavoura disse...

O Bouteflika de cabelos crescidos e farto bigode parece (na fotografia) um homem bem giro.
Hoje em dia, coitado, é uma ruína.
Sic transit gloria mundi.

Anónimo disse...

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