"Mas isso é uma grande trapalhada! Como é que vais resolver o assunto, António?"
António Pinto da França, embaixador português em Angola nesses anos 80, olhou a interlocutora que lhe colocou a questão com uma cara séria, nesse almoço de amigos que, em alguns sábados, costumava fazer na residência da embaixada. O que o embaixador acabara de contar era muito curioso, embora com um lado oficioso, que ia caber à embaixada cuidar, e que ele dizia preocupá-lo.
Segundo nos disse, uma amiga comum, a Lilita, mulher de um industrial português residente em Luanda, Pedro da Cunha, tinha por hábito, nessa capital angolana praticamente desprovida de comércio, convencer os proprietários de lojas antigas a deixarem-na tentar descobrir, nos seus armazéns e fundos, coisas velhas que ainda estivessem por vender, "relíquias" do tempo do comércio colonial - quase uma década depois da independência.
Ninguém na mesa sabia então desse hábito da Lilita, de que ela nunca nos falara e que o António nos relatava. A maioria dos presente, intimamente, deve mesmo ter tido fortes desconfianças sobre a eficácia dessas "expedições", numa cidade onde praticamente nada se vendia e onde era improvável que ainda houvesse "fundos de loja". Mas, adiante.
O problema, explicou o embaixador, é que numa dessas visitas a um armazém de uma velha casa de tecidos, ao ser afastada uma estante, sentiu-se que a parede do fundo era movível. Retiradas as tábuas, surgiu - imagine-se! - um caixão. Isso mesmo, um caixão! Era um modelo muito antigo, que aparentava ter talvez um século ou mais.
A Lilita contou que o proprietário da loja mandou tirar o caixão para fora do esconderijo e decidiu chamar as autoridades. Terá vindo a polícia e, num ato de coragem, um dos agentes decidiu abrir o caixão. E o que é que encontrou? Um cadáver de homem, relativalente incorrupto, como às vezes sucede por um conjunto favorável de circunstâncias químicas e ambientais. O corpo estava vestido com uma farda militar e tinha um espadim a seu lado - que um dos polícias se apressou a recolher, segundo o comentário crítico da Lilita.
À parte o pormenor, raro, do corpo estar conservado no essencial no seu aspeto, tudo não teria passado de uma curiosidade, mobilizando, quando muito, os historiadores luandenses, não fosse dar-se o caso de, entretanto, se ter dado conta, numa placa no caixão, de que o morto era, nem mais nem menos, do que um antigo governador-geral de Angola, dos anos 70 do século XIX, de seu nome dom Segismundo Teodósio de Mendonça, visconde da Peneda.
À volta da mesa algumas pessoas tinham ficado aturdidas pela história, especialmente as senhoras, todas amigas da Lilita, que nada lhes tinha contado. O embaixador explicou que o problema que se nos deparava tinha a ver com a necessidade de fazer a trasladação do corpo para Portugal, agora que a embaixada fora alertada, dado que não parecia curial proceder-se a um enterro em Angola. Não só não havia condições dignas para tal, como podiam suscitar-se alguns problemas políticos: um ato mais ou menos solene, que trouxesse à memória um titular do tempo colonial, nos dias de acrimónia política que se viviam entre Luanda e Lisboa, era algo de impensável.
Por uma singular coincidência, e como todos nós sabíamos, familiares algo distantes do António Pinto da França, residentes em Angola há algumas gerações, pertenciam uma família de apelido Mendonça, muito integrada na sociedade angolana contemporânea. Contactados, ter-se-ão escusado e mostrado muito pouco interesse em tomarem conta dos restos mortais de um seu duvidoso antepassado, que ainda por cima havia sido governador em nome do país colonizador. A solução do envio do corpo para Portugal era a melhor, mas para onde e ao cuidado de quem?
"Ó Francisco, você que é transmontano é que podia falar com a família do Camilo de Mendonça, o homem do Cachão. Eles devem ser parentes do Dom Segismundo..."
Praticamente desde o primeiro minuto, eu tinha achado aquela história "boa demais". Era muito estranho que ela não tivesse sido objeto de conversas no seio da embaixada. Enquanto o António falava, olhei de soslaio, por mais de uma vez, para o Fernando Andresen Guimarães, cônsul-geral, por quem qualquer processo de trasladação teria forçosamente de passar. Ele mantinha um sorriso tão esfíngico como o do nº 2 da embaixada, José Stichini Vilela. Eles, como eu, estavam a ouvir aquele episódio da Lilita pela primeira vez e, à medida que a sua descrição prosseguia, foram percebendo o que se estava a passar.
É que tudo não era senão mais uuma das habituais patranhas do António, fruto da sua imaginação transbordante, cheia de pormenores credibilizantes da narrativa, às vezes com um exagero, aqui ou ali. que, para gente "calejada" nas suas brincadeiras em que já nos transformáramos, denunciavam, discretamente, a "galga". Esta era apenas uma, entre tantas...
A experiência diplomática ensina-nos que um posto diplomático, numa cidade agradável, pode transformar-se num "inferno", se acaso por acaso ali calhar um chefe difícil, que potencie ainda mais as tensões do quotidiano. Mas o contrário também é verdade: um embaixador inteligente, divertido, bem disposto, atento aos seus colaboradores e amigos, pode contribuir muito para "dar a volta" a um destino profissional pesado. António Pinto da França, de quem todos sentimos muitas saudades, fazia parte destes últimos.