sexta-feira, agosto 04, 2017

O resto é paisagem


Tornei-me lisboeta pela vida. Meio século na capital, preservando as raízes nortenhas e mantendo-me como viajante obsessivo pelo país, acabou por me tornar um nativo diferente: olho os lisboetas com uma mirada algo exterior, julgo que lhes topo bem as reações, os não-ditos – para ser mais claro, os preconceitos.

Assumindo o risco de todas as generalizações, diria que o lisboeta médio, por muito que disfarce, dá razão íntima ao dito macrocéfalo de que «Portugal é Lisboa, o resto é paisagem». A sua curiosidade pelo resto de Portugal, salvo se tiver família numas berças a que, às vezes, vai por exercício folclórico-antropológico, é muito escassa. Arrumado abril, o Alentejo passou a ser, para o cidadão de Lisboa, o seu sinónimo de «campo», muitas vezes apenas visitado a caminho do Algarve, para um «fossado» gastronómico ou uma curta vilegiatura num monte «confortabilizado». 

O Norte, para muito ulissipo-dependente, é um mistério que não chega sequer a mobilizar a sua curiosidade. Tenho amigos para quem chegar a Leiria significa atravessar uma fronteira psicológica que os coloca já às portas do Porto, mesmo na vizinhança da Galiza - dessa Espanha onde conhecem “de gingeira” Barcelona ou Córdoba, Toledo ou Valência. Mas não Viseu, a Guarda ou Bragança – como há dias me confessava um amigo com décadas de mundo e cosmopolitismo.

No cume dessa geografia do desconhecimento está o Porto. O cinzento da pedra, o intrincado das rua, a reserva das famílias, as cumplicidades quase (e às vezes) maçónicas do círculos de amigos tornam o Porto praticamente ilegível para o lisboeta. Como resposta, usa a sobranceria, o olhar arrogante sobre uma “província” que o sotaque ajuda a caricaturar, ajudado pelo agravar das rivalidades do futebol. Para o cidadão da capital, a menor reivindicação do Porto surge como um ato de despeito, revela uma impotência feita reação. O lisboeta olha com risota o ar façanhudo com que alguns portuenses clamam contra a falta de atenção à sua especificidade, à dimensão nacional dos seus interesses.

Lembrei-me disto há dias, a propósito da Agência Europeia do Medicamento. Sabe-se que António Costa, que tem do país uma visão menos “lisboeteira”, expressou a ideia, desde o primeiro momento, de que esse era um tema em que importava envolver o Porto. Não foi esse o parecer de alguma vontade central, que sempre tem Lisboa como sinónimo óbvio do país. E as coisas deram no que deram. Se e quando o Porto vier a perder a candidatura, um certo centralismo lisboeta, agora derrotado, sentir-se-á vingado. Lisboa não admite que possa haver um oásis na paisagem.

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Notícias")

11 comentários:

Anónimo disse...


É preciso pensar que para o bem ou para o mal, Portugal, passou a ser um país muito mais pequeno desde as auto estradas.
Ainda me lembro de ir passar um mês ao Algarve em Julho a meio dos anos sessenta e levar-se 6 ou 7 horas de automóvel. Tinha-se mesmo de parar em Canal Caveira para desentropecer as pernas e comer e beber qualquer coisa porque depois era o deserto.
Para norte até Tomar por exemplo demorava-se muito tempo até Vila Franca de Xira por o trânsito ser intenso e a estrada ter apenas duas faixas. Uma para norte outra para sul. Ir-se de combóio para qualquer lado durava mais tempo do que de carro porque quase todos os combóios eram ronceiros. E quando se chegava a algum sítio ficava-se sem transporte. Em 1970 eu conseguia fazer Lisboa a Portalegre em 2.50 minutos porque era de noite e tinha um carro potente. Assim qualquer saída de Lisboa só era ou por obrigação ou então por trabalho.
Para ir ao estrangeiro era de facto muito mmais fácil, para quem tinha dinheiro para isso.
Apanhava-se um avião e comodamente chegava-se passado umas horas sem o stress das viagens de automóvel com as ultrapassagens e o para arranca constantes.
Até as refeições nos aviões, nos anos sessenta, eram quase gastronómicas pois tinha-se de entreter os passageiros. Recordo-me de um voo de Lisboa para Londres, na Varig, que era muito procurado pelas refeições que serviam.
Eram de facto outros tempos, como disse no principio deste meu comentário, Portugal para o bem ou para o mal, ficou mais pequeno com as auto estradas e por isso mais viajável.

Miguel Albano disse...

Caríssimo,

não podia estar mais em desacordo. Sou alfacinha. De gema. A caminho dos 38. Adoro a minha cidade da mesma forma que adoro o meu país. E o país não é só paisagem. É indústria, é agricultura, é cultura, é inovação, é empreendedorismo, é paixão. Lisboa, é, na sua essência, uma mistura do nosso país. Consequência de um movimento de deslocalização para as metrópoles que têm já séculos.
Lisboa tem os seus defeitos. E como Lisboeta sou dos primeiros a reconhecer o impacto negativo (para a cidade e para o País) de um excesso de centralismo. Da economia, mas pior, da máquina administrativa. E sim, essa máquina administrativa tem uma visão centralista, talvez por comodismo, preguiça ou sobrevivência. Mas a máquina administrativa não são os Lisboetas, nem os Lisboetas são a máquina administrativa.

É fácil colocar sempre o ónus nos Lisboetas e em Lisboa. Mas esta simplificação não ajuda à compreensão do verdadeiro problema estruturante que é o centralismo.

Daí que, promova-se o turismo interno. Não pelos Lisboetas (afinal de contas, somos só cerca de 300 mil), mas por todos. Para o bem da nossa economia e da nossa cultura.
Promova-se a descentralização do Estado. E não é com Secretarias de Estado. É com entidades na sua totalidade.
Promova-se a mobilidade e o trabalho remoto, para que o acesso ao emprego não esteja limitado a contextos geográficos.

Mas ponham de lado essa ideia de que nós achamos que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem. E ninguém se vai sentir vingado se o Porto perder a candidatura à AEM. Isto não pode ser constantemente uma cultura de nós vs eles. Se eles perdem, ganhamos nós. Se o Porto perder, perdemos todos.

Um Porto forte significa um País forte. Quem é que não deseja ter um País mais forte?

Anónimo disse...

A análise do embaixador é, evidentemente, de um nortenho cioso do seu estatuto. Um lisboeta, é verdade, está-se nas tintas para os sentimentos anti lisboetas dos nortenhos e Coimbrões:- que outra cidade aceitaria que o seu presidente da Câmara fosse um homem do Porto? Passa pela cabeça de um lisboeta negar a beleza do Porto ou sequer compará-la com o que quer que seja? Não, o Porto é lindíssimo como naturalmente o é Lisboa. Um Lisboeta não se sente de Lisboa, cidade onde vive e de que gosta imenso, sente-se português e acha-se dono tanto de Lisboa como do Porto ou Coimbra. Ri, confesso, das comparações e ainda mais quando lhe dizem que a pronúncia deles não está certa: como se não houvesse dez pronúncias inglesas e outras tantas portuguesas. Porque uma há-de ser a verdadeira e não todas? A única coisa verdadeiramente irritante dos portuenses é a permanente bazófia sobre as suas qualidades: ninguém duvida que as tenham mas deixem os outros descobri-las, não se gabem.
João Vieira

josé ricardo disse...

Transmontano como sou, discordo desta sua análise, caro embaixador. Estou propenso a crer que sofre de uma tendência anacrónica. O comentário de Miguel Albano traduz melhor o perfil destes lisboetas de hoje, mais educados e cultos, relativamente à visão oitocentista (que perdurou até ao século passado) da "província" que praticamente já não existe (tirando os labregos das claques de futebol e outros afins).
O mal primeiro do país não reside no centralismo da capital, mas antes no centralismo do litoral.

António Azevedo disse...

Conversa recorrente... Recorrentíssima!
Que me lembre, tem 50 anos pelo menos. Quando o Fernando Tordo frequentava o bar de Leça seduzindo as rockinhas tripeiras mostrando lhes os seus singles que levava!
Neste País tudo se discute, todos dizem mal, mas nada se transforma!

Anónimo disse...

Senhor Embaixador

Serão muitos os lisboetas puros? Desta vez, não concordo consigo.
Penso que a grande maioria tem uma «terra». No meu caso, vivo em Lisboa há cinquenta e cinco anos, mas sou algarvio.

José Neto

Retornado disse...

Lisboeta julgam-se alguns, pelo facto de a mãe os terem dado à luz em São João da Pedreira.

Mas isso não será o suficiente para se julgarem Lisboetas...e muito menos alfacinhas.

São a maioria, apenas lisbonenses.

A maioria dos lisbonenses, há 40 anos a esta parte, vieram com os pais das terrinhas, e alguns aproveitaram para nascer na Alfredo da Costa.

As terrinhas dos lisbonenses vão do Minho a Timor, passando por Deli.

Um dia, quem sabe, cantarão o fado!

Anónimo disse...

Subscrevo inteiramente o seu Post e nesse sentido discordo inteiramente da análise, ingénua, do comentador Miguel Albano e por junto de José Ricardo. Só quem não conhece o país, o que compreendo quem tem apenas 38 anos e pouco seguramente conhecerá deste país e das suas diferenças e acima de tudo da clara e indiscutível atitude dos lisboetas sobre o resto do país. O lisboeta não passa férias no Norte, vai, no Verão, com as Tias, para o Algarve e, havendo dinheiro, compra um Monte no Alentejo. O resto são tretas lisboetas!
Acontece que tendo nascido em Lisboa e por cá vivido, estudado e casado, mas como tenho de viajar por esse país fora, sobretudo para o Norte (Porto, acima de tudo), por razões profissionais, sei do que falo e compreendo o seu Post. A malta daqui julga-se a maior. A maioria nem sequer sabe, falo de gente entre os 20 e 40entas, onde fica esta e aquela cidade, vila, aldeia...no Norte (nem, tão pouco no resto do país). Nem se preocupam com isso. O GPS "cumpre-lhes" a função, patética, de lhes dizer como ir, mas não lhes diz onde estão, geograficamente. E o desconhecimento pelo Norte mantêm-se. Enfim, alfacinhas!
a)Francisco Vale

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Não me parece que o Sr. Emabixador se referisse ao pensamento dos 550k habitantes de Lisboa (pouco me interessa quantos lá vivem há 1 dia ou quantos são "de gema"), mas que esta mentalidade ainda subsiste num número de cabecinhas acima do esperado, subsiste - talvez num modo mais encapsulado e políticamente correto que no passado.

Moro a 85 km de Lisboa e sinto-a quase ao pé da porta, são cerca de 50 min de carro ou 1h10-1h20 (Só?!) numa das cerca de 50 carreiras de autocarros ("Tantas!!??") que, em cada sentido aos dias úteis, ligam as duas cidades, já aquilo que percebo de alguns lisboetas é uma perceção de distância muito maior e o tal interesse "folclórico-antropológico" das áreas extra-metropolitanas - os devaneios provincianos dos tais lisboetas tratam-se quase de uma experiência exótica.

Francisco Vale, impecável! Em sintonia com o que disse, tinha uma colega da faculdade que de forma fofinha fazia imensa gala em demonstrar uma total ignorância geográfica face a tudo o que se localizasse a norte do eixo Lisboa-Sintra.

Anónimo disse...

Não sei em que raio de ambiente se moverão e viverão estes comentadores que só conhecem lisboetas que desconhecem o resto do país e que apenas se movem para baixo, para os Algarves.

Ou então sou eu que tenho um percurso esquisito e por todo o lado por onde vá encontro sempre lisboetas que conhecem o resto do país e se interessam por ele e por o conhecer.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Já disse e reafirmo, ninguém se refere aos 550k habitantes de Lisboa, nem pouco mais ou menos (aliás sou absolutamente avesso a generalizações de persolnalidade relativas à origem geográfica das pessoas), agora que em 2017 continua a existir um bom punhado de lisboetas em cujas cabeças reina o "Lisboa é cidade, o resto é paisagem", existe.

Poder é isto...

Na 4ª feira, em "A Arte da Guerra", o podcast semanal que desde há quatro anos faço no Jornal Económico com o jornalista António F...