sábado, dezembro 18, 2021

“Incompetência e impopularidade. Mas não as duas…”


No Reino Unido, é vulgar os partidos da oposição obterem bons resultados nas eleições que, por qualquer razão, ocorrem, por vacatura ocasional, numa ou outra circunscrição. Essas “by-elections” podem mesmo trazer fortes surpresas.

Mas o que se passou em North Shropshire (as eleições britânicas têm sempre lugar às quintas-feiras, para quem não tenha ainda notado) criou uma pouco comum onda de choque no Partido Conservador, dirigido por Boris Johnson. É que a candidata vencedora, pertencente ao Partido Liberal-Democrata, conseguiu deslocar 34,1% do eleitorado que antes aí votava nos conservadores, um “swing” que será o terceiro pior resultado da história dos “tories”. Desde há 200 anos que os conservadores não perdiam essa circunscrição! 

Sendo verdade que “uma andorinha não faz a primavera”, a dimensão do desastre parece estar a ser olhada com muita atenção no partido derrotado. E há quem lembre que, no passado, foram este tipo de eleições parciais que aceleraram o declínio de vários primeiros-ministros, às vezes pela concentração do voto dos eleitores no candidato oposicionista melhor colocado para derrotar o do governo.

É verdade que esta humilhação não ocorreu às mãos do Partido Trabalhista, o único que, numa futura eleição geral para a Câmara dos Comuns, pode aspirar a substituir os conservadores. E, por essas bandas, há muitas dúvidas de que a liderança que sucedeu ao claramente inelegível James Corbyn, hoje protagonizada por Keir Starmer, embora de perfil mais abrangente, seja suficientemente eficaz para se sugerir como alternativa ao eleitorado. Porém, algumas sondagens já o favorecem e, em especial, o nível de rejeição a Johnson cresce a cada dia.

Os liberal-democratas, que ganharam esta eleição, são e serão um eterno terceiro partido que, nas últimas décadas, só têm conseguido obter fatias de poder quando os conservadores deles necessitam para construir maiorias. O sistema político britânico favorece claramente a bipolarização, naquilo que é visto como um modelo que preza a busca da governabilidade, em detrimento da preocupação pela legitimação representativa.

Uma caraterística curiosa do sistema britânico é o facto do poder, nos partidos, assentar nos seus deputados eleitos para a Câmara dos Comuns e não na sua máquina regional ou de coordenação nacional. É nos deputados que reside a força que permite alterar as lideranças, mesmo a meio do percurso de uma legislatura. O caso mais notório foi o de Margareth Thatcher, em 1990. Aquela que ainda hoje é reverada como a figura mais marcante do conservadorismo, depois de Churchill, foi vítima de um “golpe de mão”, que a afastou em favor de um cinzento John Major, por ser vista já como uma “liability” para a credibilidade eleitoral do seu partido. E foram precisamente os deputados que ela tinha ajudado a eleger e a solidificar no governo que a enviaram, sem cerimónias, para casa. A crueldade, na política britânica e não só, é o nome do jogo.

Mas convém lembrar que é necessário que 55 deputados se associem para que um processo de destituição de um líder e primeiro-ministro conservador se possa iniciar. E, depois, que mais de metade dessa representação parlamentar alinhe atrás de um nome alternativo. Um processo complicado.

Boris Johnson, que tinha ajudado a sapar, com alguma falta de lisura, a liderança pouco brilhante de Theresa May, revelou ser capaz, em 2019, de galvanizar as hostes conservadoras e ganhar, por um raro “landslide”, uma forte maioria nos Comuns.

Verdade seja que foi nisso bastante ajudado pelo descrédito político do líder trabalhista James Corbyn, envolvido em acusações de anti-semitismo, que muito o fragilizaram. Corbyn como que emulou, em termos ideológicos, Michael Foot, um outro líder radical que, nos anos 80, tinha apresentado ao país um programa político trabalhista que ficou conhecido, com humor britânico, como “the longest suicide note in History”. Foot acabou por condenar o “Labour” a uma longa travessia do deserto, que só acabou com Tony Blair, na verdade talvez o líder mais conservador que os trabalhistas alguma vez conseguiram produzir…

Desde a sua eleição, Boris Johnson tem mantido, e talvez agravado, um comportamento errático e extravagante, quer no estilo quer na substância. Arrogante na gestão negocial do Brexit, está a dar do Reino Unido uma imagem, que não era habitual, de um país incumpridor dos seus compromissos internacionais, não obstante essa atitude lhe poder render alguns dividendos nacionalistas e protecionistas, para consumo interno. O recuo escandaloso face a compromissos assumidos com os 27 e com Bruxelas, na questão comercial que envolve a Irlanda do Norte, leva alguns a dizer, ironicamente, que “nem o IRA fez tanto pela união das Irlandas”…

Depois de um período de “namoro” com Trump, embora sem grandes consequências práticas, Johnson conseguiu adaptar-se bem à liderança de Joe Biden (que dele tinha dito coisas bem pouco simpáticas) e, no plano internacional, apanhou uma prestigiante “boleia” na questão do acordo estratégico Aukus, que junta o Reino Unido, a Austrália e os EUA, num claro sinal de confronto com a China. O eventual sucesso da economia britânica no pós-Brexit vai depender bastante da boa vontade americana, mas já se percebeu que, em termos comerciais, a “special relationship” não parece ultrapassar generalidades e boas-vontades declaratórias.

Como dizia ontem o “The Economist”, o partido conservador, no tocante aos seus líderes, costuma “tolerar incompetência e impopularidade, mas só uma de cada vez”… E Johnson parece estar a “acumular” cada vez mais. O sentimento de desagrado face ao seu modo de governar começa a dominar as hostes conservadoras,  As “trapalhadas” das festas feitas sob confinamento, as obras feitas em Downing Street e pagas pelo partido, a sua extrema relutância em se separar de um consultor, Dominic Cummings, um homem brilhante mas “sulfuroso”, sem baias no seu comportamento incívico em tempos de pandemia - e tantas e tantas outras pequenas crises, tudo tem afetado a imagem de Johnson. Nos últimos dias, surgiu mesmo uma forte ala libertária de deputados conservadores que está a colocar em causa a legitimidade e necessidade das medidas de proteção anti-pandemia, em que o primeiro-ministro se tinha empenhado. Contestam o designado "plano B", que determina a introdução de passes sanitários para entrada em discotecas e grandes eventos, a obrigatoriedade de vacinas para profissionais de saúde e o uso de máscaras em espaços públicos fechados.

É aliás o grau de sucesso na luta contra a pandemia, bem como a eficácia das medidas para ajudar a economia neste novo recuo na abertura da vida social,  que vai servir de teste, a curto prazo, para Boris Johnson. Por ora, ele ainda pode dizer, como Mark Twain, que “as notícias sobre a sua morte são exageradas”. No final do primeiro trimestre de 2022, ver-se-á melhor se os conservadores se inclinam para escolher uma nova cara. Uma coisa é certa: dificilmente será alguém mais despenteado...

sexta-feira, dezembro 17, 2021

Bye bye Uber

Fui um bom cliente da Uber. Deixei de o ser. Os cancelamentos passaram a ser muito frequentes, os preços dispararam, a qualidade média do serviço tem vindo a piorar a olhos vistos. Estou a regressar aos táxis, só esperando que não sejam do senhor Florêncio.

Humilhação

O “perp walk” de João Rendeiro, em frente às câmaras, de algemas no pulso, constitui um ato rotineiro de deliberada humilhação dos detidos, o qual, tendo uma tradição estabelecida nos EUA, desconhecia fosse prática corrente na África do Sul.

A chinela

Na minha terra, quando se vê alguém começar a passear-se “aos ombros de si próprio”, toldado por uma crescente ambição, é costume dizer-se que essa pessoa “não se enxerga”! Até ao dia em que será mesmo preciso repetir-lhe o ditado: “ne sutor supra crepidam“.

Tiago Pitta e Cunha

 

Quando, em 2001, fui representar Portugal nas Nações Unidas, vim a encontrar, na nossa missão em Nova Iorque, Tiago Pitta e Cunha, integrado na excelente equipa que o meu antecessor, António Monteiro, tinha criado para a nossa presença no Conselho de Segurança. Conhecia o Tiago pessoalmente, mas não profissionalmente.

Com alguns desafios eleitorais imediatos e muito importantes, no seio da organização, encontrei no Tiago o “campaigner” mais eficaz que poderia ter tido. Muito graças a ele (recordo, em especial, um inédito documento de divulgação que ele conseguiu fazer elaborar em árabe!), com a sua ativa presença nas horas de interlocução que, no Indonesian Lounge da ONU, mantive com colegas, tudo somado à extrema dedicação de outros colaboradores, conseguimos ganhar todas as eleições - todas, repito, todas - que tivemos pela frente. 

Na área dos Oceanos, o Tiago tinha-se entretanto tornado num diplomata especializado, já reconhecido pelos seus pares. Mário Ruivo, a grande figura nacional nesse domínio, nunca lhe poupou elogios.

Um dia, no ano seguinte, o Tiago veio dizer-me que tinha recebido um convite para regressar a Lisboa, para integrar um gabinete ministerial, na Presidência do Conselho de Ministros, para um lugar de consultor jurídico. “Vai ficar com a questão dos oceanos?”, perguntei-lhe. Não sabia. Ia a Lisboa para um primeiro contacto. “Insista em ficar com a área dos oceanos. Não perca a experiência que ganhou”. Estou certo que ele se recordará dessa nossa conversa. No regresso, disse-me que tinha obtido uma promessa, embora ainda não muito clara, de que esse tema ficaria no seu pelouro. Esse era também o seu interesse pessoal. Felizmente isso veio a acontecer. 

Desde então, o percurso profissional de Tiago Pitta e Cunha passou a ser esse, até ter chegado à presidência da Fundação Oceano Azul, onde, ao que sei de ciência certa, está a fazer um ótimo trabalho, com reconhecimento internacional.

Há minutos, vi que lhe foi atribuído o prestigiado Prémio Pessoa, um galardão que premeia, no presente, aqueles que estão a ajudar a construir o futuro. Nada mais justo e adequado.

Um forte abraço, Tiago!

Amarelo


A cada dia, meço o humor dos deuses para comigo pela quantidade de amarelos que apanho nos semáforos.

quinta-feira, dezembro 16, 2021

“A Arte da Guerra”


Os desafios do primeiro Conselho Europeu da era pós-Merkel, as eleições presidenciais no Chile e as atribulações de Boris Johnson são os três temas que, com António Freitas de Sousa, abordo esta semana no “A Arte da Guerra”, o podcast do “Jornal Económico”, que pode ver clicando aqui.

Contra a parede


Os últimos dias não tinham sido fáceis. Uma semana de hospitalização no Pitié-Salpêtrière, para uma operação à coluna, a poucos dias do Natal de 2011, não me tinha deixado no melhor dos espíritos. O meu saudoso amigo António Silva bem me tentava animar, com um toque de humor negro: "Dá-te por feliz! Tiveste mais sorte que a Diana ..." Ela havia sido atendida naquele hospital, após o acidente.  Que raio de lembrança!

Na manhã da saída do hospital, faz hoje precisamente 10 anos, uma sexta-feira, eu estava a atravessar Paris deitado numa ambulância, de regresso à residência, quando recebi a notícia de que setores da comunidade portuguesa se preparavam para promover, nessa tarde, uma invasão de protesto das instalações do serviço de coordenação do ensino de Português em França, dependente da embaixada. Haveria, ao que se dizia, "ranchos" de crianças à frente dos manifestantes, pelo que era impensável determinar qualquer prévio resguardo policial do espaço.

Com os cortes financeiros impostos, nessa época, pela "troika", quase três mil crianças tinham ficado sem aulas, depois do "abate" de dezenas de professores. Porém, em face das instruções imperativas recebidas de Lisboa, a embaixada nada podia fazer, senão dar cumprimento à ordem. Um embaixador é "a man for all seasons".

De uma ala política do ministério, de Portugal, recebi, na ambulância, pelo telefone, a pergunta, um tanto angustiada: o que é que eu tencionava fazer? Não deixava de ter alguma graça: estava deitado numa maca, com o corpo a doer-me nas curvas e nos obstáculos das ruas parisienses, e logo me cabia a mim encontrar uma solução que evitasse o expectável espetáculo televisivo da justa revolta da comunidade, com a qual, obviamente, eu não podia dar mostras públicas da menor solidariedade, porque isso significaria a correspondente deslealdade face ao poder que, com legitimidade democrática, chefiava o serviço público que eu ali representava. Tão simples quanto isso, por muitos que alguns o possam não entender.

Terá sido então algum providencial abanão da ambulância que me despertou uma solução prática para o problema imediato: dei ordens para encerrar os serviços da coordenação do ensino de Português, iniciando os seus funcionários mais cedo o fim de semana... Era o ovo de Colombo! Com as instalações encerradas, ninguém se iria atrever a invadi-las.

À chegada à embaixada, onde desembarquei de maca, tinha uma surpresa. Um grupo de jornalistas esperava-me. Porque era importante desdramatizar a crise, decidi ter uma conversa com eles. Contudo, não podia convidá-los para uma reunião à volta de uma mesa... porque, por alguns dias, eu estava impedido fisicamente de me sentar. Assim, durante vários minutos, falei de pé, encostado a uma parede, para me aguentar, com a voz frágil de quem saía de uma hospitalização de mais de uma semana. 

Nessa noite, um amigo, telefonando-me de Portugal, desconhecedor do meu estado de saúde, perguntou: "Pareceu-me que estavas muito pálido, hoje, na televisão. O assunto não era para menos! Estavas contra a parede!". Nem ele sabia como estava certo, mas que a razão da minha palidez era outra.

quarta-feira, dezembro 15, 2021

“Unidos por uma gaveta”


Foi ontem. O auditório da Fundação Calouste Gulbenkian abarrotava. Ninguém estava ali para cumprir calendário. Sentia-se que cada um quis, com a sua presença, dar um último testemunho do apreço que tinha pela figura de Jorge Sampaio, agora que passam três meses sobre o seu desaparecimento.

Tratou-se da ocasião da apresentação do livro “Era Uma Vez Jorge Sampaio”, com textos escritos sobre ele, da autoria de 130 amigos e admiradores. Trata- se de uma bela peça, com o conhecido traço de qualidade editorial da “Tinta da China”, recheado de fotografias.

Gostava de destacar, pelo seu significado, o belo improviso que Marcelo Rebelo de Sousa fez na sessão, num registo que combinou bem a dimensão institucional com o sentimento de uma nota pessoal de amigo.

Para esse livro, escrevi um texto , intitulado “Unidos por uma gaveta”, que recupera duas histórias que já aqui tinha publicado. Para quem estiver interessado em lê-lo, ele aqui fica:

“Não fui um amigo antigo de Jorge Sampaio. Só o conheci, com toda a família, em Londres, em 1993, num jantar em casa de Ana Gomes, com António Franco também por lá. Disse-me: “Há muitos anos que ouço falar de si, a amigos comuns, mas, curiosamente, nunca nos tínhamos encontrado”.

Era verdade. Tendo ambos andado pelos corredores daquilo que viria a ser o MES, nos idos de 1974, ele como sua figura referencial e eu com uma militância muito vaga, nunca tínhamos chegado à conversa.

No ano seguinte, tendo eu já regressado a Lisboa, António Franco disse-me que Jorge Sampaio queria falar comigo. Fui a sua casa, uma noite. Informou-me ter decidido vir a apresentar uma candidatura à Presidência da República, embora isso só viesse a ser concretizado meses depois.

Pediu-me que o ajudasse a estruturar um grupo para conversas sobre questões internacionais, a reunir até às eleições. Lembro-me de algo que então me disse: "Há uma coisa muito importante: não quero nenhum papel do MNE! Quero apenas trocar ideias com quem pensa estas coisas".

Dei-lhe, dias depois, uma sugestão de lista de pessoas para o grupo a criar: Carlos Gaspar, José Filipe Moraes Cabral, José Freitas Ferraz, Luís Filipe Castro Mendes e eu próprio. Jorge Sampaio formularia o convite a cada um.

Tempos mais tarde, combinámos uma primeira reunião do grupo, em minha casa. Ao final da manhã do dia acordado, quando saía do meu andar, encontrei a empregada dos vizinhos que moravam em frente. “Esteve aí o senhor presidente, à sua procura, logo de manhã!”, disse-me. O “presidente”? O presidente da República era Mário Soares e não era plausível que viesse procurar-me a casa. “O presidente da Câmara, o Dr. Jorge Sampaio”, esclareceu ela.

Fez-se-me luz! Tinha combinado com Sampaio que ele viesse a minha casa às “nove e meia”. Só que não disse “da noite”, no pressuposto de que ele estaria ciente de que as manhãs de sábados eram sagradas para o meu sono. Sampaio terá entendido que era “da manhã” e, britânico nos costumes, lá tinha estado a essa hora, pontualmente. Eu nem tinha ouvido o toque da campainha. Telefonei-lhe, de imediato, rimo-nos do equívoco e, pelas “vinte e uma e trinta” desse mesmo dia, ali regressou ele, de novo.

Não tenho presente quantas dessas reuniões tiveram lugar, mas guardo delas muito boa memória.

Com a minha ida para o governo, meses antes da sua eleição e posse, deixei de assegurar a presença regular nesses debates. Porém, Sampaio não esqueceu a minha anterior colaboração e teve a amabilidade de me integrar no jantar que veio a oferecer em Cascais a esse seu "team" de política externa.

Pediram-me para ser eu a fazer o agradecimento final, em nome do grupo. Disse-lhe da imensa alegria que era vê-lo eleito. No final dessa curta intervenção, fiz um pedido a Jorge Sampaio. Tinha a ver com os móveis do Palácio de Belém. Imaginava que devessem ser uma imensidão, mas havia uma coisa que eu lhe solicitava que fizesse: que abrisse todas as gavetas.

Sampaio e os presentes, que incluíam as nossas mulheres, olharam para mim com algum espanto. Lá esclareci o mistério. É que, depois de Mário Soares abandonar o Palácio, numa daquelas gavetas, deveria estar algo que ali nos unia. Não fora Soares quem afirmara que “tinha metido o socialismo na gaveta"?

Mas eu estava enganado: Soares não tinha deixado para trás o conteúdo da gaveta. E se havia pessoa que dispensava essa herança, porque o socialismo era a matriz indissociável da sua forma de olhar e intervir no mundo, essa pessoa era Jorge Sampaio.”

terça-feira, dezembro 14, 2021

Estrelados


Não são só os ovos que são estrelados, são-no também os restaurantes, através das classificações de qualidade dadas pelo Guia Michelin, uma publicação iniciada em França em 1900, sob a responsabilidade do fabricante de pneus com o mesmo nome. Uma, duas ou três estrelas distinguem esses estabelecimentos, com um efeito muito evidente na sua popularidade e apelo comercial. 

Portugal teve, pela primeira vez, em 1929, o seu nome inscrito nos Guias Michelin, através do Hotel de Santa Luzia, em Viana do Castelo, e do Hotel Mesquita, em Vila Nova de Famalicão, que então obtiveram uma estrela, que sustentaram por vários anos. 

No dia de ontem, foi feito mais um anúncio anual dos restaurantes selecionados em Portugal (e em Espanha, porquanto o nosso país surge num quadro peninsular). Atualmente, a lista portuguesa passou a ascender a 28 restaurantes, sete dos quais com duas estrelas. O Guia Michelin não considerou, até hoje, nenhum restaurante português digno da classificação de três estrelas. 

O tipo de gastronomia comum à esmagadora maioria dos restaurantes estrelados assenta em experiências gustativas de elevado requinte, feitas com produtos de muita qualidade e marcadas por combinações de sabores que se pretendem criativas e originais. A apresentação dos pratos é objeto de uma arte quase pictórica e os restaurantes que os oferecem (“oferecer” é uma força de expressão, porque os preços deste tipo de restauração são, quase sempre, muito elevados) são, sem exceção, titulados por chefes de cozinha (comummente designados por “chefs”, à francesa) que respondem por um currículo profissional que os torna objeto de transferências regulares entre restaurantes. A estes, para ascenderem e se manterem no patamar das estrelas, é invariavelmente exigida uma muito boa qualidade de serviço e uma carta de vinhos com uma diversidade a condizer.

Há quem ironize - muitas vezes por desconhecimento, outras por mera má língua - com as escassas quantidades dos produtos apresentados em cada prato, esquecendo que uma refeição, neste tipo de restaurantes, se compõe, em regra, por bastantes mais pratos do que a simples trilogia - entrada, prato, sobremesa - típica de uma refeição de cozinha tradicional. E que é a soma desses “momentos”, às vezes sublimes e surpreendentes, na sua originalidade gustativa, que torna algumas dessas refeições únicas e até inolvidáveis.

Uma coisa é certa: quem pretenda “enfardar” pratadas “das antigas” deve afastar-se dos restaurantes “estrelados” recomendados pela Michelin, embora, numa solução de meio termo, eu recomende que esteja atento à utilíssima lista de alguns outros restaurantes que o Guia também traz, muito em especial os que têm por indicação “Bib Gourmand”, escolhidos por uma muito boa qualidade/preço. Fora estes, no entanto, a minha razoável experiência mostra-me que a lista de outras casas destacadas pelos guias nem sempre é fiável, imagino que por frequente preguiça de reverificação e alguma desatenção ao surgimento de novidades. 

Gostava de deixar claro que fico muito satisfeito com o facto de, pouco a pouco, o nosso país ter vindo a aumentar o número de restaurantes a que foram atribuídas estrelas, consagrando o trabalho muito dedicado de grandes profissionais que muito honram a gastronomia em Portugal - embora valha a pena sublinhar que isso não é sempre sinónimo de “gastronomia portuguesa”, não obstante o esforço de muitos desses cozinheiros (onde há muito poucas mulheres) no sentido de evitarem seguir um mero “template” internacional. Por isso, valorizo bastante quem, nesta produção de “fine dining”, não se cansa em destacar a originalidade dos produtos portugueses (e não apenas os produtos do mar, como regularmente acontece) e deixar disso uma marca distintiva em cada prato.

Como diretor da Academia Portuguesa de Gastronomia, que sou desde há alguns anos, habituei-me a respeitar muito este tipo de gastronomia e a procurar valorizá-la no plano internacional. A imagem de Portugal como destino turístico só ganhará com o aumento de restaurantes consagrados na lista ”estrelada” do Michelin. E tudo deveremos fazer, a todos os níveis, nomeadamente oficiais, para tentar expandir entre nós essa consagração.

A título pessoal, contudo, devo dizer que, conhecendo e apreciando bastante alguns dos restaurantes portugueses a que a Michelin já atribuiu “estrelas”, não sou um cliente regular deste tipo de gastronomia, nem sequer sinto a tentação de tentar conhecer todas as casas que a promovem. 

Isso acontece não apenas porque tal me é incomportável financeiramente mas pelo facto, que confesso sem o menor problema, do meu nível de exigência em matéria gastronómica ficar bem confortado com muitos outros bons endereços de restauração que não têm a menor ambição de algum dia virem a obter a consagração do Guia Michelin. Com isto quero afirmar, para que não restem equívocos, que há uma muito boa gastronomia em Portugal para além daquela que os restaurantes com estrelas Michelin nos apresentam.

segunda-feira, dezembro 13, 2021

Pécresse, Zemmour e a França que aí vem


A quase seis meses do sufrágio, a luta política em torno das eleições presidenciais francesas segue já bastante animada. 

À esquerda, Jean-Luc Mélenchon é o único a conseguir furar, ainda que ligeiramente, a barreira dos 10%, com a candidata socialista Anne Hidalgo a mostrar-se sem hipóteses de dar um salto significativo nas sondagens. A desesperada tentativa que fez para lançar uma espécie de “primárias à esquerda”, para escolher “quem estivesse em melhores condições para derrotar a direita”, ideia que envolvia Mélenchon, os Verdes e candidatos de outros setores, foi acolhida com total frieza por esses mesmos candidatos e lida por toda a gente como sintoma de total isolamento.

Mélenchon, um antigo secretário de Estado de Mitterrand (facto pouco conhecido) que tenta federar a “esquerda da esquerda” através da sua “France Insoumise”, é um candidato sem condições de ser eleito ou mesmo qualificar-se para a segunda volta. Isto acontece por muitas razões mas, muito em especial, pelo facto da esquerda, em geral, ser, nos dias de hoje, um setor político com um “appeal” conjunturalmente reduzido no cenário francês. Um dia poderá tentar perceber-se o que levou a este “desastre”, à revelia de uma tradição política de muitas décadas. O que, no entanto, não significa que não seja uma tendência reversível.

À direita, há duas surpresas. 

No seu extremo, o surgimento de Éric Zemmour, um jornalista, prolífico comentador televisivo e escritor ultra-conservador, trouxe uma quebra sensível à força de Marine Le Pen, que, por muito tempo, se considerou, com razão, a federadora da extrema-direita e, nessa qualidade, a “challenger” natural de Emmanuel Macron. O presidente da República estaria, ao que se diz, bastante confortável com esse cenário. É que, em 2017, Le Pen havia dado clara mostra das suas limitações, no debate entre as duas voltas, e nada levava a supor que as coisas se tivessem alterado em termos que pudessem colocar em risco a reedição das pretensões de reeleição de Macron.

O surgimento de Zemmour veio alterar esse equilíbrio. Le Pen teve uma queda imensa nas sondagens, claramente em favor de Zemmour, que, nas primeiras semanas, chegou a equivalê-la na preferência potencial dos eleitores. O jornalista defende uma agenda anti-islâmica e de rejeição da presença dos estrangeiros, dizendo querer reconstituir uma França “para os franceses”, que entende estarem a ser privados do seu país por uma “invasão” islâmica que, a seu ver, tenderá, a prazo, a tomar conta da França (“le grand remplacement”). Com um discurso muito articulado, Zemmour é um razoável tribuno e um excelente debatedor, sendo que a sua sofisticação intelectual (no que se distingue imenso de Trump) o pode tornar mais ouvido em setores mais conservadores da direita tradicional. Em seu desfavor funcionará um excesso de agressividade verbal, alguma misoginia e um sensível recuo em temáticas de género, que o isolam de um eleitorado mais centrista. Tem contra ele muitos setores de imprensa, os quais, no entanto, lhe continuam a dar imenso palco. Num debate recente com o ministro da Economia, Bruno le Maire, Zemmour mostrou um manejo dos temas económicos que surpreendeu muitos observadores, que o consideravam limitado a uma agenda quase monotemática - assente na segurança e na identidade.

A segunda surpresa, também à direita, foi dada pela escolha de Valérie Pécresse, numa eleição “primária” entre os militantes da direita clássica. Embora a imagem de Pécresse fosse sólida e, ainda recentemente, tivesse sido reconduzida pelos eleitores à frente da região do Grande Paris, estava longe de ser dada como favorita na seleção do candidato do “Les Républicans” às presidenciais. Xavier Bertrand, também presidente de região e antigo ministro de Sarkozy era visto como a escolha mais provável. O antigo comissário e negociador do Brexit, várias vezes ministro, Michel Barnier, parecia oferecer uma “imagem de Estado”. E até Éric Ciotti, da ala direita do partido, com uma linguagem e propostas de grande radicalismo, “pescando” claramente nas águas de Le Pen e Zemmour, parecia surgir como mais qualificado. Seria, aliás, Ciotti quem iria passar a uma segunda volta com Pécresse, sendo aí derrotado. O facto de todos esses putativos candidatos terem já declarado apoiar Pécresse ajudá-la-á muito na mobilização das hostes comuns.

Pécresse, também ministra de Sarkozy, traz consigo um passado governamental sólido, competente, mas não muito espetacular. Ser mulher acabará por um fator importante, ter tido um percurso político sem falhas e sem “gaffes” redunda numa excelente qualificação. Contra ela funcionará um tom algo arrogante e um ar “social-urbano” a que os franceses chamam “bobo”. Mas Pécresse revela uma interessante determinação no discurso e revela ter ideias claras. Parece, ainda assim, “à esquerda” de François Fillon, o primeiro-ministro de Sarkozy que, em 2017, terá ficado atrás de Macron por virtude de trapaças nepotistas em que se havia envolvido. Pode assim dizer-se que Pécresse estará no “mainstream” do “Les Republicans”. Ela própria afirma que quer ser “um terço de Thatcher e dois terços de Merkel”. 

A escolha de Valérie Pécresse é, assim, uma má notícia para Macron e para Zemmour. 

Macron foi (e, a sê-lo de novo, assim será) eleito com muitos votos do eleitorado da direita clássica, que Pécresse agora passou a representar. E esta parece ter possibilidade de vir a deslocar muitos dos apoios que Fillon tinha perdido, na sua “débacle” ética, em 2017. E, claro, numa hipotética segunda volta Macron-Pécresse, a tarefa do presidente será mais difícil do que o seria com Le Pen, bem menos qualificada, em quem muitos eleitores da direita tradicional continuariam a não se rever e que todos recordariam ter sido “destroçada” no debate entre os dois turnos.

Mas também Zemmour, que contava com parte do eleitorado do “Les Républicans” para garantir apoios que pudessem ir para além da “direita popular” de Le Pen, terá agora um desgaste na sua margem de eleitorado potencial. Aliás, numa sondagem feita já depois do surgimento de Pécresse como candidata do “Les Républicans”, Zemmour recuou nas intenções de voto.

Porém, é ainda muito cedo, faltam alguns meses para as eleições e muita coisa pode ainda acontecer. 

Macron, com a saída de cena de Merkel e com a titularidade da presidência francesa da União Europeia, que vai exercer no primeiro semestre de 2022, ganha visibilidade, passando a ter consigo um forte sopro de prestígio institucional. A sua vitória em maio de 2022 continua a ser o cenário mais provável. Depois de Sarkozy e Hollande não terem tido condições para renovar o quinquenato, isso significaria um retorno à viabilidade prática de recondução dos presidentes.

Leonor


Partiu a Leonor Xavier. Foram anos de luta corajosa contra o “passageiro clandestino” que lhe rondava as horas. 

Há meses, escrevi aqui este texto sobre ela. Hoje, neste dia de tristeza, fico contente pelo facto de ela ter podido lê-lo e apreciado, como me disse.

“É uma mulher com algumas vidas, com muitos livros, com imensos amigos, com uma coragem acima do mundo. À minha amiga Leonor Xavier, a existência tem pregado partidas, sustos e, às vezes, jogado com ela às escondidas. A Leonor, com aquela voz rouca e doce que, à primeira vista, poderia transportar um discurso naïf, é alguém que descobriu que as dificuldades se agarram de caras, que os problemas se resolvem combatendo em terreno aberto. É uma cabeça arejada, positiva, que olha as pessoas de frente, guiada por uma ética à prova de bala, com valores que caldeou ao longo dos anos. Quando saímos do seu convívio, das conversas sempre interessantes que com ela temos, fica-nos uma admiração imensa pela sua força e determinação. Posso dizer uma coisa muito sincera, sem correr o risco de se julgar que estou a fazer um ’número’?: saio sempre melhor do que me sentia, depois de falar com a Leonor, nem que seja apenas pelo telefone. Mas, claro, tenho saudades dos almoços lentos no Ribatejo, das ocasiões em que ela sabe juntar a gente certa, para horas divertidas, coisa que a pandemia interrompeu. Lembrarei para sempre aquele seu aniversário louco, com baile, na Barraca! E a poesia na igreja do Rato. E o debate sobre o Brasil no El Corte Ingles. E recordo as histórias com Sérgio Godinho e Nélida Piñon no CCB. E também me fazem falta as noites na Dois, no Procópio, com a Leonor a dar a deixa para as gargalhadas da Alice. Em outros tempos, também com o Raul por lá, depois os tempos passaram a ser com alegres saudades dele. A Leonor faz sempre da vida uma festa - e, para nossa sorte, convida-nos para ela!”

(Estou certo de que a Leonor teria gostado que eu utilizasse, nesta sua despedida, a fotografia que lhe tirei, em sua casa, no Ribatejo, há seis anos, no aniversário de Maria Antónia Palla, quando foi descortinar aos baús a sua imensa coleção de trajes de Carnaval.)

De cor

Jorge Palma tem uma canção em que, a certa altura, fala de um tipo que no “domingo sabe de cor o que vai fazer segunda-feira”. Pois eu, ontem, não sabia! Este dia vai ser tão cheio que, durante o domingo, constatei, por mais de uma vez, que não me conseguia lembrar de tudo o que teria de fazer até ao final da noite de hoje. Seria falta de memória, já fruto da idade? Ou será que, na realidade, não me devia meter numa vida que, de tão ocupada, já não é para a essa mesma idade, é “areia” demasiada? É com “angústias” como estas que vou passando os meus dias de “ex-reformado”, para utilizar um epíteto que um amigo me dá. Mas não me tenho dado nada mal, confesso. Por isso, olhem!, vou andando…

(Não levem isto à letra, por favor! Foi só a dificuldade pontual de me lembrar a hora exata de sete compromissos seguidos num só dia, sem ir à agenda, o que, em mim, não é vulgar.)

domingo, dezembro 12, 2021

A falta de vergonha

Fotografia de Rendeiro de pijama. Alguma comunicação social esforça-se por confirmar a mediocridade de que, com razão, a acusam. Já nem sequer é triste; é apenas patético.

sábado, dezembro 11, 2021

JR


Isto da idade não perdoa! Imaginem que ainda sou do tempo em que o JR vivia em Dallas e não em Durban…

“ Encontros Imediatos”




É um programa da Antena 1, feito por João Gobern e Margarida Pinto Correia. Chama-se “Encontros Imediatos”. São duas horas serenas, de muito boa música e bela conversa, sem uma agenda que não seja um passarinhar pelo percurso de vida do entrevistado. Hoje, na manhã deste sábado luminoso, saiu-me a  mim “em rifa”. Fico muito grato pela lembrança. Falou-se um pouco de tudo, de Vila Real à diplomacia, da gastronomia à política, de comboios e de cidades, de outros tempos e dos de hoje, passando por algumas escolhas minhas, na música e na poesia. Até a esquina da Gomes e a aletria do Aprígio vieram à baila, imaginem! Tive imenso prazer em ter podido participar nesta conversa, dividida em duas partes, que aqui ficam, não vá dar-se o caso de haver alguns ouvintes benévolos, dispostos a ouvir-me.

sexta-feira, dezembro 10, 2021

São Bentos

Ao contrário de Rui Rio, António Costa irá ter oportunidade de constituir um grupo parlamentar com densidade técnico-política, muito graças aos ex-governantes que vão sair de cena e regressam ou passam a integrar a AR. Conhecer os dossiês é uma imensa mais valia para o trabalho parlamentar, em especial em comissão. 

Também ao contrário de Rio, Costa pode dar-se ao luxo de preservar no “backbench” alguns ”tokens” de diversidade opinativa, por muito que eles o irritem. É que se torna importante amansar os extremos heterodoxos do partido, sejam aqueles por quem a direita morre de amores, sejam os que são o ai-jesus dos antigos parceiros da Geringonça. A ambos, as televisões chamam-lhes um figo. Na guerra, chama-se a isto ”friendly fire”.

Para um próximo governo, Costa terá, contudo, um desafio difícil: que caras novas e independentes, com qualidade publicamente reconhecida e capacidade política para afrontarem a selva da política, estarão dispostas a entrar noutra aventura minoritária? E como compatibilizar esses egos emergentes, com notoriedade mas sem disciplina partidária, com a coesão de um executivo de combate em que a autoridade do primeiro-ministro possa exercer-se da forma plena, como já se percebeu que Costa não dispensa? 

Porém, enquanto o pau vai e vem folgam as costas e o exercício do poder, embora se vá desgastando, revela-se sempre um excelente cimento, dando, por algum tempo, pano para mangas e saias. E há muito que, em Portugal, não se via alguém a exercer esse mesmo poder com tanta maestria como o faz António Costa. Sob o olhar, algo lúdico, divertido, mas eu diria que também bastante admirativo, de Belém.

Lembram-se do PPD?

Percebe-se a opção de Rui Rio de construir um cómodo grupo parlamentar recheado de fiéis. Para quem viveu acossado por deslealdades, cair nessa tentação é compreensível. Mas convém lembrar que, historicamente, desde os tempos do PPD, a natureza (e a força?) do partido foi exatamente ser uma espécie de “salada de frutas”, muitas vezes federada por uma vitamina chamada cheiro de poder, odor que hoje, é verdade, não se sente muito na Rua de São Caetano à Lapa. O partido que Rui Rio está a construir, deixando deliberadamente na órbita uma bolha raivosa de viúvos de Passos Coelho, arrisca-se, assim, a ser uma coisa bem diferente. Isso pode acabar por ser boas notícias para quem, no espetro partidário, se situa à direita do PSD. Mas não sei se o será para a estabilidade a prazo do regime político.

Belo conselho


Na casa de banho de um restaurante: “Estimado cliente. Utilize esta casa de banho como se tivesse cometido um crime: não deixe vestígios”.

“Outro Tempo Bar”


Não sei quantos lugares sentados tem, mas não são muitos. Por isso, é prudente reservar (ontem, quase que me arrependi de o não ter feito). É um local magnífico para um tête-à-tête, mas a proximidade das mesas não assegura o segredo das confissões. Fica numa rua que ladeia o Jardim da Estrela. A decoração e o mobiliário não têm ”peneiras”, como antes se dizia. Apresenta uma lista simples, prática, com muitas opções, a preço acessível, vista à luz do que por aí agora se paga. Às mesas, servem dois cavalheiros com grande profissionalismo, simpatia e eficiência, portando um colete à maneira, mas num registo sempre despretensioso. Talvez porque pairem por ali reminiscências de outras eras, o local chama-se “Outro Tempo Bar”. A abrir, surge na mesa um clássico da casa: as bolas de croquetes de carne. Com o café, servem um sucedâneo do “After Eight”, a lembrar outra mesa não muito distante, onde também reina a carne, e os pecados (apenas de gula, claro) que dela derivam. Estacionar por ali não é fácil, desde já aviso. Tem um imenso defeito: está fechado ao domingo à noite. E uma bela qualidade: só encerra às duas.

quinta-feira, dezembro 09, 2021

O Maltez



Só tinha uma pessoa à minha frente, na fila para a compra de bilhetes da TAP, no edifício que então existia na esquina do Marquês para a Braamcamp, de que há pouco descobri esta deliciosa imagem.

Estávamos precisamente em 1976, que coincide ser o ano da fotografia. O cavalheiro que estava a ser atendido, e para quem eu, até então, mal tinha olhado, disse o nome para a senhora do balcão: “Américo Maltez Soares”.

Há campainhas de memória que soam, face a certos estímulos. Olhei de lado o homem. Era ele, o Maltez. O capitão Maltez. Ali estava a figura que, tantas vezes, de pingalim na mão, eu tinha visto a atiçar a polícia de choque, com um zelo sádico e odiento.

De cabelo curto, olhar penetrante, o Maltez era um mestre da repressão. Devo-lhe umas boas corridas pelas ruas, em diferentes contextos, em manifestações oposicionistas, nos tempos da ditadura que ele serviu com dedicação e empenho. 

Foi ele quem, pessoalmente, agrediu à bastonada Fernando Lopes Graça, num 1° de Maio no Rossio. Foi ele quem invadiu a Capela do Rato. Foi ele quem desencadeou a violenta repressão no funeral de Ribeiro Santos e em tantas e tantas outras ocasiões. O Maltez, homem do Exército destacado na PSP, era unha com carne com a Pide, como vim a saber quando, como militar, estive na Comissão de Extinção da dita.

Nos idos de 1969, no hall do ISCSPU (o “U” ainda existia nesse tempo…), tinha-o visto parlamentar com Adriano Moreira e Narana Coissoró, que tentavam evitar que as forças de choque, por ele chefiadas, colocadas em frente ao Palácio Burnay, levassem a cabo a missão de encerrar e selar as instalações da Associação Académica.

Alguns de nós, membros dos corpos gerentes da dita Associação, nessa cena que não terá durado mais de 10 minutos, íamos avançando dilatórios argumentos para atrasar a ocupação, por forma a dar tempo à operação de retirada do precioso equipamento de reprografia, que era transportado em braços que saíam pelo portão que dava para a Travessa do Conde da Ribeira. Tratava-se de material para edição de panfletos e coisas análogas, pelo que era importante evitar que o malta do Maltez lhe deitasse a mão. Não deitou!

E agora, na TAP, ali estava ele, parecia-me que um tanto debilitado fisicamente, com uma senhora jovem ao lado, no anonimato confortável da democracia que ele tanto se esforçara para que não acontecesse.

Pensei cá para mim: “Digo alguma coisa ao homem?” Apetecia-me. Eu estava sozinho, nem sequer podia altear uma conversa num tom que pudesse atazanar verbalmente quem tanto mal e pancada tinha espalhado por Lisboa.

Decidi arriscar. Sem o olhar, fingindo estar a pensar alto, disse, de forma a ser ouvido por ele: “Quem havia de dizer! O capitão Maltez por aqui!” E continuei a olhar para o lado. 

O Maltez virou-se, olhou-me com aquele olhar que milhares de democratas recordam, sem dizer uma palavra. Mirei-o então bem de frente, direto nos olhos, algo desafiante (mas nervoso, confesso, porque “old habits die hard”), sem dizer mais nada. Ele voltou-se de novo para o balcão, tratou das suas coisas e saiu, sem me olhar. A senhora da TAP nem se chegou a aperceber do (não) incidente. Mas, satisfazendo a minha curiosidade, disse-me que “aquele senhor ia a Londres, por razões médicas”.

Não sei quando é que o Maltez morreu. Em 2002, pelo que apanhei na net, viu a sua carreira “reconstituída” postumamente por um governo da democracia. Foi promovido a coronel e ressarcido financeiramente dos “injustos” incómodos e percalços que a sua estimável carreira possa ter sofrido pela inoportuna sublevação levada a cabo pelos seus camaradas de armas. 

O Maltez pode ser coronel à luz da lógica da Caixa Geral de Aposentações. Para a minha geração será sempre o odioso “capitão Maltez”. E faz parte daqueles capitães de quem só nos lembramos por más razões.

O que uma fotografia antiga nos pode trazer à memória!

quarta-feira, dezembro 08, 2021

‘A Arte da Guerra”


Tenho a impressão de que, desta vez, muitos dos meus amigos não vão gostar mesmo nada daquilo que digo na primeira das três partes do “A Arte da Guerra”, um programa que faço com António Freitas de Sousa, num “podcast” para o “Jornal Económico”.

Nesse ponto, trato das tensões entre o mundo ocidental e a Rússia, a propósito da situação na Ucrânia. Na intervenção, não digo nada que já não venha a dizer há muito tempo, mas julgo que ouvi-la agora pode ser mais “chocante” para alguns, no actual contexto. 

Querem um “cheirinho”? Aqui ficam duas frases. A primeira: “O facto de um país ter um regime cujos princípios se opõem aos nossos não significa que não tenha preocupações legítimas de segurança que temos de respeitar”. A segunda: “Alguns acham normal que a Ucrânia entre para a NATO e que a Rússia nada pode objetar a isso, mas o que aconteceria se o México, por exemplo, fizesse uma aliança militar com a Rússia ou a China? Washington deixava?” E por aí adiante.

Neste programa, também se fala das aproximações dos Emirados Árabes Unidos ao Irão, bem como da Cimeira das Democracias, organizada pelos EUA.

Pode ver o programa aqui.

terça-feira, dezembro 07, 2021

A imensa luz de Alvalade


Ó diabo! Ao ver projetados, nas traseiras do carro da frente, no meio da Lisboa que anoitecia, os médios do meu Smart, dei-me conta de que ele estava “com um olho à Belenenses”, como antes se dizia. Um farol estava apagado. Verdade seja que, para um carro com mais de dez anos, ter, pela primeira vez, uma lâmpada fundida, é obra! 

Faltava um quarto de hora para as seis. Amanhã, “dia da mãe” (nunca deixei de considerar o 8 de Dezembro como tal), ia estar tudo fechado (em primeira mão: fiquem a saber que o Procópio vai estar a aberto!). Como é que me ia desenrascar? 

De repente, lembrei-me de que, num portão esconso de Campo de Ourique (onde é que havia de ser?), existia uma modesta oficina*, especializada em arranjos elétricos em automóveis, propriedade de um cavalheiro já de uma certa idade (às tantas, é bem mais novo do que eu!), a quem, há anos, já tinha recorrido numa emergência, graças a uma dica de alguém. 

Cheguei lá às cinco para as seis. Apontei o carro para um pequeno corredor entre casas que leva à oficina. Nem vivalma! Saí do carro, entrei na caótica loja, já quase sem luz, e atirei, lá para dentro, um já desalentado “Boa tarde!”. Segundos depois, um cavalheiro de anorak vestido surgiu, ao fundo. 

Expliquei o meu problema. Ele reagiu: “Já estou de saída! Já me tinha mudado…” A máscara não me permitia esboçar um sorriso para tentar mobilizar a piedade do cavalheiro. Fui desvalorizando a magnitude da tarefa: “É apenas esta lampadazita da esquerda! A esta hora, se o meu amigo não me dá uma mão, vou ficar sem poder andar de noite…”

Lembrei-me então de que, em bons tempos (nisso, eram realmente “bons”), havia, perto da Casa da Moeda, uma tal Eletro-Rápida, aberta a desoras e nos fins de semana, onde, pagando um pouco mais, essas avarias se tratavam. Coisas dos anos 70, “à americana”. Recuei logo no meu pensamento: querer reeditar isso nos tempos de agora é coisa de liberal e liberal é tudo menos aquilo que eu sou. Mas lá que me fazia falta a “lampadazita”, lá isso fazia! 

O nosso homem, sem dizer palavra, tirou o Anorak e exibiu, por debaixo, uma casibeca verde, com um impante emblema do grande clube nacional da esperança, cujo lema - “Esforço, Dedicação, Devoção e Glória” - rima bem com a palavra Portugal que figura no fim do título da prestigiada e prestigiosa agremiação. 

Enquanto a lâmpada era mudada, com arte e chave de fendas, trocámos comentários sobre o preço da contratação do Rúben Amorim e fizemos prognósticos para o jogo daqui a pouco com o Ajax - enfim, conversa elevada, própria de adeptos de quem está no topo do futebol luso. 

Minutos depois, lá saí da loja com o meu Smart já sem o ”olho à Belenenses”, rompendo, impante, pela noite de Campo de Ourique. Lugar onde, fiquem a saber, há sempre tudo, de tudo e, sobretudo, há grandes e simpáticos sportinguistas prontos a ajudarem os seus correligionários. Malta da liderança!

(*A pedido de um comentador: “A Reparadora de Automóveis Ouricauto” Rua Azedo Gneco 5-A. Tel. 213854904)

segunda-feira, dezembro 06, 2021

Os Bragas


Na passada semana, fui dormir a um simpático hotel na Rua do Rosário, no Porto. A rua está irreconhecível, face àquilo que já foi. Para bem melhor. Há novas casas comerciais, prédios renovados que agora se revelam lindíssimos e, não fora a pandemia, nos quarteirões em volta teria crescido ainda mais a maré de restaurantes e galerias de arte que dão dinâmica e trazem juventude a tudo aquilo. 

No final dos anos 60, quando, por algum tempo, “fingi” estudar Engenharia, no Porto, comia com frequência numa tasca, nessa mesma rua do Rosário, a “Casa Domingos”, a que toda a gente chamava “o Domingos Braga”. 

Era barulhenta, tinha meia dúzia de pratos, travessas de alumínio e um tinto da Meda, servido numas canecas metálicas (“sai um quarto da Meda!”), de que não guardo grande memória, mesmo que, à época, não percebesse peva de vinhos. O mais caro da casa era um bife que custava 15 escudos - um luxo a que raramente me podia permitir, com o possível orçamento que me era enviado de Vila Real.

Quase em frente da tasca do Domingos Braga, havia uma outra, onde não me recordo de ter alguma vez entrado (nunca percebi porquê), conhecida pelo “Zé dos Bragas”. No letreiro, estava escrito “Zé de Braga”, mas pluralizávamos sempre o nome (também sem nunca perceber porquê).

Ao que se se dizia, o Domingos e o dono do Zé “dos Bragas”, eram primos, mas “não se podiam ver”, embora se olhassem do outro lado da rua. Ainda me recordo bem da figura de ambos. Para nós, eram simplesmente os “Bragas”. 

(Não muito longe dali, curiosamente, passada que seja a Torrinha, onde eu vivi, fica a Rua dos Bragas, onde então se situava a faculdade de Engenharia. Dizia-se desses alunos: “Anda nos Bragas”).

Leio agora que o “Zé de Braga”, há muito “upgraded” como restaurante, esteve fechado uns bons anos e que acaba de reabrir com algumas pretensões gastronómicas. Numa história que a sempre excelente revista “Evasões” (onde, por alguns anos, também escrevi sobre restaurantes) nos conta agora, afirma-se que a casa já tem afinal uma centena de anos e que teria como origem do nome um Zé, sapateiro oriundo de Braga, que também vendia vinhos. Dali viria a surgir uma tasca. Por isso, o proprietário, o tal primo do Domingos, um homem grande e abrutalhado, às tantas, nem sequer Zé se chamava…

Nada se diz no texto sobre o (meu) Domingos Braga. Esse tinha um ar típico e clássico de tasqueiro, baixo e encurvado das costas, sempre atrás de um balcão à esquerda de quem entrava na tasca. 

Esta casa ainda existe, agora com o nome de “Churrasqueira Domingos”. Um destes dias, vou almoçar por lá. Sem que nada tenha de especial contra o “Zé”, preferirei o Domingos, claro. Os velhos e fiéis clientes são assim mesmo, não é?



domingo, dezembro 05, 2021

Conhece o bispo de Norwich?


Foi num jantar em que estive no Douro, na sexta-feira passada. No final daquela que tinha sido uma magnífica refeição, apareceu uma imprescindível garrafa de vinho do Porto (era também excelente, da Quinta do Ventozelo, mas, cá por coisas, não digo de que ano era). 

O Porto circulou à volta da mesa, no sentido dos ponteiros do relógio, como manda a inabalável primeira regra. 

Quando a garrafa surgia pousada sobre a mesa, à direita de um dos convivas, este servia-se e voltava a colocá-la na mesa, mas desta vez à sua esquerda, para que a pessoa desse seu lado se pudesse servir. E assim sucessivamente. Essa era a natural segunda regra. 

A terceira regra é que, em nenhuma circunstância, a garrafa (mas podia ser um” decanter”) podia ser passada diretamente para a mão do parceiro de mesa: era apenas colocada sobre a mesa, onde o vizinho da esquerda a recolhia. À mesa, nunca se passa, de mão em mão, uma garrafa ou um “decanter” de Porto! 

É legítima, então, a pergunta: o que é que acontece se um conviva, ao ter o Porto colocado do seu lado direito, não se serve ou se esquece de o passar para o seu lado esquerdo, assim impedindo o vizinho desse lado de se servir? 

Nessa ocasião, manda uma quarta regra, esse vizinho nunca diz a frase: “Podia passar-me o Porto?” Nunca! Nessa ocorrência, esse conviva limita-se a inquirir, junto do seu parceiro sentado à direita: “Conhece o bispo de Norwich?”.

Se a resposta for negativa, como geralmente acontece, a pessoa que deseja ter acesso ao Porto limita-se a dizer: “Era um homem excelente. No entanto, ele também nunca passava a garrafa de Porto…” 

Chegada à necessidade de ter de recorrer a esta frase clássica, conhecida dos grandes apreciadores de vinho do Porto, quase pela certa que garrafa regressa ao seu circuito...

Mas, perguntará o leitor, que diabo é esta questão do bispo? Eu explico, transcrevendo um texto, retirado do site da Taylor’s, que, melhor do que eu relata isto bem.

“A origem da expressão "Conhece o Bispo de Norwich?” é atribuída a Henry Bathurst, que foi bispo de Norwich entre 1805 e 1837. O bispo Bathurst viveu até aos 93 anos de idade, altura em que a sua visão se deteriorou e em que tinha desenvolvido uma tendência para adormecer à mesa no final da refeição. Como resultado, muitas vezes ele não conseguia passar as várias garrafas de vinho do Porto que se acumulavam no seu cotovelo direito, para consternação dos que estavam sentados à volta da mesa. Este bispo era um bon vivant conhecido por possuir uma capacidade prodigiosa no consumo de vinho mas, às vezes, era também suspeito de usar essas fragilidades a seu favor.

Algumas personalidades afirmam que a expressão "Conhece o Bispo de Norwich?" teve a sua origem com John Sheepshanks, que foi bispo de Norwich entre 1893 e 1910, e que apesar do Bishop Bathurst ser a fonte mais plausível da tradição parece que o bispo Sheepshanks fez o seu melhor para a perpetuar. Um retrato do bispo Sheepshanks, gentilmente doado pela sua neta, está pendurado numa parede da Quinta de Vargellas da Taylor’s como um incentivo para os hóspedes passarem o vinho do Porto.”

Há uns anos, um grupo de portuenses dedicados ao vinho do Porto decidiu entrar em contacto com o atual bispo de Norwich, convidando-o a vir ao Porto. O homem, conhecedor da muito antiga tradição ligada ao seu nome, ficou encantado, aceitou o convite e lá participou numas jantaradas bem regadas. Ah! E trouxe a mulher, porque os bispos anglicanos sabem apreciar as coisas boas da vida. Como o vinho do Porto, por exemplo…

Sampaio


Há uns anos, José Pedro Castanheira escreveu uma pormenorizada biografia de Jorge Sampaio. O próprio contribuiu para esse trabalho, ciente da importância de ajudar a deixar desenhado, “for the record”, como o rigor que lhe era próprio, o seu percurso cívico, desde os tempos da ditadura até àquele em que os portugueses, por uma década, lhe confiaram a chefia do Estado. 

Nunca há apenas uma versão da História. Há leituras diferentes dos factos, dependentes dos ângulos em que cada um se situa perante eles, o mais das vezes à luz dos seus interesses, convicções e circunstâncias. Por essa razão, no relato das coisas, na escolha do que se diz e do como se diz, nas avaliações que se escolhe fazer, subsistirá sempre uma inevitável subjetividade. 

Ninguém escapa a esse relativo arbítrio de perspetivas - desde os atores principais até às figuras secundárias dessa grande peça que é a vida coletiva. A questão essencial é saber se, em todo esse esforço de “dizer” a História, prevalece ou não uma atitude e um esforço de seriedade. Jorge Sampaio passou sempre, com um grau muito raro de elevada distinção, nesse teste de aproximação a uma verdade a qual, repito, por definição, nunca tem apenas um único dono.

Quem tem curiosidade pela História sabe da importância que para ela têm os testemunhos. Um grupo de amigos de Jorge Sampaio, muito pouco tempo depois do seu desaparecimento físico, decidiu pedir a pessoas que privaram com ele relatos de factos e vivências que ajudassem a melhor completar o seu retrato. 

“Era uma vez Jorge Sampaio”, agora editado pela “Tinta da China”, é um conjunto de cerca de 130 curtos textos, assinados por pessoas que, para essas 400 páginas, ilustradas por muitas fotografias, carreiam modos diferentes de nos ajudar a melhor recortar a figura de Sampaio. 

Em todos esses testemunhos há uma inescapável dimensão afetiva. Quem escreveu os textos quis prestar tributo a alguém por quem tinha admiração, olhando-o do lugar pessoal onde estava. O conjunto, se bem que desigual, acaba assim por ser muito interessante, a ajuizar da leitura de mais de metade do livro que já empreendi, em algumas horas. 

Nos últimos anos, recordo-me de ter comentado, por mais de uma vez, com amigos, que, tal como eu, eram admiradores da figura de Jorge Sampaio, que o reconhecimento que parecia ser-lhe dado pelos seus compatriotas, ficava, aparentemente, aquém daquilo que realmente lhe seria devido. Subsistia como que uma “injustiça” na avaliação do empenhamento e do muito elevado sentido de Estado de alguém que, podendo ter cometido erros ou omissões, teve um percurso de exigência consigo mesmo, num tempo muito complexo de decisões, que pedia meças a quem quer que fosse, na vida política nacional.

Curiosamente, no momento da sua morte, o país “retificou”, com espontânea sinceridade, essa suposta e pelos vistos apenas ilusória indiferença. O modo sincero como os portugueses mostraram sentir o desaparecimento de Jorge Sampaio trouxe um sopro de esperança de que, no meio desta espécie de anomia cívica que parece marcar o nosso quotidiano, ainda haja espaço para mostrar respeito por algumas escassas referências morais. E Jorge Sampaio é, sem a menor sombra de dúvidas, uma das mais importantes. Este livro, que recomendo, é também um tributo a essa esperança.

sábado, dezembro 04, 2021

Que sorte?!


Há momentos em que nos sentimos fortemente injustiçados. Há pouco, ao dizer a um amigo, que me telefonou, que ia a conduzir o meu carro, por estradas estreitas e sinuosas, numa viagem para uma jornada de reflexão, de dois dias, numa zona remota, ouvi, do outro lado da linha, o comentário: “Tu tens cá uma sorte!”. Que sorte? Atravessa um cidadão o país, voluntariando-se para uma atividade pro bono, dando o melhor (e o pior, também é verdade) de si para ajudar a pensar as coisas e o mundo e é logo acusado de ter “sorte”? Olhem só o caráter agreste e rústico da paisagem com que tenho que me confrontar nestas difíceis horas para, com equanimidade (gosto destes vocábulos de fim de semana), poderem ajuizar sobre se tenho ou não razão. É claro que tenho! Fico antecipadamente grato pela vossa solidariedade!

sexta-feira, dezembro 03, 2021

Nas cheias…



… a água chegava aqui É quase em frente do Zé da Calçada, que tem um belo tornedó do lombo, que ontem acompanhei com um “Meio Queijo”, um bom tinto comum da Churchill (com a “receita” habitual das duas Tourigas pátrias e da Tinta Roriz) que descobri há tempos, situado na parte mais económica da bela lista de vinhos da casa. Infelizmente, nesta altura do ano, não se pode pousar na incomparável varanda, sem o risco de apanhar uma gripe das antigas. É que estavam 3 graus! Vá lá, positivos! (Pôr a lareira do restaurante a funcionar era capaz de não ser uma má ideia). É mesmo ao lado da Lailai, a confeitaria onde se vendem as sete maravilhas locais, que aliás são cinco: as lérias, os papos d'anjo, os foguetes, as brisas do Tâmega e os São Gonçalos. E, por falar no santo, a reforma da igreja do dito, dizem-me, está quase pronta. Já não era sem tempo! A decoração natalícia da ponte antiga ficou só assim-assim. À entrada na 31 de Janeiro, vindo do largo António Cândido, pareceu-me ver o Amadeo à conversa com o Pascoaes. Mas foi ilusão de ótica de um “Pobre Tolo”. Ah! E ainda não foi desta que fui à nova Casa das Lérias (e recordar a outra bela varanda). Com este chiasco, percebo melhor por que é que a bela russa da ilha de Sacalina que, uma noite, há uns anos, me atestou o depósito e a memória, na bomba de gasolina à saída para Padronelo (onde há um pão que só se compara com as regueifas de Paredes), gostava tanto de viver ali. Quem não gosta? Só não percebo é por que é que tudo aquilo ainda não é Património Mundial!

quinta-feira, dezembro 02, 2021

“A Arte da Guerra”


As expetativas em torno do novo governo alemão, atenta a divisão de pastas entre os três parceiros de coligação “semáforo”, são o primeiro tema de “A Arte da Guerra”, o podcast semanal do “Jornal Económico”, numa conversa minha com o jornalista António Freitas de Sousa.

Nesta edição, também falamos das tensões no Magrebe, potenciadas pelo conflito diplomático entre Marrocos e a Argélia, bem como do momento menos bom do relacionamento entre o Reino Unido e a França, espoletado pela crise migratória mas muito decorrente ainda dos efeitos do Brexit.

Pode ver aqui.

quarta-feira, dezembro 01, 2021

Zemmour, a CNN Portugal e eu


Há sete anos, nas redes sociais em Portugal, bem como na imprensa em geral, creio que muito pouca gente - se alguma - falava de Éric Zemmour.

Em outubro de 2014, escrevi neste meu blogue um post sobre Zemmour, onde assinalava o meu fascínio analítico por essa figura hiper-reacionária - disse então que ele era visto em França como um “facho”, com o “o” fechado à francesa - que animava, de forma altamente polémica, o mundo mediático daquele país. 

Nesse post, escrevi, nomeadamente, isto:

“ Gosto de "malditos", confesso. Quando vivia por França, não perdia um "On n'est pas couché" onde Eric Zemmour, com um género físico de "fraca figura" comparável a Aznavour, seduzia pela sua inteligência "facho", politicamente muito incorreta, com uma vivacidade e uma cultura excecionais. Depois do seu forçado e estúpido afastamento do programa da France 2, segui-o para o Zemmour/Naulleau e lia as suas crónicas no Figaro Dimanche. E vou tentando acompanhar os livros que publica.

Zemmour é um jornalista e escritor desencantado com o manifesto declínio do seu país. Com pena fácil e verbo ácido, esconde por detrás do sorriso (é especialmente perigoso quando começa a mover a cabeça com ar de assentimento) uma atitude de aguda agressividade face àquilo que entende que está a descaraterizar a França contemporânea - as culturas estrangeiras, as políticas migratórias, as atitudes de permissividade multicultural que entende por perversas por parte da esquerda, mas também de alguma direita. Tem coragem para ser impopular, o que é sempre raro. Na polarização política francesa, é visto como um mero "compagnon de route" de Marine Le Pen. O que é muito injusto para ele e, a contrario, elogioso para a líder da extrema direita. Dele saiu agora o livro "Le suicide français". Não tenciono perder.”

Vim a ler esse seu livro, como já tinha lido os anteriores, bem como o que acaba de ser publicado. 

Zemmour anunciou ontem ser candidato à eleições presidenciais francesas, procurando deslocar para si o voto em Marine Le Pen, tida como inevitavelmente derrotada por antecipação, numa eventual segunda volta contra Emmanuel Macron, bem como o apoio de uma direita clássica que está a ter uma forte dificuldade em definir um nome consensual, com hipóteses (que sempre acharia muito remotas) de poder vir a evitar a reeleição deste.

A oficialização da candidatura de Éric Zemmour foi o tema da minha curta “estreia” ontem, por Skype, como comentador regular, no mais novo canal televisivo português.

terça-feira, novembro 30, 2021

Hélder Macedo


Hélder Macedo faz hoje 86 anos. Já nos não vemos há algum tempo. A nossa última longa e divertida conversa, ocorreu há três anos, durante uma viagem entre Lisboa e Vila Real, quando ele ali foi receber o Prémio Dom Dinis, da Fundação da Casa de Mateus. Ali iria ter também a agradável surpresa de ser condecorado pelo presidente da República.

Num desses dias, andámos pelo Douro a ver paisagens, a apreciar vinhos e a testar mesas. A Susete não pôde, infelizmente, estar connosco. Depois, o inferno triste que tem sido esta pandemia tem-nos impedido de nos vermos em Londres. Temos falado ao telefone, trocámos mensagens e emails, mas todos sabemos que não é a mesma coisa.

Neste dia de aniversário daquela que tenho a convicção de ser a mais relevante figura viva da cultura portuguesa, com uma longa e multifacetada obra, deixo aqui um abraço de grande amizade, mas também de muito sincera admiração, pessoal e intelectual, a alguém que muito prezo e de cujo trabalho - como docente, conferencista, crítico, criador literário e figura cívica - o nosso país tem obrigação de ter um grande orgulho.

Parabéns, caro Hélder!

segunda-feira, novembro 29, 2021

Tempos de Guterres

 

O livro “O Mundo não tem de ser assim”, a biografia de António Guterres escrita por Pedro Latoeiro e Filipe Domingues, editada pela Casa das Letras, serviu de pretexto a uma agradável conversa, ao final da tarde do passado sábado, na Livraria Ler, em Campo de Ourique.

Vale a pena revelar que, há já uns anos, numa data que não posso precisar, o meu colega embaixador João Lima Pimentel e eu próprio tivémos um longo jantar com aqueles que viriam a ser os autores do livro e que, à época, esboçavam ainda essa obra. O Filipe Domingues, que eu já conhecia, tinha-me contactado e eu apresentei-os nessa noite ao João Lima Pimentel. O repasto e a sua sequência acabou, recordo-me, quase às quatro da manhã…

Lima Pimentel é um amigo antigo de António Guterres e foi o seu primeiro assessor diplomático. Eu apenas conheci Guterres pessoalmente em 1994, tendo trabalhado com ele durante mais de cinco anos, a partir do ano seguinte. 

Naquela anterior conversa, ambos havíamos dito aos putativos biógrafos o que cada um de nós entendia poder ser dito, para os ajudar a gizar o “retrato” do atual e já então Secretário-Geral da ONU. João Lima Pimentel voltou, depois disso, a falar com os autores, devidamente autorizado por Guterres. Eu, que aliás não tinha muito mais a dizer, remeti-os, sobre o assunto, para algumas coisas que, ao longo dos anos, escrevi no meu blogue sobre o tempo de governo e outras ocasiões.

O livro, que já aqui recomendei, é um excelente repositório de dados e episódios que nos permitem conhecer melhor António Guterres, até ao dia em que ele chegou ao mais alto posto na ONU. No sábado passado, os autores quiseram ir ainda um pouco mais longe na conversa, desta vez com testemunhas, em torno de alguns episódios da vida de Guterres. 

Falou-se então um pouco de tudo, desde o seu trabalho para desalojar o “cavaquismo” até aos tempos de governo, muito em especial o seu percurso europeu. Mas também do seu catolicismo, da entrada para o PS, das suas relações com outras linhas políticas do Portugal democrático saído de Abril. Eu relatei um episódio de que fui testemunha presencial na Sedes, em inícios de 1973, envolvendo Francisco Sá Carneiro, António Guterres e… Marcelo Rebelo de Sousa.

E também se falou da ONU, das dificuldades e limites imperativos de atuação de um Secretário-Geral. E falou-se do “caso austríaco” como a primeira grande confrontação com a extrema-direita europeia, da resistência de Guterres aos convites para aceitar ser presidente da Comissão Europeia e de várias outras histórias mais. 

Tenho a imodéstia de pensar que as pessoas que tiveram a amabilidade de assistir ao “interrogatório” que Pedro Latoeiro e Filipe Domingues nos fizeram não deram o seu tempo por mal empregado.

Contudo, histórias há, desses tempos, que não podem ser contadas, algumas das quais talvez ajudassem a explicar coisas da nossa vida política que ficaram pouco claras. Mas há limites para a transparência: quem, como o João Lima Pimentel e eu próprio, assistiu a certos episódios apenas porque a nossa presença e intervenção, como colaboradores próximos, pressupunha total confiança na nossa discrição, passa a ter um dever permanente de lealdade perante quem nos concedeu esse privilégio. Nenhum de nós ultrapassará nunca essa barreira. 

(Ilustro este texto com uma fotografia no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, em janeiro de 2000)

domingo, novembro 28, 2021

Paranóia


Há a Covid e a paranóia da Covid.

(Há minutos, no meu quarto de um hotel)

sábado, novembro 27, 2021

Viva o SNS!


Foi há mais de duas décadas. Senti-me bastante mal, uma noite, durante uma peça, num teatro de Lisboa. Saímos a meio do espetáculo, para a urgência do Hospital de S. Francisco Xavier. Esperei na fila (eu que abomino filas!), alguns minutos. Não demorou muito a triagem. Fora o irritante “senhor Francisco”, com o qual nunca me reconciliarei, tudo se foi passando burocraticamente bem. Como a avaliação feita me não dava como doente prioritário, esperei mais de uma hora. 

A certa altura, mandaram-me entrar para uma sala, onde havia vários doentes. Por alguns minutos, fui espetador involuntário de alguém a morrer quase ao meu lado, rodeado de médicos e enfermeiros. Vi que faziam o impossível para o salvar, mas o impossível, às vezes, não é mesmo possível. A cena, confesso, não ajudou muito ao meu estado de espírito e à taquicardia que trazia. 

Chegou, finalmente, a minha vez. O “senhor Francisco” foi então atendido com frieza profissional, com o rigor necessário, embora sem uma simpatia por aí além. O veredito, após alguns exames mandados fazer, o que levou quase uma hora mais, e a administração de uma terapêutica imediata, foi simples: “O ”senhor Francisco” sofre apenas uma dose imensa de stress. Vai ter de descansar, em repouso absoluto, um mínimo de 48 horas, nunca menos, com esta medicação forte, que o vai pôr a dormir bastante”. 

Respondi: “Não vai ser possível. Tenho de partir amanhã, à hora do almoço, num voo para o estrangeiro. Preciso assim de conselhos e de uma medicação que se adequem a isso”. O médico ficou irritado: “Mas o que é que o “senhor Francisco” faz assim de tão importante na vida que não lhe permita descansar, como lhe estou a recomendar?” A minha resposta desconcertou-o: “Não sei se a minha tarefa é importante ou não. Sou secretário de Estado dos Assuntos Europeus, está a decorrer a nossa presidência da União Europeia e tenho uma tarde de debate no Parlamento Europeu, depois de amanhã. Ninguém pode fazer isso por mim! Só isso!”. 

O homem ficou siderado: “Ah! Mas é do governo? Ninguém nos avisou. E o senhor não disse nada!”. “Claro que não disse! Para que é que ia dizer? Fui tratado com eficiência e profissionalismo, por si e por toda a gente, desde a minha chegada ao hospital. Por que diabo tinha de dizer o que faço na vida?”, retorqui-lhe. Sorriu então, pela primeira vez, talvez estranhando o que para mim era muito óbvio. E as recomendações lá se adaptaram ao então apressado estilo de vida do ”senhor Francisco” (tenho ideia de que passei a ser tratado “senhor doutor”…) Imagino que esses conselhos devam ter sido os mais corretos: vinte e um anos depois ainda estou aqui a contar esta história de eficiência básica do SNS de então.

Teve muita sorte, dirão muitos. As coisas raramente se passam assim. Talvez. Eu falo por mim e por essa ocasião. Sem “cunhas”, sem furar filas (que odeio, repito!), sem revelar as funções oficiais que ocupava. Como sempre - repito, sempre - fiz em todo o lado, em toda a minha vida. Não sou da laia dos ”sabe com quem é que está a falar?” Mas quem achar que tem dados provar o contrário, faça favor: as linhas seguintes são suas.

Gastronomia

O que é a Academia Portuguesa de Gastronomia? É uma associação privada, com estatuto de "utilidade pública", composta por um núcle...