No Reino Unido, é vulgar os partidos da oposição obterem bons resultados nas eleições que, por qualquer razão, ocorrem, por vacatura ocasional, numa ou outra circunscrição. Essas “by-elections” podem mesmo trazer fortes surpresas.
Mas o que se passou em North Shropshire (as eleições britânicas têm sempre lugar às quintas-feiras, para quem não tenha ainda notado) criou uma pouco comum onda de choque no Partido Conservador, dirigido por Boris Johnson. É que a candidata vencedora, pertencente ao Partido Liberal-Democrata, conseguiu deslocar 34,1% do eleitorado que antes aí votava nos conservadores, um “swing” que será o terceiro pior resultado da história dos “tories”. Desde há 200 anos que os conservadores não perdiam essa circunscrição!
Sendo verdade que “uma andorinha não faz a primavera”, a dimensão do desastre parece estar a ser olhada com muita atenção no partido derrotado. E há quem lembre que, no passado, foram este tipo de eleições parciais que aceleraram o declínio de vários primeiros-ministros, às vezes pela concentração do voto dos eleitores no candidato oposicionista melhor colocado para derrotar o do governo.
É verdade que esta humilhação não ocorreu às mãos do Partido Trabalhista, o único que, numa futura eleição geral para a Câmara dos Comuns, pode aspirar a substituir os conservadores. E, por essas bandas, há muitas dúvidas de que a liderança que sucedeu ao claramente inelegível James Corbyn, hoje protagonizada por Keir Starmer, embora de perfil mais abrangente, seja suficientemente eficaz para se sugerir como alternativa ao eleitorado. Porém, algumas sondagens já o favorecem e, em especial, o nível de rejeição a Johnson cresce a cada dia.
Os liberal-democratas, que ganharam esta eleição, são e serão um eterno terceiro partido que, nas últimas décadas, só têm conseguido obter fatias de poder quando os conservadores deles necessitam para construir maiorias. O sistema político britânico favorece claramente a bipolarização, naquilo que é visto como um modelo que preza a busca da governabilidade, em detrimento da preocupação pela legitimação representativa.
Uma caraterística curiosa do sistema britânico é o facto do poder, nos partidos, assentar nos seus deputados eleitos para a Câmara dos Comuns e não na sua máquina regional ou de coordenação nacional. É nos deputados que reside a força que permite alterar as lideranças, mesmo a meio do percurso de uma legislatura. O caso mais notório foi o de Margareth Thatcher, em 1990. Aquela que ainda hoje é reverada como a figura mais marcante do conservadorismo, depois de Churchill, foi vítima de um “golpe de mão”, que a afastou em favor de um cinzento John Major, por ser vista já como uma “liability” para a credibilidade eleitoral do seu partido. E foram precisamente os deputados que ela tinha ajudado a eleger e a solidificar no governo que a enviaram, sem cerimónias, para casa. A crueldade, na política britânica e não só, é o nome do jogo.
Mas convém lembrar que é necessário que 55 deputados se associem para que um processo de destituição de um líder e primeiro-ministro conservador se possa iniciar. E, depois, que mais de metade dessa representação parlamentar alinhe atrás de um nome alternativo. Um processo complicado.
Boris Johnson, que tinha ajudado a sapar, com alguma falta de lisura, a liderança pouco brilhante de Theresa May, revelou ser capaz, em 2019, de galvanizar as hostes conservadoras e ganhar, por um raro “landslide”, uma forte maioria nos Comuns.
Verdade seja que foi nisso bastante ajudado pelo descrédito político do líder trabalhista James Corbyn, envolvido em acusações de anti-semitismo, que muito o fragilizaram. Corbyn como que emulou, em termos ideológicos, Michael Foot, um outro líder radical que, nos anos 80, tinha apresentado ao país um programa político trabalhista que ficou conhecido, com humor britânico, como “the longest suicide note in History”. Foot acabou por condenar o “Labour” a uma longa travessia do deserto, que só acabou com Tony Blair, na verdade talvez o líder mais conservador que os trabalhistas alguma vez conseguiram produzir…
Desde a sua eleição, Boris Johnson tem mantido, e talvez agravado, um comportamento errático e extravagante, quer no estilo quer na substância. Arrogante na gestão negocial do Brexit, está a dar do Reino Unido uma imagem, que não era habitual, de um país incumpridor dos seus compromissos internacionais, não obstante essa atitude lhe poder render alguns dividendos nacionalistas e protecionistas, para consumo interno. O recuo escandaloso face a compromissos assumidos com os 27 e com Bruxelas, na questão comercial que envolve a Irlanda do Norte, leva alguns a dizer, ironicamente, que “nem o IRA fez tanto pela união das Irlandas”…
Depois de um período de “namoro” com Trump, embora sem grandes consequências práticas, Johnson conseguiu adaptar-se bem à liderança de Joe Biden (que dele tinha dito coisas bem pouco simpáticas) e, no plano internacional, apanhou uma prestigiante “boleia” na questão do acordo estratégico Aukus, que junta o Reino Unido, a Austrália e os EUA, num claro sinal de confronto com a China. O eventual sucesso da economia britânica no pós-Brexit vai depender bastante da boa vontade americana, mas já se percebeu que, em termos comerciais, a “special relationship” não parece ultrapassar generalidades e boas-vontades declaratórias.
Como dizia ontem o “The Economist”, o partido conservador, no tocante aos seus líderes, costuma “tolerar incompetência e impopularidade, mas só uma de cada vez”… E Johnson parece estar a “acumular” cada vez mais. O sentimento de desagrado face ao seu modo de governar começa a dominar as hostes conservadoras, As “trapalhadas” das festas feitas sob confinamento, as obras feitas em Downing Street e pagas pelo partido, a sua extrema relutância em se separar de um consultor, Dominic Cummings, um homem brilhante mas “sulfuroso”, sem baias no seu comportamento incívico em tempos de pandemia - e tantas e tantas outras pequenas crises, tudo tem afetado a imagem de Johnson. Nos últimos dias, surgiu mesmo uma forte ala libertária de deputados conservadores que está a colocar em causa a legitimidade e necessidade das medidas de proteção anti-pandemia, em que o primeiro-ministro se tinha empenhado. Contestam o designado "plano B", que determina a introdução de passes sanitários para entrada em discotecas e grandes eventos, a obrigatoriedade de vacinas para profissionais de saúde e o uso de máscaras em espaços públicos fechados.
É aliás o grau de sucesso na luta contra a pandemia, bem como a eficácia das medidas para ajudar a economia neste novo recuo na abertura da vida social, que vai servir de teste, a curto prazo, para Boris Johnson. Por ora, ele ainda pode dizer, como Mark Twain, que “as notícias sobre a sua morte são exageradas”. No final do primeiro trimestre de 2022, ver-se-á melhor se os conservadores se inclinam para escolher uma nova cara. Uma coisa é certa: dificilmente será alguém mais despenteado...