quinta-feira, dezembro 16, 2021

Contra a parede


Os últimos dias não tinham sido fáceis. Uma semana de hospitalização no Pitié-Salpêtrière, para uma operação à coluna, a poucos dias do Natal de 2011, não me tinha deixado no melhor dos espíritos. O meu saudoso amigo António Silva bem me tentava animar, com um toque de humor negro: "Dá-te por feliz! Tiveste mais sorte que a Diana ..." Ela havia sido atendida naquele hospital, após o acidente.  Que raio de lembrança!

Na manhã da saída do hospital, faz hoje precisamente 10 anos, uma sexta-feira, eu estava a atravessar Paris deitado numa ambulância, de regresso à residência, quando recebi a notícia de que setores da comunidade portuguesa se preparavam para promover, nessa tarde, uma invasão de protesto das instalações do serviço de coordenação do ensino de Português em França, dependente da embaixada. Haveria, ao que se dizia, "ranchos" de crianças à frente dos manifestantes, pelo que era impensável determinar qualquer prévio resguardo policial do espaço.

Com os cortes financeiros impostos, nessa época, pela "troika", quase três mil crianças tinham ficado sem aulas, depois do "abate" de dezenas de professores. Porém, em face das instruções imperativas recebidas de Lisboa, a embaixada nada podia fazer, senão dar cumprimento à ordem. Um embaixador é "a man for all seasons".

De uma ala política do ministério, de Portugal, recebi, na ambulância, pelo telefone, a pergunta, um tanto angustiada: o que é que eu tencionava fazer? Não deixava de ter alguma graça: estava deitado numa maca, com o corpo a doer-me nas curvas e nos obstáculos das ruas parisienses, e logo me cabia a mim encontrar uma solução que evitasse o expectável espetáculo televisivo da justa revolta da comunidade, com a qual, obviamente, eu não podia dar mostras públicas da menor solidariedade, porque isso significaria a correspondente deslealdade face ao poder que, com legitimidade democrática, chefiava o serviço público que eu ali representava. Tão simples quanto isso, por muitos que alguns o possam não entender.

Terá sido então algum providencial abanão da ambulância que me despertou uma solução prática para o problema imediato: dei ordens para encerrar os serviços da coordenação do ensino de Português, iniciando os seus funcionários mais cedo o fim de semana... Era o ovo de Colombo! Com as instalações encerradas, ninguém se iria atrever a invadi-las.

À chegada à embaixada, onde desembarquei de maca, tinha uma surpresa. Um grupo de jornalistas esperava-me. Porque era importante desdramatizar a crise, decidi ter uma conversa com eles. Contudo, não podia convidá-los para uma reunião à volta de uma mesa... porque, por alguns dias, eu estava impedido fisicamente de me sentar. Assim, durante vários minutos, falei de pé, encostado a uma parede, para me aguentar, com a voz frágil de quem saía de uma hospitalização de mais de uma semana. 

Nessa noite, um amigo, telefonando-me de Portugal, desconhecedor do meu estado de saúde, perguntou: "Pareceu-me que estavas muito pálido, hoje, na televisão. O assunto não era para menos! Estavas contra a parede!". Nem ele sabia como estava certo, mas que a razão da minha palidez era outra.

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Dê-lhe o arroz!

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