terça-feira, dezembro 14, 2021

Estrelados


Não são só os ovos que são estrelados, são-no também os restaurantes, através das classificações de qualidade dadas pelo Guia Michelin, uma publicação iniciada em França em 1900, sob a responsabilidade do fabricante de pneus com o mesmo nome. Uma, duas ou três estrelas distinguem esses estabelecimentos, com um efeito muito evidente na sua popularidade e apelo comercial. 

Portugal teve, pela primeira vez, em 1929, o seu nome inscrito nos Guias Michelin, através do Hotel de Santa Luzia, em Viana do Castelo, e do Hotel Mesquita, em Vila Nova de Famalicão, que então obtiveram uma estrela, que sustentaram por vários anos. 

No dia de ontem, foi feito mais um anúncio anual dos restaurantes selecionados em Portugal (e em Espanha, porquanto o nosso país surge num quadro peninsular). Atualmente, a lista portuguesa passou a ascender a 28 restaurantes, sete dos quais com duas estrelas. O Guia Michelin não considerou, até hoje, nenhum restaurante português digno da classificação de três estrelas. 

O tipo de gastronomia comum à esmagadora maioria dos restaurantes estrelados assenta em experiências gustativas de elevado requinte, feitas com produtos de muita qualidade e marcadas por combinações de sabores que se pretendem criativas e originais. A apresentação dos pratos é objeto de uma arte quase pictórica e os restaurantes que os oferecem (“oferecer” é uma força de expressão, porque os preços deste tipo de restauração são, quase sempre, muito elevados) são, sem exceção, titulados por chefes de cozinha (comummente designados por “chefs”, à francesa) que respondem por um currículo profissional que os torna objeto de transferências regulares entre restaurantes. A estes, para ascenderem e se manterem no patamar das estrelas, é invariavelmente exigida uma muito boa qualidade de serviço e uma carta de vinhos com uma diversidade a condizer.

Há quem ironize - muitas vezes por desconhecimento, outras por mera má língua - com as escassas quantidades dos produtos apresentados em cada prato, esquecendo que uma refeição, neste tipo de restaurantes, se compõe, em regra, por bastantes mais pratos do que a simples trilogia - entrada, prato, sobremesa - típica de uma refeição de cozinha tradicional. E que é a soma desses “momentos”, às vezes sublimes e surpreendentes, na sua originalidade gustativa, que torna algumas dessas refeições únicas e até inolvidáveis.

Uma coisa é certa: quem pretenda “enfardar” pratadas “das antigas” deve afastar-se dos restaurantes “estrelados” recomendados pela Michelin, embora, numa solução de meio termo, eu recomende que esteja atento à utilíssima lista de alguns outros restaurantes que o Guia também traz, muito em especial os que têm por indicação “Bib Gourmand”, escolhidos por uma muito boa qualidade/preço. Fora estes, no entanto, a minha razoável experiência mostra-me que a lista de outras casas destacadas pelos guias nem sempre é fiável, imagino que por frequente preguiça de reverificação e alguma desatenção ao surgimento de novidades. 

Gostava de deixar claro que fico muito satisfeito com o facto de, pouco a pouco, o nosso país ter vindo a aumentar o número de restaurantes a que foram atribuídas estrelas, consagrando o trabalho muito dedicado de grandes profissionais que muito honram a gastronomia em Portugal - embora valha a pena sublinhar que isso não é sempre sinónimo de “gastronomia portuguesa”, não obstante o esforço de muitos desses cozinheiros (onde há muito poucas mulheres) no sentido de evitarem seguir um mero “template” internacional. Por isso, valorizo bastante quem, nesta produção de “fine dining”, não se cansa em destacar a originalidade dos produtos portugueses (e não apenas os produtos do mar, como regularmente acontece) e deixar disso uma marca distintiva em cada prato.

Como diretor da Academia Portuguesa de Gastronomia, que sou desde há alguns anos, habituei-me a respeitar muito este tipo de gastronomia e a procurar valorizá-la no plano internacional. A imagem de Portugal como destino turístico só ganhará com o aumento de restaurantes consagrados na lista ”estrelada” do Michelin. E tudo deveremos fazer, a todos os níveis, nomeadamente oficiais, para tentar expandir entre nós essa consagração.

A título pessoal, contudo, devo dizer que, conhecendo e apreciando bastante alguns dos restaurantes portugueses a que a Michelin já atribuiu “estrelas”, não sou um cliente regular deste tipo de gastronomia, nem sequer sinto a tentação de tentar conhecer todas as casas que a promovem. 

Isso acontece não apenas porque tal me é incomportável financeiramente mas pelo facto, que confesso sem o menor problema, do meu nível de exigência em matéria gastronómica ficar bem confortado com muitos outros bons endereços de restauração que não têm a menor ambição de algum dia virem a obter a consagração do Guia Michelin. Com isto quero afirmar, para que não restem equívocos, que há uma muito boa gastronomia em Portugal para além daquela que os restaurantes com estrelas Michelin nos apresentam.

1 comentário:

Flor disse...

Muito bom e didático este seu post.
Eu não tenho por hábito ir comer fora. Gosto muito de cozinhar. Aprendi as bases com a minha mãe e ainda hoje já com pouca paciência sempre vou experimentando temperos novos.
Eu admiro muito quando na TV vejo os chefs a empratar com auxílio de uma pinça as iguarias que preparou e ao mesmo tempo explicar quais os ingredientes que está a utilizar e que está com muito gosto a apresentar aos clientes. São autênticas obras de arte. Aquela florinha que faltava e que será como a "cereja no topo do bolo". - Agora, colocar no meio do prato enorme uma rodela de batata cozida, por cima uma colher de sobremesa com puré de grão, uma lasca pequena de bacalhau cozido e por cima uma rodela de ovo cozido com uma rodela de cebola confitada. Ah! Esquecia-me do alho picado e duas folhinhas de salsa, para dar cor. O nome da degustação: Grão com bacalhau. :( Não!!!!

Dê-lhe o arroz!

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