quarta-feira, dezembro 15, 2021

“Unidos por uma gaveta”


Foi ontem. O auditório da Fundação Calouste Gulbenkian abarrotava. Ninguém estava ali para cumprir calendário. Sentia-se que cada um quis, com a sua presença, dar um último testemunho do apreço que tinha pela figura de Jorge Sampaio, agora que passam três meses sobre o seu desaparecimento.

Tratou-se da ocasião da apresentação do livro “Era Uma Vez Jorge Sampaio”, com textos escritos sobre ele, da autoria de 130 amigos e admiradores. Trata- se de uma bela peça, com o conhecido traço de qualidade editorial da “Tinta da China”, recheado de fotografias.

Gostava de destacar, pelo seu significado, o belo improviso que Marcelo Rebelo de Sousa fez na sessão, num registo que combinou bem a dimensão institucional com o sentimento de uma nota pessoal de amigo.

Para esse livro, escrevi um texto , intitulado “Unidos por uma gaveta”, que recupera duas histórias que já aqui tinha publicado. Para quem estiver interessado em lê-lo, ele aqui fica:

“Não fui um amigo antigo de Jorge Sampaio. Só o conheci, com toda a família, em Londres, em 1993, num jantar em casa de Ana Gomes, com António Franco também por lá. Disse-me: “Há muitos anos que ouço falar de si, a amigos comuns, mas, curiosamente, nunca nos tínhamos encontrado”.

Era verdade. Tendo ambos andado pelos corredores daquilo que viria a ser o MES, nos idos de 1974, ele como sua figura referencial e eu com uma militância muito vaga, nunca tínhamos chegado à conversa.

No ano seguinte, tendo eu já regressado a Lisboa, António Franco disse-me que Jorge Sampaio queria falar comigo. Fui a sua casa, uma noite. Informou-me ter decidido vir a apresentar uma candidatura à Presidência da República, embora isso só viesse a ser concretizado meses depois.

Pediu-me que o ajudasse a estruturar um grupo para conversas sobre questões internacionais, a reunir até às eleições. Lembro-me de algo que então me disse: "Há uma coisa muito importante: não quero nenhum papel do MNE! Quero apenas trocar ideias com quem pensa estas coisas".

Dei-lhe, dias depois, uma sugestão de lista de pessoas para o grupo a criar: Carlos Gaspar, José Filipe Moraes Cabral, José Freitas Ferraz, Luís Filipe Castro Mendes e eu próprio. Jorge Sampaio formularia o convite a cada um.

Tempos mais tarde, combinámos uma primeira reunião do grupo, em minha casa. Ao final da manhã do dia acordado, quando saía do meu andar, encontrei a empregada dos vizinhos que moravam em frente. “Esteve aí o senhor presidente, à sua procura, logo de manhã!”, disse-me. O “presidente”? O presidente da República era Mário Soares e não era plausível que viesse procurar-me a casa. “O presidente da Câmara, o Dr. Jorge Sampaio”, esclareceu ela.

Fez-se-me luz! Tinha combinado com Sampaio que ele viesse a minha casa às “nove e meia”. Só que não disse “da noite”, no pressuposto de que ele estaria ciente de que as manhãs de sábados eram sagradas para o meu sono. Sampaio terá entendido que era “da manhã” e, britânico nos costumes, lá tinha estado a essa hora, pontualmente. Eu nem tinha ouvido o toque da campainha. Telefonei-lhe, de imediato, rimo-nos do equívoco e, pelas “vinte e uma e trinta” desse mesmo dia, ali regressou ele, de novo.

Não tenho presente quantas dessas reuniões tiveram lugar, mas guardo delas muito boa memória.

Com a minha ida para o governo, meses antes da sua eleição e posse, deixei de assegurar a presença regular nesses debates. Porém, Sampaio não esqueceu a minha anterior colaboração e teve a amabilidade de me integrar no jantar que veio a oferecer em Cascais a esse seu "team" de política externa.

Pediram-me para ser eu a fazer o agradecimento final, em nome do grupo. Disse-lhe da imensa alegria que era vê-lo eleito. No final dessa curta intervenção, fiz um pedido a Jorge Sampaio. Tinha a ver com os móveis do Palácio de Belém. Imaginava que devessem ser uma imensidão, mas havia uma coisa que eu lhe solicitava que fizesse: que abrisse todas as gavetas.

Sampaio e os presentes, que incluíam as nossas mulheres, olharam para mim com algum espanto. Lá esclareci o mistério. É que, depois de Mário Soares abandonar o Palácio, numa daquelas gavetas, deveria estar algo que ali nos unia. Não fora Soares quem afirmara que “tinha metido o socialismo na gaveta"?

Mas eu estava enganado: Soares não tinha deixado para trás o conteúdo da gaveta. E se havia pessoa que dispensava essa herança, porque o socialismo era a matriz indissociável da sua forma de olhar e intervir no mundo, essa pessoa era Jorge Sampaio.”

1 comentário:

Flor disse...

Parabéns! Gostei muito como sempre:)

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...