quarta-feira, fevereiro 10, 2021
Um poder solitário
Há dias, ao ver o ministro russo Sergei Lavrov assumir uma atitude de arrogância para com o chefe da “diplomacia europeia”, Josep Borrell, travei, num segundo, a vontade de rir que a cena me deu. Era a União Europeia que ali estava a ser humilhada - e isso não deve regozijar quem se sente solidário com esse projeto. Naquele instante, contudo, tive uma melhor perceção do drama que, nos dias de hoje, atravessa o poder europeu, na sua expressão internacional.
Não vale a pena entrar muito pelo detalhe do óbvio, que já foi dito e redito: a União Europeia é um gigante económico e um anão político. Já foi mais gigante e já foi mais anão. Sob o impulso de alguns Estados membros e desajudado por outros, a União tentou, nas últimas décadas, afirmar-se no cenário internacional das potências. Quer o Brexit quer os anos Trump funcionaram, contudo, a contra-ciclo desse objetivo, a que o Tratado de Lisboa tinha procurado dar algum músculo internacional.
Onde está hoje a Europa, como poder, pelo mundo?
Com a Rússia, depois de, há anos, ter alinhado na aventura ucraniana da administração Obama, soprada pelo ódio anti-Moscovo que prevalece no Leste da sua geografia, a União tem a relação que ficou patente na cena Lavrov-Borrell. Há quem deseje um divórcio total com Moscovo, há quem veja a Rússia como parceiro incontornável mas, por ora, algo incontrolável.
Com os EUA, ignorada no primeiro discurso sobre política externa de Joe Biden, Bruxelas pode estar já a pagar o preço de um apressado “acordo de princípio” de investimento com a China, o qual, sendo uma afirmação legítima da sua “autonomia estratégica”, arrisca consequências nefastas no relacionamento transatlântico. Se o pendor multilateralista da nova administração americana abre um mundo de esperanças, há muito quem, na Europa, não esteja disponível a comprar a boa vontade americana a custo de uma subalternização e tutela política.
Com a China, a Europa não se decidiu ainda sobre o que fazer: como compatibilizar o aproveitamento das fantásticas oportunidades económicas sem perder o ensejo de se mostrar firme perante as posturas autocráticas, e estrategicamente desafiadoras, de Beijing.
E poderíamos continuar, por aí adiante. A verdade é que a União Europeia dos novos tempos é um compósito com contradições internas longe de superadas, espelha interesses frequentemente contraditórios e, o que é mais preocupante, não parece a caminho de afirmar uma unidade de propósitos estratégicos. Ora isso é que carateriza uma potência.
terça-feira, fevereiro 09, 2021
A mulher coragem
É uma mulher com algumas vidas, com muitos livros, com imensos amigos, com uma coragem acima do mundo. À minha amiga Leonor Xavier, a existência tem pregado partidas, sustos e, às vezes, jogado com ela às escondidas. A Leonor, com aquela voz rouca e doce que, à primeira vista, poderia transportar um discurso naïf, é alguém que descobriu que as dificuldades se agarram de caras, que os problemas se resolvem combatendo em terreno aberto. É uma cabeça arejada, positiva, que olha as pessoas de frente, guiada por uma ética à prova de bala, com valores que caldeou ao longo dos anos. Quando saímos do seu convívio, das conversas sempre interessantes que com ela temos, fica-nos uma admiração imensa pela sua força e determinação. Posso dizer uma coisa muito sincera, sem correr o risco de se julgar que estou a fazer um ’número’?: saio sempre melhor do que me sentia, depois de falar com a Leonor, nem que seja apenas pelo telefone. Mas, claro, tenho saudades dos almoços lentos no Ribatejo, das ocasiões em que ela sabe juntar a gente certa, para horas divertidas, coisa que a pandemia interrompeu. Lembrarei para sempre aquele seu aniversário louco, com baile, na Barraca! E a poesia na igreja do Rato. E o debate sobre o Brasil no El Corte Ingles. E as histórias com Sérgio Godinho e Nélida Piñon no CCB. E também me fazem falta as noites na Dois, no Procópio, com a Leonor a dar a deixa para as gargalhadas da Alice. Em outros tempos, também com o Raul por lá, depois os tempos passaram a ser com alegres saudades dele. A Leonor faz sempre da vida uma festa - e, para nossa sorte, convida-nos para ela!
A Leonor publicou agora, renovada, uma carta que acho que devia ser lida por muita gente. Quando há tanto défice de esperança, há por aí gente, como a Leonor, que tem um admirável superávite de coragem. Como podem ler aqui.
Os estaleiros
Desde que, em criança, passei a ir de férias, todos os anos, para a terra do meu pai, Viana do Castelo, os “estaleiros” faziam parte do meu cenário da cidade. Rara era a pessoa conhecida que não tinha familiares que ali trabalhavam. Quando se atravessava o campo da Senhora da Agonia, para as tardes na Praia Norte, vinham dos estaleiros barulhos metálicos imponentes, com sirenes que soavam estranhas ao miúdo que eu então era. Os estaleiros eram parte integrante da personalidade da cidade, como a ponte Eiffel ou Santa Luzia. Para mim, que vinha de uma Vila Real quase sem indústria, aquilo e a vizinha doca comercial eram um luxo que dava a Viana um ar de grande urbe.
Veio o 25 de abril e surgiram muitas notícias dos estaleiros, falava-se de navios vendidos à Rússia. Depois, com o correr do tempo, os jornais trouxeram relatos sobre os altos e baixos daquela fábrica de barcos. Há uma década, viu-se Viana na rua, mobilizada pela polémica que envolveu a privatização dos estaleiros, um assunto que se transformou num caso nacional. Agora, de quando em vez, os estaleiros ainda voltam à baila.
Há pouco tempo, vi que a Câmara Municipal de Viana publicou um livro intitulado “O Estaleiro da saudade - gerações, cultura e desfecho”. Como expectável, é uma memória nostálgica assente no outro tempo dos estaleiros. É uma peça editorial bonita e bem documentada, que acolhe memórias e imagens, para mim inéditas, de outros tempos da empresa, com notas humanas das alegrias e tristezas de quem nela trabalhou. Curiosamente, o livro não se fecha apenas no passado, soube abrir a porta àquilo que aquela empresa hoje é, embora não escondendo nunca para que lado o seu coração pende.
Li, com gosto, “O Estaleiro da saudade”. Aprendi bastante sobre uma realidade que, embora sempre ali estivesse, por décadas, à frente dos nossos olhos, arrastava, por detrás das suas paredes, muitas vidas e muitas emoções.
segunda-feira, fevereiro 08, 2021
Cassandra
Há por aí pessoas tão catastrofistas e com alma de Cassandra que passam a imagem de que estariam dispostas a sacrificar alguns anos da sua vida só para terem o “prazer” de poderem testemunhar, dando assim razão a si mesmas, na lógica do “eu bem dizia!”, o “fim do mundo” que, dia após dia, insistem em prever.
Conselho para reuniões
À volta de uma mesa de reuniões, é sempre bom lembrar a máxima de Pierre Desproges: "Il vaut mieux se taire et risquer de passer pour un con, plutôt que l'ouvrir et ne laisser aucun doute à ce sujet."
Confiança
O cúmulo da confiança é um amigo, tão sportinguista como eu, que ontem, depois do empate do Porto, comentava, em tom já sério: “Alguém tem de começar a mexer-se para se garantir autorização para podermos comemorar no Marquês. Se os comunistas fizeram a Festa do Avante...”
domingo, fevereiro 07, 2021
António Barreto
António Barreto, um homem inteligente e culto, desenhou, ao longo dos últimos anos, uma laboriosa e sofisticada narrativa sobre o país. A necessidade de ter de a republicar todas as semanas, renovando-a semanticamente, tem-se revelado uma tarefa pesada e nem sempre com sucesso.
“Observare”
No programa desta semana, sob a coordenação de Filipe Caetano, Carlos Gaspar, Luis Tomé e eu analisamos a ratificação (e não a retificação, como, por lapso, surge no título do vídeo) pelos EUA da extensão, por cinco anos, de acordo nuclear com a Rússia, bem com a situação política após a ação dos militares no Myanmar.
No meu caso, referi a censura à internet na Índia e um apelo, num artigo de Merkel, Macron, Guterres e outros subscritores publicado na imprensa internacional, para um esforço multilateral assente na luta comum contra a pandemia.
Pode ver aqui.
Sergey Lavrov
Nas Nações Unidas, em Nova Iorque, existe uma sala imensa, conhecida por Indonesian Lounge. É um espaço aberto, com cadeirões e cadeiras, a toda a volta. Serve para encontros breves, entre políticos ou diplomatas: consultas, apresentação de uma candidatura, transmissão de uma mensagem. Passei por lá horas, em “rapidinhas” diplomáticas de toda a natureza. O mesmo aconteceu, com toda a certeza, com quem me antecedeu e sucedeu.
Quando cheguei a Nova Iorque, em março de 2001, vai agora fazer 20 anos, e como é costumeiro, fui cumprimentar colegas embaixadores (além da imensa “máquina” onusina). Em regra, para um país como Portugal, visitam-se os representantes da União Europeia, os de língua portuguesa, os dos países membros permanentes do Conselho de Segurança, um número importante de latino-americanos, asiáticos e africanos com relações fortes connosco e uma dúzia de “key players”. Mas eu decidi mudar um pouco o registo: fui visitar os representantes de todos os países. Todos? Todos. Os então 190! Posso estar enganado, mas acho que nunca ninguém fez isso! Nem imaginam a trabalheira que aquilo me deu! Mas, um dia, explicarei por que assim procedi.
Um dos primeiros embaixadores que quis visitar, logo que cheguei a Nova Iorque, foi o russo, Sergey Lavrov, desde há 17 anos ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país.
Com os EUA, a Rússia é a “chave” das Nações Unidas. Claro que há a China e, naturalmente, o Reino Unido e a França - os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, os chamados P5, no fundo, o diretório que manda na “casa” e sem o acordo dos quais nada se faz.
Em particular à época, Moscovo e Washington determinavam fortemente o dia a dia da organização. Os EUA viviam então as primeiras semanas da administração George W. Bush e, após a saída do embaixador de Bill Clinton, Richard Hallbrook, tinham apenas um encarregado de negócios (substituto do embaixador). Ora Portugal, com a Rússia e os EUA, compunha então a “troika” de acompanhamento do “processo de paz” em Angola.
Lavrov foi muito simpático. Respondendo pessoalmente ao pedido de audiência que tinha sido feito por secretárias, telefonou-me a convidar para jantar em sua casa, na semana seguinte, com amigos. Mas também percebeu que não era bem isso que eu pretendia. “Estás livre, amanhã à tarde, ás 15 horas, para falarmos, no Indonesian Lounge, Francisco”. Claro que sim. Estranhei um pouco o “Francisco” e não terei retorquido “Claro, Sergey!”
E lá falamos, no dia a seguir, no tal espaço, os 20 minutos da praxe, comigo a deixar-lhe todas as mensagens políticas que queria. Sergey Lavrov foi extremamente simpático, como o seria durante todo o tempo em que coincidimos em Nova Iorque. Ele já tinha já tido um relacionamento exemplar com o meu antecessor, António Monteiro. Era um “vieux routier” e um excelente diplomata. Ficámos amigos.
A certa altura, com um sorriso aberto, foi pedagógico para o “newcomer” que eu era. E disse: “Posso dar-te um conselho, de quem já anda aqui há muito tempo?” (Lavrov chegou sete anos antes de mim e acabaria o seu posto dois anos depois de eu sair).
Apontou então para uma esquina que existe, na entrada do Indonesian Lounge, que é um espaço aberto, que não tem propriamente uma porta de entrada: “Cuidado com aquela esquina!”
Fiquei perplexo! Que diabo de especial tinha aquela esquina? Ele explicou: “Nos próximos tempos, vais regressar a esta sala centenas de vezes. Tens de contornar aquela esquina o dobro dessas vezes, na vinda e na ida. De repente, à entrada ou à saída, depararás com um colega nosso - somos quase 200! -, de um qualquer país, africano ou asiático. Vais ter apenas dois ou três segundos para te recordares se ele é o representante do Niger ou da Nigéria. Se lhe disseres “bonjour” e for o da Nigéria, ele nunca mais te perdoará. Se for o do Niger e lhe disseres “good morning”, esquece para sempre o apoio do país dele em qualquer eleição futura! Basta lembrares-te de como te sentirias se te confundissem com o embaixador de Espanha!” Como ele tinha razão! Além disso, Lavrov cuidava em saber os nomes de cada um de nós. Sempre sem falhas.
Ontem, ao vê-lo dar um “baile” de diplomacia agressiva, e até arrogante, ao Alto-Representante da União Europeia, Josep Borrell, “reencontrei” o excelente (e feroz) diplomata russo que é Sergey Lavrov.
sábado, fevereiro 06, 2021
Centrices
A ideia de que António Lobo Xavier seria capaz de utilizar o seu estatuto profissional no BPI para influenciar a política de crédito do banco (e este vergar-se ao “golpe”) em desfavor do único partido da sua vida é uma das maiores imbecilidades da temporada.
Livros
Em algumas incursões que (quando posso ou podia) faço por livrarias, penso sempre (mas esqueço logo) esta ideia: mas, afinal, lá por casa, não há ainda uma imensidão de livros para (por) ler? E reajo logo a tão desconfortável ideia.
CDS
A sobrevivência do CDS, com um património democrático que soube resistir ao revanchismo bombista mais reacionário, bem como a várias e contraditórias manobras de apropriação cesarista, com derivas pelo liberalismo paroquial, seria um bom sinal para o sistema político. Acreditem!
Ainda a vacina
Ter ou não ter vacina a tempo pode ser uma questão de vida ou de morte. Mas é precisamente nas questões essenciais, mesmo nas de vida ou de morte, que se mede o estofo ético das pessoas. Quem não espera pelo momento que lhe compete na vacinação é, além de um cobarde, um canalha.
O raio do vírus
No início, ouvíamos de falar de casos de desconhecidos. Depois, de nomes mais sonantes. Seguiram-se conhecidos, alguns amigos. Vieram, em seguida, os mortos próximos. “Está ventilado!”. Ou o alívio: ”Saiu dos cuidados intensivos!”. Se não morrermos da pandemia, morremos de susto.
Sem adjetivos
Pacheco Pereira explica no “Público”, com meridiana clareza, que a democracia não se “adjetiva”. Vulgarizou-se o uso laudatório da “democracia liberal”, zurzindo, em contraponto, o conceito de “democracia iliberal”. Ou há democracia ou não há democracia!
Contrição
Quando o Sporting foi buscar ao Braga, por um preço brutal, o treinador Rúben Amorim, pareceu-me um exagero.
Agora, vendo o trabalho feito (nada está ganho, claro!) e, em particular, a sua atitude serena (nunca lhe ouvi a voz, porque não vejo nem um segundo de “futebol falado”), dou a mão à palmatória.
O “ministro”
É uma vergonha para a União Europeia colocar-se na posição do seu “ministro dos Negócios Estrangeiros” ter de ouvir isto. E calar-se.
Não se vai a Moscovo mandar ”bitaites” (embora cheios de razão) sobre política interna russa sem ter capacidade de reagir com ações concretas.
Fados e pandemias
Ver na televisão programas filmados em casas de fados, com pessoas encostadas umas às outras, faz pensar: vai ser possível repetir aquilo no futuro, ali como nas caves de jazz e em outros locais com muita gente e pouco espaço? Vai haver alguma vacina contra o medo?
Biden
Vale a pena refletir na razão pela qual Joe Biden, no seu muito pensado primeiro discurso sobre política externa, não teve uma única palavra para a União Europeia - embora falasse do Reino Unido, da França e da Alemanha. E, ao dizer isto, não estou a criticar a União Europeia.
Nós e os outros
Não é agradável, para Portugal, surgir aos olhos dos outros em estado de necessidade, nesta pandemia. Mas é muito agradável assistir a mostras concretas de solidariedade, sem politiquices. Devemos tomar muito boa nota disso.
sexta-feira, fevereiro 05, 2021
Expliquem lá!
Este blogue tem uma média diária regular de leitores que segue, quase sempre, acima dos 1500. Até aqui, tudo bem: é um número muito lisonjeiro. Mas agora expliquem-me lá, se souberem, por que diabo, de ontem para hoje, passou largamente os cinco mil leitores! É que eu não escrevi nada que pudesse dar origem a este “alvoroço”! Ele há cada mistério!
CDS
Com a quantidade de pessoas que, nos últimos dias, se têm demitido da direção do CDS, aquilo devia ser uma montanha de gente! (Que me perdoem a graça os amigos que tenho naquela estimável agremiação).
Os maluquinhos do “não é por acaso que...”
Não há nada de mais descredibilizante para um boato do que ouvir um amigo dizer: “Nem eu, que acredito em todas as teorias da conspiração, caio nessa!”
quinta-feira, fevereiro 04, 2021
Coitados!
Há, por aí, um “jornal” zangado com a vida. Clica-se qualquer coisa, da alinhada opinião às notícias comentadas, e é um “vale de lágrimas”: tudo está mal, há um “finis patriae” ao virar da esquina. Diz-se que têm uma edição otimista, mas é longe para se ir comprar: parece que é em Massamá.
As palavras, o seu sentido e as vacinas
Perguntaram-me, de um jornal, se achava que António Costa devia suscitar na Europa, dada a sua qualidade de primeiro-ministro do país que tem a presidência, a possibilidade de virem a ser adquiridas as vacinas russa e chinesa. Achei a ideia muito bizarra. Tentei explicar que, depois da decisão política do Conselho Europeu de colocar em comum as aquisições, foi à Comissão Europeia, instituição executiva da União, que competiu negociar as vacinas e até financiar a investigação pelos laboratórios. Qualquer nova iniciativa no domínio do alargamento das compras seria assim da sua responsabilidade. Mas um Estado membro poderia suscitar isso? Por decisão “política”? António Costa, por exemplo, como “presidente” europeu? Sublinhei que António Costa chefiava o país que detinha a presidência europeia, mas que ele não era o presidente do Conselho Europeu. Achei estranha a insistência neste possível “papel” de Costa. Falei das dúvidas que, por muito tempo, tinham rodeado a fiabilidade da vacinas russa e chinesa, que parecia que se estavam a esbater. E que, de facto, parecia haver agora mais gente a pensar comprá-las. Mas a Comissão Europeia saberia, melhor do que ninguém, se isso era compatível com os compromissos que tinha com os outros laboratórios. Mas Costa poderia ter essa iniciativa? insistiu o meu interlocutor. Claro que, se assim entendesse, Costa teria ”autoridade” para isso. Para não ter contrariar, em absoluto, um raciocínio que ia por um caminho um pouco absurdo, lá disse que, naturalmente, se a questão eventualmente se colocasse à mesa do Conselho, se uma qualquer outra vacina (eu disse “da Rússia, da China ou até de Marte...”) pudesse resolver os problema da Europa, seria “criminoso” não aproveitar essa oportunidade, por mera questão “política”. Pronto e a coisa saiu assim! Nunca mais aprendo!
quarta-feira, fevereiro 03, 2021
Bastonários
Sou de um tempo, não muito longínquo, em que, como regra geral, quando se ouvia um bastonário de uma determinada ordem profissional, havia a quase certeza de estarmos perante uma pessoa equilibrada e sensata, um “espelho” do melhor da imagem da profissão. A regra passou a exceção.
Unidade
Um governo de ”unidade nacional”, além de democraticamente pouco saudável, poderia ter um efeito político muito negativo: polarizaria nos partidos de protesto, à esquerda e à direita, o descontentamento e mal-estar social que o agravamento da crise económica inevitavelmente irá criar no país nos próximos meses.
Amigos da onça
De um benfiquista amigo, para este sportinguista: “Parabéns! Chegar ao fim da primeira metade do campeonato nesta posição é obra! É como chegar ao topo da serra da Estrela. A seguir, é sempre a descer...”
Não percebi bem o que ele quis dizer com aquilo...
Francisco Ramos
A saída de Francisco Ramos da coordenação da “task force” das vacinas, por virtude de outro assunto, não nos deve fazer esquecer que ele é, em Portugal, uma das mais sérias e competentes personalidades na área da administração da saúde, com uma vida dedicada ao serviço público
Ajuda
No início da pandemia, a Itália recebeu muita ajuda internacional.
Será que os piadéticos transalpinos - políticos e jornalistas - também por lá se entretinham a fazer graçolas nas redes sociais sobre a origem nacional dessa ajuda, apenas para chicana política interna contra o seu governo?
Mortos e mortos
Uma comparação que está na moda fazer é entre o número de mortos da pandemia e as vítimas da guerra colonial.
Note-se, porém, que as estatísticas sobre essas baixas são sempre “eurocêntricas”, referem-se ao “lado” português, não contando os guerrilheiros adversários mortos.
SEF
A acreditar no resumo das declarações dos agentes do SEF, sobre a morte do cidadão ucraniano, fica a dúvida sobre se, afinal, esses polícias não terão sido vítimas inocentes de uma feroz agressão, em que o verdadeiro culpado do incidente, no final, se mata a si próprio, com o único objetivo de deixar gente pacífica em maus lençóis e com a sua reputação beliscada. É que há quem tenha visto porcos a voar.
À flor da pele
Vivemos um tempo de tensões à flor da pele. O país responsável está visivelmente assustado com a pandemia, as pessoas vêem a sua vida subvertida, num horizonte que não conseguem limitar, e, não vale a pena esconder, paira uma erosão na confiança num poder público que, fazendo seguramente o melhor que sabe e pode, oferece um saldo efetivo de realidade pouco palpável. Morreu já muita gente, muita mais do que, há poucos meses, muito pensavam ser possível.
Politicamente, sente-se que as pessoas estão hoje acantonadas em trincheiras. As redes sociais, esses novos megafones da democracia, são disso um exemplo claro.
Os adeptos do governo, confortados pelas sondagens, entendem que seria impossível fazer-se melhor, que há razões externas e comportamentos sociais internos que ajudam a explicar o que se está a passar. Louvam as autoridades, a dedicação dos governantes, denunciam a falta de solidariedade subjacente às atitudes críticas, num momento coletivo desta gravidade, olham a comunicação social como abutres que exploram insegurança das pessoas, contribuindo para o desânimo coletivo.
Os críticos da governação apontam o lugar objetivo de Portugal no “ranking” triste da tragédia, sublinham as contradições e os vai-e-vem, denunciam a falta de rigor na questão das vacinas e dos seus fura-filas. E notam o caos em muitos hospitais, o que não foi feito e teria sido prometido. E porque o unanimismo, na sua perspetiva, nada resolve, acham que é democraticamente legítimo, e releva da transparência exigível, expor o que está mal e chamar à responsabilidade quem tem obrigação de responder pelo estado das coisas.
Até ver, a bissetriz possível, na terra de ninguém entre estas duas frentes, parece chamar-se Marcelo Rebelo de Sousa. Podemos imaginar que hoje, mais do que nunca, se sinta tentado a ser um verdadeiro provedor dos portugueses. Provavelmente, também ele se exaspera com as insuficiências evitáveis em alguns setores, mas igualmente se irrita com quem cavalga os percalços oficiais para alimentar a chicana política. Conhecendo, como bem deve conhecer, os erros cometidos, mas também as deficiências que pouco dependem das vontades, tendo ele próprio pisado o pé em ramo verde por palavras a mais, é dele que o país parece esperar alguma neutralidade, na abordagem, com a serenidade e equanimidade possíveis, do modo como a pandemia está a ser gerida. E o país parece entender que o seu papel tem sido positivo. Pelos vistos, seis em cada dez portugueses também terão achado isso.
terça-feira, fevereiro 02, 2021
Saudades do fumo
Tenho saudades de ir ao Brazen Head, em Dublin, quando o pub vivia cheio de fumo de tabaco. Como foi criado em 1198, alimentei a ideia de que, com um pouco de sorte, o dom Afonso Henriques quase podia ter passado por lá, numa aventura de turismo céltico. No Café Club, em Vila Real, que eu atravessava, fugidio e preguiçoso, para evitar dar a volta ao quarteirão, havia uma núvem de tabaco que quase escondia os cajados dos feirantes. Já para não falar da sala de dominó do Excelsior ou do Imperial do Lima, na noite de 24 de dezembro, também lá por Vila Real. Ou da sala de jogo por detrás dos bilhares no Montecarlo, ao Saldanha, em Lisboa, ou da cave com balcão do Montarroio, na Sampaio Bruno, no Porto, cidade onde a zona do strip da Candeia também pedia meças. Ou da zona do balcão do recém inaugurado Viana Mar, ou do Bar Oceano, lá por Viana do Castelo. Não guardei nenhuma imagem do Ronnie Scott’s, onde se ouvia bom jazz ou outro assim-assim, em Londres, sem estarmos todos a bufar uns para cima dos outros, com uma onda de fumo a encher o espaço. Havia também uma cave, em Luanda, abaixo do Trópico, cheia de “garinas” (connosco, os da embaixada, a portarmo-nos sempre bem, para que conste) com um ar quase tão espesso e irrespirável como o das noites da boîte do Méridien de Brazaville, onde histórias passadas (com outros, claro) não são para contar aqui. Já tive saudades (nos últimos anos, já não tinha, confesso) do branco fumarento do Procópio, nos tempos do Juvenal, quando a ASAE não nos poupava os pulmões, épocas em que ainda era “facilitado” tabaco ao balcão, em noites de carência extrema do Nuno Brederode. Para sempre, guardo na memória olfativa o cheiro do Blue Note, em Nova Iorque, onde o tabaco era “moderado” por alguma “green grass tea”. Curiosamente, o mesmo cheiro que havia no De Karpershoek, em Amsterdam e num restaurante abaixo de qualquer classificação, em Oslo, no final dos anos 70, local cujo nome esqueci (às vezes também tenho esse direito, caramba!), em que se passeava entre as mesas um tipo a tocar viola que, mal nos via, entoava o “¿ Ai Portugal por qué te quiero tanto?”
Tenho saudades de todos aqueles fumos. Sei lá bem porquê! E, já agora, esclareço: eu não fumo nem nunca fumei!
Uma dúzia deles!
O avião chegou atrasado a Paris, nesse final de tarde do dia 2 de fevereiro de 2009. Os serviços do protocolo francês têm como regra receber na “sala VIP” os novos embaixadores. Naquele dia, no “Salão 500” de Orly, que eu bem conhecia das várias vezes que por ali tinha passado, em outras encarnações, até com a presença da simpática funcionária asiática que conduzia o carro dos aviões até lá, estava à minha espera o pessoal diplomático e técnico da embaixada e do consulado-geral, com quem eu iria trabalhar nos anos seguintes. Alguns conhecia, outros não. De todos fiquei amigo, diga-se.
Paris ia ser o meu último posto diplomático. Era interessante fazer parte de uma carreira na qual, no dia em que nela se entrava, se sabia a data exata de saída (hoje em dia, alguma coisa mudou nisso). Dali a quatro anos, quase dia por dia, sabia que regressaria a Lisboa.
Senti então pena, recordo-me, de que o meu pai, que tanto gostava da França e de Paris, já não pudesse ir lá visitar-me. Mas ele já se tinha ido “embora”, menos de dois anos antes.
Seguimos para a residência. Havia um jantar à nossa espera. Achei sempre muito curiosa a primeira refeição à chegada a uma nova embaixada: servem-nos o que entendem, o que há por lá resta, com o vinho simpaticamente deixado pelo antecessor. Só no dia seguinte é que vamos “às compras” e se começa a “orientar a casa”, como eu ouvia em criança.
Numa sala junto ao quarto, vi que havia um computador. Imaginei que houvesse. Ainda antes da meia-noite, abri-o, vi o meu correio e fiz aquilo que tinha pensado no avião: criei um blogue. Já tinha experiência disso e um blogue faz-se num minuto.
Em Brasília, de onde eu saíra algum tempo antes, tinha inventado um blogue “oficioso”. Era, creio, a primeira vez que uma embaixada fazia isso. Foi um sucesso: chegou a ter uma média de nove mil leitores diários. Escrevi-o, sozinho, durante dois anos. Depois, passei-o ao conselheiro de imprensa, que o continuou.
Em Paris, decidi que ia assinar um novo blogue com o meu nome. Seria um modelo diferente. Os textos iriam ser personalizados. Quanto ao estilo, logo se veria. Tinha intenção de falar das coisas da vida. Iria também contar algumas histórias da carreira, poucas. Enganei-me, afinal foram muitas, algumas centenas. Pensava ir escrever a um ritmo irregular, talvez de dois em dois dias. Por isso, subtitulei o blogue de “notas pouco diárias”. Enganei-me, também: iria escrever todos os dias. Todos? Todos. 4380 dias! Quase 8700 peças, quase dois posts por dia!
Dei ao blogue o nome uma parte do título de um filme de Jean-Luc Godard, que tinha muito a ver com Paris: “Deux ou trois choses que je sais d’elle”. Há tempos, o meu amigo Zé Ferreira Fernandes, mestre da escrita e “parisiense” a sério, lembrou-me cenas da fita, que eu já esquecera. E ali percebi melhor a razão subliminar da minha escolha.
Este blogue chega hoje, assim, à “dúzia” de anos. Se acharem graça, continuem a ler. Se se cansarem, não sejam piedosos. Amigos, amigos, blogues à parte!
segunda-feira, fevereiro 01, 2021
1 de fevereiro de 1908 - Uma vítima prematura da República
”Entre os mistérios que atravessam os tempos conta-se o destino, por vezes trágico, de figuras que marcaram indelevelmente a sua época mas que a História, por acidentes inesperados, optou por não acolher no seu seio com a dignidade merecida. Augusto Maria de Saa está entre essas personalidades, para quem o destino foi cruel e a memória dos homens sumamente ingrata.
Augusto Maria de Saa teve a existência que hoje cada vez melhor conhecemos, nesse fresco renascentista que foi a sua vida de eleição. Da literatura à pintura, da filologia à música, da medicina à arte das viagens, da antropologia à ciência náutica, da agricultura científica à enologia, da astrologia às ciências ocultas, da física à matemática, por quase tudo passou o nosso Augusto, em todas essas áreas deixou a marca da sua inteligência e perspicácia. E tudo isto, imagine o leitor, para vir a morrer, de forma inglória, sobre a pedra fria da rua do Arsenal, na tarde fatídica de 1 de Fevereiro de 1908.
Este nosso relato, amigo leitor, poder-lhe-á parecer errático e incoerente, mas, depois de abordarmos, no texto anterior, as origens do nosso Augusto, talvez valha a pena, antes de detalharmos a sua existência, saber um pouco mais sobre as condições dramáticas da sua desaparição do mundo dos vivos. “Só a essência serena da morte é digna da graça efémera de uma vida”, diria, premonitório, esse grande clássico do nosso Augusto que foi Crabtree (*)
O apelo da família fizera Augusto regressar do Brasil a Portugal em finais de 1907, para ver, pela última vez, pelo Natal, a sua querida irmã Ephygenia, a esvair-se da vida, numa tísica sem remissão, no palacete à Junqueira, construído com os ouros do seu trabalho no Brasil. Tinha 54 anos, o nosso Augusto, e eles começavam a pesar-lhe, confessava. Nesse primeiro dia de Fevereiro, destroçado pelo espectáculo da crescente tragédia doméstica, Augusto toma uma caleche e decide apanhar o ar fresco do Terreiro do Paço, beber uma aguardente no Marinho da Arcada, que tanto alimentava as suas saudades nas tardes quentes das terras além do Atlântico. A essa hora, o Martinho regorgitava de caras que o nosso Augusto não reconhecia, figurões dos ministérios a fazer horas da preguiça, algumas personagens jovens com ar circunspecto, chapéu negro na mão e papéis no sovaco, graves nas suas bigodaças, em cujos murmúrios se pressentiam conspirações e incontáveis intrigas. A República rondava, a vida política sentia-se espessa.
Como que por contraponto, a certa altura, a notícia espalha-se: Suas Magestades estão a chegar de barca ao Terreiro do Paço, regressadas de Vila Viçosa!
O nosso Augusto vê, num segundo, o destino colocar-lhe perto, pela primeira vez, essas figuras que a História quisera símbolos do seu Portugal. No Brasil, o Império já se fora, a República estava vibrante, Augusto tinha ido com os ventos do tempo, mas a memória do Portugal eterno estava toda nessas personagens que breve iriam atracar ao Cais das Colunas. Segue o grupo que abandona o Martinho sob impulso da notícia e cruza, solitário, o Terreiro. Vai colocar-se, com alguns outros, na esquina com o Arsenal, na perspectiva poder gozar a passagem das Majestades por algum tempo mais. Do poste onde se encostara, via ao longe o Rossio, onde prometera encontrar-se ao fim da tarde com gente amiga, antes de uma jantarada no Grémio.
Do lado do cais, o movimento adensa-se. Suas Majestades avançam na carruagem, escoltada pelos guardas a cavalo. Alvoroçado com esse inesperado encontro com a História, Augusto logo descortina o recorte avantajado do Rei, nove anos mais novo do que ele próprio. Ao lado, a figura elegante da Rainha D. Amélia, acenando com estudada displicência. De costas na carruagem, uma figura jovem agita a mão em direcção de alguns populares que aplaudem. Deve ser o Príncipe D. Luiz Filipe, pensa. Eram os seus Reis, estava a vê-los pela primeira vez, com um orgulho patriótico de expatriado a agitá-lo por dentro.
Quase sem tempo para se descobrir, para saudar a sua Realeza, o nosso Augusto é impelido a abeirar-se da rua, por uma pequena multidão que largou o conforto da arcada para ver, ainda mais de perto, os passantes Braganças. É esse escasso grupo de pessoas, quiçá movidas mais pela curiosidade que pelo amor à Coroa, que agora faz quase alas à carruagem, roçadas pelos cavalos da Guarda, no curvar lento da saída do Terreiro.
O que se passa, de seguida, é tempo de segundos. Do lado contrário da rua, Augusto ouve o que lhe parece, distintamente, serem dois tiros, seguidos de um alvoroço surdo de gente. O Rei parece-lhe cair prostrado, a cabeça pendente sobre o encosto. D. Amélia soergue-se, lívida, do banco. Mais tiros, vindos sabe-se lá de onde, cruzam a esquina da praça, misturados com gritos e imprecações. Augusto vê surgir lesta, ao seu lado, uma figura esguia que avança com um revólver na mão, que aponta certeiro à figura de D. Luiz Filipe, que se deixa cair na base da carruagem. O homem continua, não desiste, aproxima-se mais das carruagem e D. Amélia, com a coragem da raiva, sacode-lhe o braço assassino com um ramo de flores. O braço desvia-se, o assassino desequilibra-se e do fuzil sai-lhe, enviezado, um último tiro, antes que um chanfalho da Guarda Real o atire ao solo. Esse tiro, o tiro errado, é o tiro certeiro que atravessa a nuca do nosso Augusto Maria de Saa.
A rua passa a um inferno de sangue e gritos. As Reais figuras são rapidamente recolhidas no Arsenal, o Buíça e o Costa – os regicidas que a História acolheria nas suas negras páginas – são trucidados, nos minutos seguintes, pela raiva impotente da Guarda, com a ajuda de populares enfurecidos. Ninguém se preocupa com o corpo exangue de Augusto Maria de Saa, com a face na pedra suja, a sobrecasaca cinza manchada pelo vermelho do sangue português que o Brasil alimentara. Na confusão trágica dessa tarde, o país perdera o Rei e o Príncipe herdeiro, mas a Monarquia continuava, pelo menos por ora. O que acabara, de vez, era o destino de uma figura ímpar que a História iria esquecer por muito tempo: Augusto Maria de Saa.”
[*] Crabtree, Joseph William, “The new global philosophy and the impact of the Cornwall school dissent”, London, Barley & Peacock, third ed, 1887, pg. 623
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