Eram aí umas seis e picos quando um amigo (do género daqueles que têm uma prima que vive com alguém que tem uma "fonte" no MAI ou coisa assim) me disse: "Isto está no papo! Os gajos vão levar uma cabazada das arábias. As sondagens eram uma miragem! Já podes ir abrindo o champanhe!". Adoro estas certezas muito "sportinguistas" e vivo bem com elas, mesmo que nelas nunca acredite. Não abri champanhe nenhum. Nem espumante. Bebi uma cerveja ao fim da noite no Snob, sob o sorriso do Sr. Albino (o Porto tinha ganho), e foi tudo em matéria de libações. Até porque não tinha razões para mais.
(Esclareço que escrevo esta nota sem ter ouvido um único comentador televisivo (nem um!) ao longo da noite. Apenas assisti à declaração de António Costa, tendo acompanhado sem som a coreografia do duo dinâmico da PàF.)
Eu tinha visto bem a composição etária do comício da FIL, tinha olhado com atenção os participantes na arruada do Chiado (muita CDE/CEUD, muita RIA, muita capela do Rato, muito MASPs...), cruzara por toda a parte essa formidável onda socialista de cabelos brancos (ou pintados), a qual, claramente, estava muito longe de poder dar para surfar uma vitória. Há muito que não acreditava que o PS pudesse ganhar estas eleições contra dois partidos coligados (Uma curiosidade: o CDS ainda existirá? Tem ainda programa próprio?), com muita comunicação social complacente, contra um Bloco de Esquerda cujas vedetas femininas raptavam a vontade da gente jovem, contra um PCP que, desde há muito, fizera dos socialistas o seu inimigo principal.
O PS apresentou-se a estas eleições liderado pelo seu mais competente quadro político. Não vale a pena ter quaisquer ilusões. Por muito respeito que me mereça a figura de António José Seguro - e merece-me muito - não considero que tivesse podido obter um resultado melhor do que este (mau) resultado conseguido por António Costa. Ninguém no PS faria melhor.
As condições políticas que conduziram a esta derrota devem-se a um conjunto de circunstâncias muito desfavoráveis para o PS, algumas das quais têm essencialmente a ver com o próprio partido. O "cisma" Seguro-Costa nunca ficou sarado e deixou sequelas pelo país (agravadas na construção das listas eleitorais), a questão Sócrates esteve sempre "on the back of the mind" dos eleitores e mesmo o episódio Syriza acabou por ter o seu peso subliminar. Nas últimas semanas, ficou também claro que um setor do partido fazia alguma resistência passiva à campanha de Costa (em especial, à medida que as sondagens o iam desfavorecendo) e até a ala "socratista" foi tomando distâncias, como se fosse minimamente sensato que António Costa viesse a colar o PS à luta entre a Justiça e o antigo primeiro-ministro.
Acresce que a coligação, neste caso com a imperdoável anuência inicial de Seguro, deixou fixar no imaginário coletivo a "narrativa" da culpabilidade exclusiva dos socialistas na crise financeira 2010/2011 e António Costa não conseguiu invertê-la, depois da detenção de Sócrates. O governo, cuja governação foi uma espécie de "terceirização" subserviente da receita ditada de Berlim, beneficiou dos equilíbrios conjunturais europeus e, depois, fez uma condução muito competente da campanha, embora utilizando despudoradamente a seu favor a máquina do Estado. Mas quem o não fez no passado, quando pôde, que atire a primeira pedra...
Mas, então, o PS não cometeu erros? Claro que cometeu. O partido fará a sua avaliação, eu fiz e continuo a fazer a minha, com toda a liberdade opinativa.
O PS não percebeu que, desde há muitos meses, o sentimento popular face à crise tinha mudado. Bastava olhar para o acelerar do consumo das famílias (prova de confiança no futuro), para a interiorização de um sentimento difuso de bem-estar (olhem-se as férias), alambicado diariamente por pequenas medidas oportunistas de facilitação fiscal ou de outra natureza (claro que outros também o fizeram, noutros tempos), para dever ter entendido que o tom catastrofista estava ultrapassado. O país já não estava tão "indignado" como estivera nos tempos da "troika". Por isso, falar obsessivamente do corte das pensões, da emigração, do desemprego e dos truques para o disfarçar e coisas assim era um discurso que já não estava em sintonia com quem queria desesperadamente boas notícias - e que já não tinha ouvidos para quem só lhe lembrava os tempos piores por que passara. O PS deveria ter assumido, sem complexos, que algumas coisas tinham entretanto mudado para melhor. Pior era se assim não fosse! O país ia sentindo isso e, estranhamente, o partido parecia manter uma espécie de permanente discurso "adversativo". É que, se a custo reconhecia que alguma coisa ia bem, logo vinha um "mas" a seguir a essa constatação relutante. O PS dispensou-se de falar para o futuro, deveria ter apresentado quatro ou cinco "bandeiras", medidas emblemáticas, de natureza política (saúde, educação, justiça). Pelo contrário, embrulhou-se em muitas pequenas propostas sem uma coerência global visível, demasiado economicistas. Entreteve-se a falar de um passado que, repito, a maioria dos portugueses quer esquecer, embora, de facto, ele ainda ande por aí no presente, ainda que edulcorado pela propaganda governamental. Mas esqueceu-se que, como dizia o manholas de Santa Comba, em política o que parece é. Este foi um erro de perspetiva.
O PS tentou credibilizar-se com a apresentação de um programa económico realista, que afastasse de si a imagem do despesismo, que o governo da coligação lhe havia colado definitivamente à pele política. Conseguiu-o até ao momento em que esse programa, e alguns dos seus pormenores, se converteu quase no centro exclusivo do debate. Convencido da genialidade intocável desse texto, o PS descurou mesmo a desmontagem das propostas que o governo enviara para Bruxelas e que eram o seu verdadeiro "programa". Com fraco trabalho de casa, em lugar de colocar figuras especializadas credíveis a procurar discutir em público as fragilidades desse tal "programa", deixou enredar o seu líder em discussões penosas, de cariz técnico, a que a coligação conseguiu ligar um ambiente de "insegurança", baseado na difícil explicação da questão da sustentabilidade do sistema de pensões. E António Costa ainda ajudou a potenciar o espetro do medo da "ingovernabilidade" ao não explicar com clareza a sua posição face ao orçamento. Este foi um erro de foco.
O PS, finalmente, deixou-se cair no logro de centrar toda a sua campanha na figura de Costa, pela certeza que tinha da sua imagem ser muito positiva perante o país, pelo capital de simpatia e competência que projetava e até pela ideia de "ganhador" que lhe estava associada em Lisboa. Talvez com receio de uma eventual cacofonia pela dispersão das mensagens, optou por não fazer avançar para a primeira linha de combate os jovens muito talentosos que tem no seu gabinete de estudos, bem como outras novas figuras, algumas incluídas nas listas de deputados, que podia apresentar como a imagem da renovação do partido. A única cara que, desse espetro mais jovem, surgiu com deliberada evidência foi João Galamba, um quadro seguramente muito capaz mas que "esquerdizou" bastante a imagem económica do PS e, como ficou evidente, não contribuiu para evitar a deriva de setores de esquerda para o Bloco (como se vê pelos resultados, o Bloco não tirou votos ao PCP, embora tenha limitado o seu crescimento, subindo exclusivamente à custa do PS). E o PS também não mostrou as muitas mulheres que, pelo país, estiveram na construção da alternativa: caras novas e algumas sem passado político muito firmado, num tempo em que ter passado é quase mais cadastro do que curriculum. Este foi um erro de "casting".
O PS perdeu. A coligação permanece no poder, mas perdeu a preciosa maioria absoluta, o que a impede de continuar a fazer, como total impunidade, algumas das barbaridades que fez no passado. Agora, dia após dia, se quiser aprovar alguma coisa na Assembleia da República, vai ter de negociar com o PS, num "negócio" que seguramente lhe sairá caro, mas sempre mais "barato" do que fazê-lo com o Bloco ou com o PCP. Espera-se que perceba isso desde cedo. Claro que um dia vai clamar que "assim" não consegue governar e vai pedir eleições antecipadas. Por essa razão é que a eleição presidencial que aí vem é decisiva.
António Costa, na sua declaração final, disse uma coisa muito importante, que é simultaneamente um compromisso e uma nota de responsabilidade: "Não inviabilizamos governos sem termos um governo para viabilizar", deixando ao mesmo tempo bem claro (nomeadamente para ouvidos europeus) que a "esquerda da esquerda" não pode contar com ele para operações que ponham em causa a governabilidade do país. Mas também disse outra coisa: o PS só avalizará políticas que correspondam ao seu programa, pelo que o novo governo terá de ter isso em conta no dia a dia das suas propostas. Nomeadamente nos orçamentos.
O PS perdeu as eleições, mas ganhou um direito de veto.