quinta-feira, julho 10, 2014

Uma história municipal

Há uns anos, estava eu embaixador algures, tive necessidade de falar com o presidente de um certo município português. A minha secretária informou-me que havia um qualquer problema que impedia que o presidente pudesse atender a minha chamada, mas que a sua interlocutora no outro lado da linha não estava a ser muito clara sobre o motivo desse impedimento. Pedi para ser eu a falar com a secretária do autarca. Respondeu-me em voz baixa: "O senhor embaixador desculpe, mas hoje não vai ser possível. Anda por aqui a Judiciária a vasculhar tudo..."

Lembrei-me hoje disto, sei lá porquê.

Scolari

Neste momento em que o (quase ex-) selecionador do Brasil está a ser colocado no pelourinho, vilipendiado como pessoa de forma inaceitável, como se erros futebolísticos autorizassem todo o tipo de insultos, quero testemunhar o meu apreço pela figura de Luiz Filipe Scolari, um homem que, ao serviço da seleção portuguesa, demonstrou ser o mais português de todos os brasileiros. Comigo, a gratidão e a admiração não são valores perecíveis com o tempo e com as conjunturas.

A nova proposta sobre a dívida

De há muito que assumi a modéstia de só me pronunciar de forma definitiva não sobre o que sei mas apenas sobre aquilo sobre que julgo saber alguma coisa. E, mesmo assim... Vem isto a propósito da economia. Todos já percebemos, em definitivo, que, tal como a guerra é uma coisa demasiado importante para ser deixada exclusivamente aos militares (como disse Clemenceau), os últimos anos deixaram claro que é suicida deixar a economia apenas nas mãos dos economistas, que quase sempre nos "explicarão amanhã por que é que as coisas que previram ontem não aconteceram hoje". Mas daí a que qualquer fabiano se arrogue o direito de mandar bitaites sobre os "spreads" ou a "saída limpa", com ar de entendido, vai uma grande distância. Muito embora a economia não deva ser do múnus exclusivo dos economistas, as coisas necessitam de ser estudadas antes de, sobre elas, se poder formular uma opinião que se tenha por séria. E o ambiente de poluição ideológica e partidária dos assuntos que por aí se vive não ajuda ao tratamento racional destas coisas.

Surgiu agora uma nova proposta sobre a reestruturação da dívida. À hora a que escrevo, está a ser discutida na Faculdade de Direito de Lisboa. Pensei passar por lá para assistir ao debate, mas uma leitura do texto convenceu-me a não fazê-lo. Com o devido respeito pela opinião dos seus autores, entre os quais reconheço (alguns) nomes qualificados e que respeito, fiquei com a sensação de que se trata de um "nonstarter", de uma construção teórica inexequível, irrealista e que seria detrimental para muitas camadas da população, representando, além disso, uma brutal mudança de paradigma político-económico, à revelia do que a imagem do país necessita. Se acaso houvesse a vontade política de a pôr em funcionamento, o que nunca acontecerá, Portugal ficaria mais isolado do que nunca no plano internacional. Digo isto como um não especialista, mas apenas como cidadão que tem vindo a interessar-se por estas coisas da economia, sem sequer chegar a ter a pretensão de chegar ao grau de dúvida que eles próprios mantêm entre si...

A pasta

Anda por aí um debate em torno da pessoa que Portugal vai indicar a Jean-Claude Junker, para integrar a próxima Comissão europeia. O debate alarga-se à pasta que esse futuro comissário pode vir a ter. O primeiro-ministro disse não querer tomar a sua decisão sem ouvir o líder da oposição e este, depois dessa conversa, voltou a afirmar que Portugal deve ter uma pasta que permita defender os interesses de Portugal. Resta saber o que isso significa e a melhor maneira de concretizar esse desiderato.

Nos seus 26 anos de presença nas instituições europeias, Portugal teve quatro membros da Comissão Europeia: Cardoso e Cunha, Deus Pinheiro, António Vitorino e Durão Barroso, este último por 10 anos, embora não escolhido pelo país, mas selecionado pelos líderes europeus. Nomes do PSD estiveram na Comissão em 21 dos 26 anos que Portugal leva de presença europeia. O PS apenas nomeou António Vitorino entre 1999 e 2004.

A escolha do comissário nacional resulta sempre de um entendimento entre o governo de cada país e o presidente indigitado da Comissão. É um processo complexo, porque, muitas vezes, as pastas que estão disponíveis e são propostas a um país exigem uma qualificação técnica que os nomes que esse mesmo país pretende indicar não possuem. Por outro lado, as várias pastas estão longe de terem a mesma importância. Os portfolios ligados às "políticas comuns" ou às áreas em que a Comissão tenha poderes delegados de natureza condicionante da vontade dos governos são, naturalmente, as mais importantes. E os vários países têm uma capacidade muito diversa para pressionar o presidente da Comissão para obterem aquilo que pretendem. Ou alguém acha que a Alemanha, a França, o Reino Unido ou a Itália não vão obter um bom portfolio? Ou, se o não conseguirem, que não serão compensados com lugares cimeiros, como os de presidente do Conselho europeu, presidente do Eurogrupo, Alto representante para a Política externa e outros postos chave da máquina comunitária que estão sempre sobre o tabuleiro, na Comissão ou no Conselho?

Custa-me ter de dizer isto, mas é importante deixar claro que a coreografia do primeiro-ministro e do líder da oposição sobre este assunto, revestida de um ar de consenso europeu, deve ser lida como um simples esbracejar político, num quadro de forças em que ambos sabem que são um dos elos mais fracos. Portugal tem hoje muito poucos argumentos e (lamento dizê-lo) muito escasso prestígio na grande mesa europeia e, estranhamente, vai ter ainda de "pagar", aos olhos de muitos, a década de Barroso à frente da Comissão. Não faço a menor ideia daquilo que Juncker possa já ter dito a Passos Coelho (salvo que gostaria que Portugal indigitasse uma mulher, para cumprir o "politicamente correto"), mas, atendendo ao perfil de afirmação que Portugal tem tido nos últimos anos na União europeia, não estou a ver Lisboa a "levantar a voz" junto de Juncker ou a atrever-se a "dar um murro na mesa" do Conselho europeu para ser compensado por qualquer meio por um lugar menos apelativo na Comissão. Temo que, na melhor das hipóteses, se contente em negociar uma qualquer direção-geral ou colher uma promessa compensatória num outro dossiê.

Há um erro clássico neste tipo de escolhas: procurar obter uma pasta ligada diretamente aos interesses do país. Foi assim que Cavaco Silva fez com Cardoso e Cunha e com Deus Pinheiro - e foi um total fracasso para os nossos interesses. Não foi isso que António Guterres fez com António Vitorino, que acabou por obter uma pasta sobre uma temática que era nova e de natureza neutra, o que deu como principal saldo a (justa) consagração do prestígio pessoal do comissário. Um comissário perde, de imediato, a sua capacidade de influenciar o Colégio de comissários quando é pressentido como utilizador da pasta que lhe foi atribuída para defender os interesses diretos do país que o indigitou. A União europeia é um jogo cruzado de interesses, mas há regras de gestão do cinismo comunitário que devem ser cumpridas. 
 
O que importa, então? Para um país como o nosso, seria muito positivo se pudéssemos obter uma pasta que tratasse de questões que fossem vitais, não diretamente para Portugal, mas para o maior número possível de outros Estados, numa "política comum" que, nos próximos cinco anos, obrigasse muitos a ir "bater à porta" do comissário por nós indicado. Só assim se abriria a porta às "marchandages" que poderiam vir a beneficiar os nossos interesses. Não quero nem posso ser mais explícito, mas quem anda no mundo europeu já deve ter percebido o que pretendo dizer. É fácil conseguir isto? Nada do que importa é fácil, mas a qualidade do exercício da política é assim que se mede.   

quarta-feira, julho 09, 2014

Fezadas

Nas "Tias" da Lapa, um cavalheiro contava há pouco que, num telefonema para o Brasil, a consolar um amigo do lado hoje mais triste do Atlântico, teve como resposta: "Foi pena durar tão pouco. Com mais uns minutos e íamos empatando..."

Não pude deixar de me lembrar de um episódio no campo do Calvário, em Vila Real, no início dos anos 60. Aproximava-se o fim de um jogo e o Sport Club de Vila Real não conseguia passar além do empate com a equipa visitante. Até que, aí a uns dez minutos do fim, lá conseguiu marcar um golo. Da bancada saiu então para o campo um incentivo que ficou na memória do humor da cidade: "Vamos à dúzia!"...

A boa moeda

O diretor cessante da Casa da Moeda despediu-se dos seus colaboradores com uma nota críptica, em que cita textos de duas músicas de Sérgio Godinho: "Lá em baixo" e "Arranja-me um emprego". Folgo em ver um dos maiores cantautores portugueses utilizado neste registo, prova de que o bom gosto pode conviver com a boa moeda. 

Da carta, resulta que terá sido vítima de algumas "Emboscadas", pelo que decidiu pôr "Os Pontos nos is", não ficando de "Bico calado", na esperança de que "Espalhem a notícia". Antes que "Mudemos de assunto", a carta faz-nos uma "Visita guiada" a um "Um tempo que passou", porque "Foi a trabalhar" que surgiu esta sua "Dor de alma", agora que chegou "O Fim de tudo". "Sempre foi assim"? Talvez, até porque "Isto anda tudo ligado" e porque este é "O primeiro dia" de um tempo em que já não está em "Maré alta", ele entendeu que valia a pena denunciar que "O rei vai nu". "Pois, é a Vida!", "Caramba!"

terça-feira, julho 08, 2014

Brasil...!

Por um compromisso simultâneo, não pude assistir ao Brasil-Alemanha. Pensava ver o jogo em "replay", mas agora, depois deste resultado (uma "cifra" que traz uma ressonância inescapável a um outro jogo, que para aqui não é chamado), acho que não vou ter essa coragem.

Faço parte de quantos, desde que Portugal (já) não esteja presente num campeonato, apoiam automaticamente o Brasil. Sei que nem todos os portugueses pensam da mesma forma, do mesmo modo que há muitos brasileiros que, com toda a legitimidade, preferem estar do lado de outras equipas.

Sabendo a importância que o futebol tem para o Brasil, e com a maior sinceridade, quero partilhar a tristeza dos meus muitos amigos brasileiros e dizer-lhes (embora saiba que isso de nada vale) que amanhã é outro dia e que o futuro do futebol brasileiro vai saber ultrapassar este infeliz "mineiraço". 

segunda-feira, julho 07, 2014

Tratado Orçamental

A 4 de fevereiro, publiquei neste jornal um artigo em que dizia que “o estado a que a nossa dívida pública chegou, nos últimos anos, não autoriza nenhuma vestal a ficar escandalizada se se afirmar que uma parte dessa dívida não tem condições objetivas para poder ser paga”. Para concluir que “a menos que um perdão parcial venha a ser admitido, associado a uma renegociação de taxas e maturidades, Portugal ficará esmagado por um peso financeiro incomportável. E os primeiros a não beneficiarem dessa situação seriam os nossos credores externos, que não tirariam vantagens de uma economia asfixiada”.

Um mês depois, surgiu o “manifesto” sobre a dívida pública, que ia no mesmo sentido. Muita gente pensava o mesmo. O “manifesto”, contudo, teve a vantagem de mobilizar pessoas que não se julgava possível que viessem a subscrevê-lo. Lembrei-me então do que Raul Rego escreveu, em 1974, quando Spínola publicou o “Portugal e o Futuro”: “o que V. Exa. diz não é novo, o que é novo é isso ter sido dito por V. Exa.”.

Hoje falo do Tratado Orçamental, outro dos nossos tabus políticos.

Esse tratado surgiu, no seio da União Europeia, como uma imposição por parte de alguns países, por forma a acalmar os mercados. Reforçava as condições do Pacto de estabilidade e crescimento, consideradas insuficientes para garantir a disciplina orçamental na zona euro. Ironicamente, no eixo da pressão para a aceitação do novo tratado estavam os dois países que haviam sido os primeiro a não respeitar o Pacto: a Alemanha e a França.

Portugal assinou o Tratado Orçamental em “estado de necessidade” e a oposição responsável esteve com o governo na ratificação do texto. E fez bem. O tratado aí está e, enquanto não for modificado, tem de ser cumprido. Nenhuma dúvida deve existir quanto a isto e são completamente irresponsáveis as vozes que apelam ao seu infringimento.

Mas os tratados não são intocáveis. Representam a conjugação de vontades numa determinada conjuntura, à luz da simultaneidade pontual de interesses. Se a conjuntura muda, é normal que os tratados evoluam. Pelo que devem ser renegociados.

As condições dos empréstimos da “troika” também eram imperativas, mas isso não significou que não tivesse sido possível, ao longo do processo de ajustamento, proceder a uma, ainda que limitada, renegociação das respetivas taxas e maturidades. Isso foi feito - e tudo indica que muito melhor poderia ter sido conseguido, se outra postura negocial tivesse sido assumida - à luz da avaliação das consequências da aplicação das medidas.

O mesmo raciocínio é válido para um tratado cujo quadro de aplicação, um pouco por toda a Europa, cada vez mais é considerado totalmente irrealista. Portugal não deve romper com o Tratado Orçamental, mas seria de uma total insensatez se o seu governo não se associasse, desde o primeiro momento, aos parceiros que se mostrem interessados na respetiva renegociação. Porém - repito -, enquanto não for revisto, o tratado deve ser respeitado.

Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

Fora de jogo

Eu era bem jovem, mas já gostava muito de futebol. Tinha, contudo, como acontece a quem chega a esse desporto, a grande dificuldade de entender a falta de "fora de jogo" - nesse tempo dizia-se "offside". Nas idas ao campo do Calvário, onde em alguns domingos íamos ver o Sport Club de Vila Real, o meu pai esforçava-se por me explicar o significado da falta, perante o sorriso complacente dos espetadores vizinhos e o meu visível embaraço. Nesse tempos não havia televisão, através de cujas imagens estas coisas podem hoje ser mostradas com pormenor e eficácia pedagógica. Lembro-me da nossa mesa da braseira servir de campo de explicação, com os peões do tabuleiro de xadrez a funcionarem como jogadores. Até que aprendi.

(Sei que, por escrito, estas coisas são difíceis de explicar, mas vale a pena tentar: está em posição de fora de jogo, sendo por isso punido com um livre indireto, o jogador que, no instante em que a bola lhe for passada por um colega de equipa, se encontrar num lugar no terreno em que não tenha, entre si e baliza adversária, dois ou mais jogadores da equipa contrária. No passado, o árbitro assinalava a falta no momento em que a bola partia, agora a prática é só apitar no momento em que o jogador faltoso recebe a bola. E, muitas vezes, nessa ocasião, a sua posição relativa é diferente daquela em que estava no momento em que a bola partiu, o que dá origem a muitas confusões... Até cá em casa!)

Uma noite dos anos 60, em casa do meu avô, reunimo-nos para ver, naqueles televisores a preto e branco da época, com muito grão e não menos névoa, um Benfica-Real Madrid.

Num certo momento da partida, Alfredo Di Stefano, o mago argentino que brilhava então no Real de Madrid, foi um dos protagonista de uma bela jogada.  Vendo o seu colega Puskas - outro génio! - adiantado e isolado, passou-lhe a bola. Eu gritei "off side!". Mesmo perante a minha continuada indignação, o árbitro não me "ouviu". E Puskas correu o resto do terreno e colocou a bola no fundo da baliza de Costa Pereira.

Foi nesse instante que o meu pai me explicou que a regra do "offside" tinha uma assinalável exceção: não se aplicava quando a situação se passava na metade do campo da equipa que detinha a bola. Quer Di Stefano quer Puskas - mas é este que importa -, estavam no seu próprio meio campo, isto é, antes da linha de meio campo. E isso muda tudo. Aprendi para sempre, e julgo que comigo muita gente, nessa noite.

Don Alfredo morreu hoje, aos 88 anos. Está, agora sim, definitivamente "fora de jogo". Era um mito vivo no Real e foi um dos melhores jogadores de todos os tempos. A mim, que sempre reverenciei o seu génio, ensinou-me "a única exceção do 'offside" (*). A ele lhe devo, poucos anos depois, ter "brilhado" num curso de arbitragem da Associação de Futebol de Vila Real. Aliás, outra carreira que perdi...

(*) Na realidade, há mais três exceções: nos pontapés de baliza, nos pontapés de canto e nos lançamentos da linha lateral.

Entre a Europa e o Atlântico

A encerrar um ciclo de debates "Portugal - propostas para o futuro", organizados pela "Culturgest", moderarei na próxima sexta-feira, dia 11 de julho, nas instalações daquela fundação, a partir das 18.30, um debate sobre "A Europa e o Atlântico no futuro de Portugal". Serão oradores Miguel Monjardino, professor universitário e especialista em relações internacionais, e Vital Moreira, professor universitário e deputado europeu que, nos últimos anos, presidiu à Comissão do Parlamento Europeu onde foi debatida a proposta de Parceria Transatlântica.

A entrada é livre e todos são bem vindos.

É possível consultar, em vídeo, algumas dos anteriores debates. Assim, no "site" acima indicado (clicar no nome do ciclo de debates), pode consultar o debate "Investimento para competir na globalização", o debate "Que fazer com os fundos estruturais no período 2014-2020" e o debate "Infraestruturas de ligação internacional". Dentro de dias, estará disponível o debate "Crescimento e dívida externa - interações".  Trata-se sempre de conversas com grandes especialistas, muitas vezes com propostas inovadoras, que procuram fugir à polémica fácil e situar-se numa perspetiva simultaneamente prospetiva e construtiva. Se tiver tempo, ouça-as com atenção.

Ainda Carlos do Carmo

Não consegui ir à homenagem que a Câmara Municipal prestou a Carlos do Carmo. Mas, ao ler um miserável artigo de opinião ontem publicado no "Diário de Notícias", onde se amesquinha o prémio internacional recebido pelo cantor, apeteceu-me dar nota de algo que tem sido pouco sublinhado, mas que merece ser dito: o papel de Carlos do Carmo na aceitação política do fado.

Como canção identitária do país, o fado foi instrumentalizado com algum cuidado pela ditadura. O Portugal passadista, sentimental, a tanger a pobreza e a desgraça, que muitas letras do fado tradicional espelham, ia bem com o paradigma do regime de então. Enquanto o povo rimasse "amar" com "luar", para usufruto de turistas e salões marialvas, Portugal viveria tão "habitualmente" como Salazar gostava. A genialidade de Amália fazia bem a ponte entre todos esses mundos que apreciavam o fado, embora o sobrolho do regime se tivesse começado a franzir quando ela convocou poetas a sério para usufruto da sua voz. Mas o fado, com Fátima e o futebol do Benfica, era a caricatura popular de um Estado que de Novo já só tinha o nome. Até que caiu.

Chegados a abril, o fado sofreu a ressaca de tudo o que surgia ligado ao tempo que passara a ser um passado demasiado pesado para ser louvado sem risco. A demagogia fácil, que por esses magníficos dias também se instalou, transformou Amália no bode expiatório de todo o mundo fadista, com a canção a ser tida por um verdadeiro hino da reação. Nos meios de esquerda, o fado passou por tratos de polé. Lembro-me bem da condescendência irritada de amigos meus quando, no auge dessa onda, onde só se ouviam trovas revolucionárias e militantes, eu louvava a beleza do "Não venhas tarde" ou o "Nem às paredes confesso". Não me arrependo, claro.

Foi então que surgiu Carlos do Carmo. O fadista era "de esquerda", próximo do Partido Comunista. Fadista e comunista? Assim era e foi assim que, em grande parte pela sua mão e pela sua voz, com José Carlos Ary dos Santos à mistura, o fado se "segurou" nessa criativa mas também destruidora agitação. Em 1975, Carlos do Carmo seria o intérprete único do então importante concurso nacional em que se escolhia a canção que representaria Portugal na Eurovisão. Mesmo assim, alguma esquerda demorou tempo a "chegar" ao fado. Outra, suspeito eu, continua a olhar para ele como um rito alfacinha (um seu setor, de que nunca fiz parte, delicia-se com a napolitana versão coimbrã, salva da "tormenta" de 74 por via de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira), desconfiando sempre da sua perversa influência melancólica, da apropriação aristocrática e sua banalização turística. Coitados, não sabem o que perdem!

A Carlos do Carmo, para além da contribuição para o seu património de algumas belas melodias, o fado deve muito daquilo que hoje é na memória de Portugal e do mundo, como canção que é, tal como os presidentes da República dizem sempre serem, mesmo quando o não são, "de todos os portugueses".

domingo, julho 06, 2014

"Private joke"

- Será este tipo o verdadeiro Mertens?

- Não sei, mas se calhar, no início deste Mundial a Itália fez mal em não ter feito alinhar o Antici...

Os futebolistas de bancada que, com cervejas e batatas fritas em apoio, assistiam ontem ao Argentina-Bélgica, não perceberam nada deste diálogo entre aqueles dois amigos. De facto, a Bélgica tinha feito entrar um jogador chamado Mertens, mas ninguém se lembrava da Itália ter tido alguém com o nome de Antici. Que raio de conversa era aquela? E, no entanto, quem alguma vez tivesse estado envolvido nas instituições europeias, em Bruxelas, perceberia facilmente esta "private joke".

"Antici" é o nome que, desde 1975, é dado ao grupo que reúne o colaborador mais próximo de cada embaixador Representante permanente de cada país junto das instituições europeias, enquanto que "Mertens" é, desde 1993, o seu correspondente para o grupo dos colaboradores dos Representantes permanentes adjuntos. As designações resultam do nome de dois dos primeiros ocupantes do cargo, o italiano Paolo Antici e o belga Vincent Martens de Wilmars. Sem o saberem, esses dois diplomatas, acabaram por entrar para a história da Europa. Mertens é hoje embaixador do seu país em Roma, mas já não encontrou por lá Paolo Antici, que fez uma carreira na instituições europeias e morreu em 2003.

Ao balcão

- Já viste aquilo no BES? É sempre a mesma coisa. Escolhem os da "panelinha"...
- Porque é que dizes isso?
- O Vitor Bento, pá!
- O Vitor Bento o quê?
- É um neo-liberal igual aos outros.
- Mas, espera aí: o que é que se pretende com a escolha de um novo CEO para o BES? Não é acalmar os mercados e recuperar a confiança no banco?
- Sim...
- Não é evitar que o banco entre em rutura e que não nos venham depois ao bolso, como aconteceu no BPN?
- Claro, mas não estou a ver...
- Ai não? Então porque é que achas mal a escolha de um tipo de quem os mercados gostem? Ou eles ficariam mais sossegados se tivessem nomeado o Louçã? Ou o João Galamba?
- Não exageres! Mas chateia-me que seja sempre gente do "mesmo lado"...
- Mas é a família Espírito Santo e o resto do capital quem escolhe! Quem é que tu tens, "deste lado", que fosse para a chefia do BES e lhes agradasse mais, tal como aos mercados, do que o Vitor Bento? O Frei Bento? Confessa lá: o que te chateia é que o capital e os mercados gostem mais do "outro lado", não é?
- Por isso é que eu não aceito esta resignação à lógica dos mercados...
- Também te percebo, mas, até ver, é o que há... no mercado!

sábado, julho 05, 2014

"Olhar o Mundo"

Em "competição" perdida com o futebol e com os noticiários, estive na última emissão de "Olhar o Mundo", um programa da RTP (que passa na RTP 2, na RTP Informação, na RTP Internacional e na RTP África) dedicado à política internacional e apresentado por António Mateus.

Nele falamos de muitas coisas, desde as atribulações de Nicolas Sarkozy ao agravamento do conflito israelo-palestiniano, passando pela crise na Ucrânia. Mas também abordámos temas relacionados com a Turquia, a Nigéria, o Brasil, Hong-Kong, a Argentina e o Japão. Uma volta ao mundo em alguns minutos de conversa.

Pode ver o programa aqui.

Emiliano Dionísio


Os leitores deste blogue pela certa que nunca ouviram falar deste nome. Mas ele fazia vibrar a minha juventude, embora por não mais do que as primeiras etapas da "Volta a Portugal", nos idos de 60 e 70. Lembrei-me dele, há minutos, ao ver o emocionante sprint do final da primeira etapa do "Tour de France" (no dia em que Cavendish terá arruinado, por culpa própria, as suas esperanças para este ano).
 
Emiliano Dionísio era um ciclista do Sporting Club de Portugal. Nesse tempo, a primeira etapa era disputada em pista, por equipas, e o Sporting tinha quase sempre muito boas equipas. Longe de ser o melhor do seu grupo, Emiliano era, contudo, um fantástico especialista no sprint e, por duas vezes, ganhou a camisola amarela nessa primeira etapa, na qual ficava sempre bem classificado. Perdeu-a quase de seguida, porque a não conseguiu aguentar ao longo da prova. E, com a passagens dos dias, ia-se quase sempre afundando na classificação, com a etapa da Torre a marcar a sua inescapável sina. Mas ganhou etapas e outras provas em que a decisão ao sprint, que era a sua inegável especialidade, foi a regra. Guardei sempre uma ternura particular pela sua figura de homem modesto, com um sorriso simpático.
 
Que será feito de Emiliano Dionísio?

Debré e Sarkozy

"Pode-se contestar aquilo que nos é imputado, não se constentam os fundamentos da Justiça, porque nesse momento contesta-se a República", disse o presidente da Comissão Constitucional francesa, Jean-Louis Debré, em reação à entrevista em que Nicolas Sarkozy, depois de ter sido interrogado pela polícia, colocou em causa e acusou de instrumentalização política os agentes judiciais.

Debré é um homem de direita, filho de um antigo primeiro-ministro de De Gaulle, ele próprio antigo ministro do Interior. Tem um humor à flor da pele e é escritor de (razoáveis) romances policiais. É sabido que Sarkozy não faz parte das suas amizades, "to say the least". 

Um dia, numa ocasião em que tive o ensejo de o conhecer, o seu telemóvel tocou e o som que dele saiu foi uma versão da "A Internacional". Com exceção do amigo em cuja casa estávamos, todos os convivas mostrámos um ar de surpresa. Debré explicou: decidira colocar no telefone, em relação a algumas pessoas, músicas que as identificassem. Assim, com "A Internacional", ele sabia que quem o chamava era alguém de esquerda. Revelou então que tinha a "Le Chant des Partisans" para os amigos gaullistas, creio que "A Marselhesa" para os contactos de direita e outras músicas, com menos conotações políticas, para os contactos de familiares.

Já na rua, à saída, depois de termos ouvido Debré ironizar bastante sobre o então presidente da República, um conhecido quem nos acompanhava disse: "Devíamos ter perguntado a Debré que música tinha no 'portable' para identificar Sarkozy". Um de nós sugeriu, exagerando, pela certa: "Talvez 'Le métèque' "...

A velhice e as mulheres

O "Expresso" publica hoje uma entrevista com o ator Michael Douglas. Nela se refere às provações da doença e da velhice. A certo passo, fala de Angela Merkel, afirmando ser a figura política que mais admira: "Espero que não haja limites na carreira de Angela Merkel. Espero que ela continue presente por muito mais tempo. Todos nós confiamos nela e esperamos muito da sua orientação e diplomacia".

Michael Douglas tem razão em se preocupar com a velhice. Eu sou do tempo em que as suas mulheres de eleição eram Sharon Stone ou Catherine Zeta-Jones. E fiquei por aí.

sexta-feira, julho 04, 2014

"Crescimento e dívida externa - interações"

Se puderem, não percam hoje, pelas 18h30, na Culturgest, no âmbito do ciclo "Portugal – Propostas para o Futuro", a conferência "Crescimento e dívida externa - interações", com Daniel Bessa e José Amaral, moderada por João Salgueiro.
 
Quem não puder deslocar-se, pode acompanhar a transmissão em http://www.culturgest.pt/, onde podem igualmente ser visualizadas as anteriores sessões deste ciclo, de cuja organização faço parte.
 
Procuramos com estas conferências estimular um debate sereno sobre os grandes temas que importam ao futuro de Portugal.

"Elementos de linguagem"

Ontem, no "Público", Francisco de Assis falava da debilitação do debate democrático pela perca da substância da palavra pública. E citava, em seu apoio, a figura de Philippe Bilger, um magistrado francês que se revolta contra o condicionamento uniformizador do discurso político, feito através daquilo a que os franceses chamam "elementos de linguagem". Por mero acaso, há uns anos, em casa de um amigo comum, tive o ensejo de conhecer pessoalmente Bilger, autor de um blogue muito popular, a quem ouvi de viva voz a sua preocupação pelo risco de degradação do debate público, fruto de uma espécie de "template" discursivo que tende a substituir a livre formulação de um pensamento crítico.
 
À época, já estava muito em voga em França o conceito de "elementos de linguagem". De que se trata? É uma espécie de cartilha temática, usada pelos grupos políticos, que permite que, na expressão pública de opiniões, nomeadamente perante a comunicação social, as figuras do mesmo setor político tenham um discurso basicamente comum, não divergindo na mensagem que divulgam. Antes de darem uma entrevista ou serem ouvidos por uma televisão ou uma rádio sobre um tema da atualidade, essas figuras passam pela sede do partido onde recebem um texto com as linhas básicas que devem defender. Os "elementos de linguagem" fazem hoje também parte integrante das políticas públicas francesas, constituindo, por exemplo, uma regra para os seus diplomatas.
 
Percebo as preocupações de Philippe Bilger, como entendo as de Francisco de Assis, mas, correndo o risco de estar a parecer retrógrado, devo dizer que tenho pena que, em Portugal, as forças e os agentes políticos não recorram a esse fator uniformizador que são os "elementos de linguagem". É que o caráter caótico do nosso discurso público, onde cada um diz o que lhe vai "na real gana", é hoje um elemento descredibilizante dos nossos atores políticos.
 
Querem um exemplo? Veja-se o governo português e as confusões que regularmente são criadas pelo facto de, aparentemente, cada um vir dizer a público o que lhe apetece, sem rigor na forma e com "nuances" que dão uma imagem de permanente descoordenação. E não falo no PS, onde, às vezes, parece reinar uma espécie de "coordenação pelo ouvido", sobre cuja eficácia me abstenho de elaborar.
 
Ontem, uma diplomata francesa, perante a minha revelação de que, entre nós, nunca distribuíamos folhas escritas com "elementos de linguagem", perguntava-me como é que se fazia então a coordenação das posições públicas. Saiu-me: "olhe, por Espírito Santo de orelha!" Fiquei com a sensação de que esta minha expressão idiomática, tendo em atenção a pressão obsessiva da atualidade, pode ter criado uma imensa confusão...

Rui Tovar

Morreu Rui Tovar, uma voz serena que me habituei a ouvir falar na televisão sobre futebol, com equilíbrio e sem as "hipérboles" de alguns "filósofos da bola" que por aí abundam.
 
Há pouco, ao jantar, Miguel Sousa Tavares lembrava a clássica frase de Tovar, num Portugal-República Checa, quando um jogador checo entrou isolado na área portuguesa e marcou um golo: "é o que dá deixarem um checo sem cobertura..."

"Agora é que é!"

A conferência de imprensa de Macron foi patética, com uma listagem de políticas a concretizar, uma espécie de "agora é que vai ser"...