Faz hoje 39 anos, dia por dia, que entrei para a função pública. Para a Caixa Geral de Depósitos, que tinha então a sua sede no majestoso edifício do Calhariz, onde eu passei a trabalhar no "serviço de títulos".
As regras eram à antiga. Entrava-se às 9.30. Às 9.35, o senhor Marques, chefe da secção, recolhia o livro de ponto. Para o assinar depois, era necessário justificar o atraso e penitenciar-se pelo mesmo. A hora de saída, para almoço e à tarde, era, também, sagrada. Cinco minutos antes do encerramento do expediente, o Serra, na secretária ao meu lado, sacava invariavelmente de um pano de feltro para limpar os sapatos que, logo depois, apontavam para a porta, para onde disparava quando o ponteiro do relógio tremia nas 17.30. Ah! e trabalhava-se nas manhãs de sábado!
Ao almoço, espalhavamo-nos pelas tascas da zona, em grupos variáveis. Se o sol aparecia, escostavamo-nos, antes do regresso ao trabalho, pelos passeios em frente, apreciando o "pequename" que passava. Eu aprendia a vida com quem a vivia com dificuldades bem maiores do que as do episódico colega que eu era, futuro licenciado, olhado como figura passageira pelos colegas, entre os quais fiz - diga-se - sólidos amigos.
O meu curso universitário prosseguia entretanto, como "estudante voluntário". No primeiro ano, para fazer as "frequências", tive de pedir autorização excecional para as escassas ausências. Mais tarde, foi necessário utilizar os dias de férias, para poder estar presente a esses exames. Dispensa para aulas ou exames era, então, uma miragem.
No concurso público de entrada, algum domínio da escrita terá compensado falhas na área da contabilidade. Antes de ser admitido, li e assinei, sob o olhar atento de um antigo ministro de Salazar, uma declaração onde atestava o meu "ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas". No meu bolso, recordo-me bem, levava um livro de Engels, das Éditions Sociales.
O trabalho era sereno, burocrático, sem surpresas. Nem muito exigente, nem deixando tempo para "calaceirices". Essas ficavam para colegas antigos, "primeiros oficiais", com mais "ronha", alguns eternamente parados nas suas secretárias ou saltitando em conversas, sempre sob o olhar crítico do senhor Marques, que prescutava as várias áreas do imenso "open space" por onde nos distribuíamos.
Os contínuos, o Rui e o Abrantes, forneciam-nos, regularmente, uma caneta Bic. Quando a respetiva carga acabava, trocavamo-la por outra igual, devolvendo a velha, claro está! Nas horas vagas, tentavam impingir-nos relógios Cauny, com preços "de favor".
Às segundas-feiras, dominava o futebol. Não se falava muito de política, salvo com o Aldeia e com o Murta, amigos com quem essa maior intimidade entretanto se criara. Dois ou três sabiam que a minha eleição não tinha sido "homologada", por duas vezes, como dirigente associativo universitário, e que isso me tinha criado "problemas", sobre os quais nunca elaborei muito Com eles, mantinha alguma cumplicidade, pela comunhão de que "isto" tinha de mudar, mais cedo ou mais tarde. As vigorosas manifestações do sindicato dos bancários, do qual não podíamos ser associados por sermos funcionários públicos, eram comentadas com todo o cuidado, porque as paredes tinham ouvidos. As paredes e alguns "fachos" que nos rondavam, que pressentíamos poderem ser perigosos.
Pela véspera de Natal, o chefe de repartição, o senhor Trancoso, que durante todo o ano assomava uma meia dúzia de vezes à nossa sala, quase sem nos olhar, colocava-se junto à saída para um excecional aperto de mão anual de favor. E, de 26 até 31 de Dezembro, lá estávamos nós, em horas extraordinárias (não pagas aos novatos), para tentar garantir os "acertos" para as contas do ano ficarem exatas.
Era assim a vida de um bancário público, nos tempos do Estado Novo. Nostalgia? Nenhuma, podem crer. Mas, hoje, lembrei-me.