sexta-feira, novembro 19, 2010

Caixa

Faz hoje 39 anos, dia por dia, que entrei para a função pública. Para a Caixa Geral de Depósitos, que tinha então a sua sede no majestoso edifício do Calhariz, onde eu passei a trabalhar no "serviço de títulos".

As regras eram à antiga. Entrava-se às 9.30. Às 9.35, o senhor Marques, chefe da secção, recolhia o livro de ponto. Para o assinar depois, era necessário justificar o atraso e penitenciar-se pelo mesmo. A hora de saída, para almoço e à tarde, era, também, sagrada. Cinco minutos antes do encerramento do expediente, o Serra, na secretária ao meu lado, sacava invariavelmente de um pano de feltro para limpar os sapatos que, logo depois, apontavam para a porta, para onde disparava quando o ponteiro do relógio tremia nas 17.30.  Ah! e trabalhava-se nas manhãs de sábado!

Ao almoço, espalhavamo-nos pelas tascas da zona, em grupos variáveis. Se o sol aparecia, escostavamo-nos, antes do regresso ao trabalho, pelos passeios em frente, apreciando o "pequename" que passava. Eu aprendia a vida com quem a vivia com dificuldades bem maiores do que as do episódico colega que eu era, futuro licenciado, olhado como figura passageira pelos colegas, entre os quais fiz - diga-se - sólidos amigos.

O meu curso universitário prosseguia entretanto, como "estudante voluntário". No primeiro ano, para fazer as "frequências", tive de pedir autorização excecional para as escassas ausências. Mais tarde, foi necessário utilizar os dias de férias, para poder  estar presente a esses exames. Dispensa para aulas ou exames era, então, uma miragem.

No concurso público de entrada, algum domínio da escrita terá compensado falhas na área da contabilidade. Antes de ser admitido, li e assinei, sob o olhar atento de um antigo ministro de Salazar, uma declaração onde atestava o meu "ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas". No meu bolso, recordo-me bem, levava um livro de Engels, das Éditions Sociales. 

O trabalho era sereno, burocrático, sem surpresas. Nem muito exigente, nem deixando tempo para "calaceirices". Essas ficavam para colegas antigos, "primeiros oficiais", com mais "ronha", alguns eternamente parados nas suas secretárias ou saltitando em conversas, sempre sob o olhar crítico do senhor Marques, que prescutava as várias áreas do imenso "open space" por onde nos distribuíamos. 

Os contínuos, o Rui e o Abrantes, forneciam-nos, regularmente, uma caneta Bic. Quando a respetiva carga acabava, trocavamo-la por outra igual, devolvendo a velha, claro está! Nas horas vagas, tentavam impingir-nos relógios Cauny, com preços "de favor".

Às segundas-feiras, dominava o futebol. Não se falava muito de política, salvo com  o Aldeia e com o Murta, amigos com quem essa maior intimidade entretanto se criara. Dois ou três sabiam que a minha eleição não tinha sido "homologada", por duas vezes, como dirigente associativo universitário, e que isso me tinha criado "problemas", sobre os quais nunca elaborei muito Com eles, mantinha alguma cumplicidade, pela comunhão de que "isto" tinha de mudar, mais cedo ou mais tarde. As vigorosas manifestações do sindicato dos bancários, do qual não podíamos ser associados por sermos funcionários públicos, eram comentadas com todo o cuidado, porque as paredes tinham ouvidos. As paredes e alguns "fachos" que nos rondavam, que pressentíamos poderem ser perigosos.

Pela véspera de Natal, o chefe de repartição, o senhor Trancoso, que durante todo o ano assomava uma meia dúzia de vezes à nossa sala, quase sem nos olhar, colocava-se junto à saída para um excecional  aperto de mão anual de favor. E, de 26 até 31 de Dezembro, lá estávamos nós, em horas extraordinárias (não pagas aos novatos), para tentar garantir os "acertos" para as contas do ano ficarem exatas.

Era assim a vida de um bancário público, nos tempos do Estado Novo. Nostalgia? Nenhuma, podem crer. Mas, hoje, lembrei-me.

15 comentários:

margarida disse...

Ah..., também bancário... (mais essa 'coincidência').
Portugal é um País de poetas e... bancários, estou em crer! ;)
Quanto à geografia, bom..., aí ao lado da Caixa, num quinto andar cor-de rosa com vista para o Tejo (e tudo), numa nesga de estuque que ainda se vislumbra nessa foto, vivi muitos sonhos e ouvi muito Terço na Rádio Renascença, em férias com o avô paterno, entremeadas com aquelas bem buliçosas dos primos estrangeirados, na mais cosmopolita Parede.
Vamos ver que ainda tropeçámos na Calçada do Combro.
E que as linhas não se cruzaram apenas a partir da Venda Nova.
Na verdade, isto anda tudo ligado.
É um universo por fios.

Fernando Frazão disse...

Eu entrei para a CGD em 1976 para a Agência Central da Rua do Ouro que, na altura se chamava DSD-2, com um ambiente, como deve calcular, bastante diferente.
O percurso profissional levou-me dois anos depois a entrar para o departamento de organização, na altura chamado DSOM, fundado pelo saudoso admnistrador dr. Ribeiro Moreira, mais tarde responsável pela implementação da SIBS.
Curiosamente esta "Direcção" funcionava em dois apartamentos na Rua Luís Soriano, mesmo ao lado do edificio da foto por cima da Adega Tagarro. Às 11 da manhã sabia-se o que era o almoço.
Estou recentemente reformado mas a vida profissional permitiu-me estar na frente de algumas das revoluções funcionais da CGD, nomeadamente na implementação do Front-office (conhecido como "teller" nos países anglo-saxónicos), que representou uma pedrada no charco na banca e do self-service (ATM e POS).
Acho que ainda conheci o Marques e seguramente o Serra dos "Títulos". Boa gente.
Resta acrescentar que não fazia a mínima ideia que o Sr. Embaixador é um ex-colega.
Cumprimentos

Anónimo disse...

Tem graça, reencontrei-me nas suas palavras, no meu inicio de carreira, também nessa instituição...E a verdade é que também eu fui estudante a "tempo parcial", enquanto era bancário a tempo inteiro, sem as regalias dos "intronizados"... O ano? 2004 Parece que a evolução se terá dado em muitos aspectos... mas deixando alguns que parecem eternos!

Anónimo disse...

Caro Embaixador;
Foi neste vetusto edifício da velha sede da CGD ao Calhariz que assumi a minha primeira grande responsabilidade de uma escritura com hipoteca, num tempo em que a inflação anual rondava os 28% e, "malparado", era termo que o crédito bancário ainda não pronunciava, ia então quente a vida nacional dos primeiros anos da Democracia!...
Ao ler este seu post sobre as memórias desta sua primeira experiência profissional no contexto em que ocorreu, não pude, eu, e desculpar-me-á por o invocar aqui, deixar de nela envolver uma sentida e respeitosa homenagem à memória de seu pai.

Bem haja.
João Queiroga

Helena Sacadura Cabral disse...

A sua descrição, Senhor Embaixador, não difere muito da que eu faria em 1973 de uma outra instituição bancário onde havia um elevador só para a Administração...
Um ano depois...foi o que se viu!

Anónimo disse...

"Estudante voluntário"

"Estudante trabalhador"

Sim senhor...

Isabel Seixas

cunha ribeiro disse...

Gostei deste pequeno devaneio biográfico. Mostra-nos um certo "ambiente" da época.
Por essa altura, tempo do Estado Novo, eu era "novo"...E disso tenho eu, Senhor Embaixador, bastante NOSTALGIA...

José Martins disse...

Senhor Embaixador,

Parabéns pelos 39 anos ao serviço da função pública!
Não me acredito que não viva dentro da nostalgia do tempo ido...
Se não vivesse dentro dela não escreveria cenas, que lhe afloram, de vida passadas.
Todos vivemos o passado, mau ou bom e um sinal que estamos vivos.
Saudações de Banguecoque
José Martins

Maria Eduarda Boal disse...

Exmo Senhor Embaixador,

Falei-lhe há dias na FCGulbenkian, aquando do Encontro sobre Língua Portuguesa, para lhe dizer que era uma leitora assídua do seu blog, mas também que o abordaria a breve trecho para lhe dar conhecimento de uma realização sobre a nossa língua. Faço-o hoje para lhe dar conta de que, há cerca de dois anos, um grupo de pessoas interessadas nesta temática se constituiu em Associação e criou o OLP - Observatório da Língua Portugesa. No passado dia 16 fizemos a apresentação pública do Sítio e como sei do seu interesse por estas questões, apresso-me a enviar-lhe o endereço - www.observatorio-lp.sapo.pt - fazendo votos de podermos ter as suas sugestões e colaboração.

Com os melhores cumprimentos e consideração,
Maria Eduarda Boal

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador, pelos comentários que aqui foram feitos não há dúvida que Portugal é um país de bancários comandado por banqueiros.
Azar de alguns terem ficado, helas, como eu, só na primeira categoria!

Fernando Frazão disse...

Cara Helena

A amostragem é muito pequena quanto aos bancários e tanto quanto se pode constatar nula em relação aos banqueiros.

Cumprimentos

Anónimo disse...

A fotografia deste post deixou-me um pouco nostálgica.

Em 1975, no início da minha adolescência, acompanhei os meus pais a esse edíficio da CGD para a realização das escrituras da nossa casa.

O meu pai faleceu no final da minha adolescência, a casa foi vendida há cerca de uma década e... lembrei-me que não voltei a passar no Largo no Calhariz desde os anos 70(embora, passe nas imediações).

Talvez o faça um destes dias! A vida nas grandes cidades tem destas coisas...

IBP

Julia Macias-Valet disse...

Falando de funçao publica, alguém me sabe informar porque é que os oficios tinham (têm ?) sempre como assinatura :

A bem da Nação.

Helena Oneto disse...

E uma delícia "ler" estes "retratos" que se fazem aqui!

Anónimo disse...

Como as coisas não mudam!
Entrei para o funcionalismo público já lá vão uns 17 ou 18 anos... a rotina mantêm-se, entra-se e sai-se às horas que ditam as regras, uns trabalham mais do que falam, outros falam!
O chibo do escritório cá está, e… (é aqui que eu queria chegar) alguns de nós falam à zurrapa, não vão os ouvidos do chibo ou d’outros com interesses na carreira profissional / política ouvir o descontentamento de quem cresceu à sombra da Revolução dos militares de Abril, das promessas de liberdade, de igualdade de oportunidades, de justiça, do fim das mordomias e tachos para os amigos e familiares, ou dos que por terem lugar cativo nos círculos do poder político e económico se acham no direito de ocuparem ou darem a ocupar lugares no governo, institutos públicos, associações ou outro qualquer organismo onde possam ganhar o indevido. Peço desculpa tornei a desviar-me to ponto que quero expor, já não há PIDE, mas veio um substituto bem mais eficaz, não prende nem tortura, joga pela sombra como a PIDE… não tem nome e actua sem deixar rasto, actua brilhantemente! O alvo é seleccionado (com dois cs à antiga;)) e passa a ser objecto de permanente crítica, é-lhe retirada a possibilidade de brilhar e mesmo de trabalhar, são-lhe dados os mais pobres afazeres, a suas opiniões são ridicularizadas e mesmo adulteradas para que passe a ser visto como mau colega, mau profissional, mau carácter, por vezes ainda pior são-lhe atribuídos qualidades que o enlameiam e nivelam à escória da sociedade… uns desistem, enterram a cabeça, entram e saem e deixam de se dar seja com quem for, acabam de costas vergadas, cumprindo com as ordens sem lamento e alento para resistir. Outros não, esperneiam, defendem-se, respondem às acusações, expõem a verdade, mas nada ganham com isso… a “PIDE” é mais forte e os seus dias estão contados, o dia virá em que se afogam na crítica permanente, esse dia é aquele em que o comboio se atrasou porque à linha o homem se atirou!!
JA

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...